São João da Madeira, 19 de fevereiro de 2044
Vim até São João, observar os prodígios realizados pela professora Rute, ao longo de duas décadas de projeto. É admirável a sua obra. E se constituiu em fonte de inspiração para muitos outros projetos.
A Rute compreendeu que toda e qualquer situação pedagógica assentava numa relação de poder mediada pelo saber, uma mediação não natural, mas construída. E essa educadora se transcendeu, através de uma prática coerente com valores e princípios, assumindo que o poder não é bom, nem mau, que o uso do poder é que poderá ser benigno, ou maligno. Sobretudo o poder simbólico exercido sobre a infância.
A criança pode brincar com o poder. É pelo exercício desta brincadeira “séria”, num constante jogo de reajustamentos, que o aluno exerce e aprende a exercer o máximo poder a que tem acesso.
Esse jogo sério implica não a totalidade do princípio do desejo, mas uma totalidade-síntese de desejo e realidade. A responsabilidade do aluno poderia traduzir-se nesta mistura dinâmica e em permanente reequilíbrio. E a assunção de autonomia, que daí decorre corresponde um aumento da fluidez dos papéis e rituais presentes na relação educativa.
O poder de controlar exerce-se em formas subtis. Para o interpelar, não basta ter consciência da sua origem. A ordem estabelecida com vista à realização da autonomia é de natureza anárquica, no que näo pode ser confundida com um estado caótico de relação (Prigogine o afirma…).
O indivíduo em processo de autonomizaçäo libertária passa de um nível restrito à pessoa, ou a um grupo, ao envolvimento numa gestäo institucional participada, numa ordem simbiótica, concretizada a nível microssocial; näo uma ordem ideal, mas uma base efetiva de partilha de perspectivas.
A relação vertical professor-aluno não permite uma integração dos conhecimentos em termos de saber gerante. Tudo o que é meramente transmitido e, pretensamente, ensinado tem pouca influência no comportamento da pessoa. Os conhecimentos que podem influenciar os conhecimentos do indivíduo são os que ele próprio descobre e de que se apropria.
Netos queridos, eu sei que estou a usar de excessiva didática. Mas, ficai sabendo que, se nos idos de vinte houvesse professores que chegassem a ler estas cartinhas, iriam apreciar, certamente, o didatismo que nelas coloco.
Na longa jornada percorrida, a Rute e muitos outros educadores enfrentaram dificuldades, tormentas várias. A propósito… cito Attico Chassot, para que saibais como esses educadores reagiram:
“É nos momentos de crise, não na normalidade, que se multiplicam os bons e os maus exemplos. Cada um de nós reage de uma forma às catástrofes. A sociologia dos desastres é farta em estudos sobre o assunto.
Há os que crescem em altruísmo, magnânimos, solidários, prontos a ajudar. Há, também, os que se tornam apáticos na crise, ficam paralisados diante dos estragos. Sentem-se impotentes. Preferem recolher-se e esperar, não atrapalham, mas não ajudam. Por fim, há aqueles que querem tirar vantagem da situação, sempre há. São tipos variados. Na hora mais difícil, todos esses vão aparecer e podem, ou não, fazer a diferença.
Para a nossa sorte, há muitos que “fazem o bem sem olhar à quem”, ajudam a costurar as pontas do tecido social e amarram firme essa coisa que chamamos de sociedade. São essas pessoas que merecem a nossa consideração, não as outras que perderam a chance de mostrar grandeza.”
Queridos netos, as sociedades são as pessoas, as famílias são as pessoas, as escolas são as pessoas. Certamente, já entendestes que pessoa é a Rute.
Colhei o seu exemplo.
Por: José Pacheco
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