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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXIII

Albufeira, 18 de fevereiro de 2044

É domingo. Como sempre faço, queridos netos, emprego este tempo de ócio tentando pôr em dia a correspondência e atendendo a algumas solicitações de ajuda. Mesmo já sendo nonagenário, mantenho este solidário ritual. 

Hoje, recordei dois domingos. O primeiro, de há 40 anos, um domingo feliz passado num congresso, convivendo com o amigo Rubem (encontrei uma foto no baú das velharias e o juntei a esta cartinha). O outro, um infeliz domingo do mês de fevereiro de há 20 anos, quando se aproximava o tempo da minha discreta “retirada da cena educacional”.

No mês de maio de dois mil e vinte e dois, uma secretaria de educação enviou-me um “termo de referência”, no qual me pedia ajuda para ”implantação do projeto Comunidades de Aprendizagem”. Eis alguns trechos desse documento, itens do Plano Municipal de Educação desse município:

“(…) instituirá um Grupo de Trabalho para a proposição de Diretrizes de Política Pública para Implementação de uma rede de protótipos de Comunidades de Aprendizagem em nove escolas da Rede Pública Municipal, tendo como mote a construção coletiva do projeto político pedagógico, com viés holístico, democrático e emancipador do cidadão, envolvendo a comunidade e a escola.

Na comunidade de aprendizagem, conteúdos serão ferramentas que surgirão dos valores construídos pela comunidade escolar, com o objetivo de criar e fortalecer ações críticas e criativas entre todos os personagens que convivem nos ambientes de aprendizagem.

A organização do trabalho centrar-se-á num sistema de relações que atenderá as necessidades do educando e da comunidade, no desenvolvimento de atividades de construção de projetos de vida. 

Porque o entender que a educação extrapola os muros da sala de aula, sendo realizada na vida vivida, em diversos momentos e múltiplos lugares, é necessária a ressignificação do próprio ambiente escolar: a escola deixa de ser o único espaço educativo para se tornar uma articuladora e organizadora de muitas outras oportunidades educacionais, no território da comunidade.

Na transição para práticas fundadas no paradigma da comunicação, os educadores participarão do desenho de novas construções sociais de aprendizagem.”

Reuni com a secretaria, disse que ajudaria. Expliquei o que deveria ser feito. A secretaria aceitou a proposta. 

Andei, de escola em escola, gratuitamente, ajudando educadores coerentes com o seu Plano Municipal de Educação. Um GT viria a ser criado, um “Termo de Autonomia” fora aprovado. A secretaria elogiou o projeto, publicitou os bons resultados obtidos. Porém, quase dois anos decorridos, quase tudo estava por fazer. 

Nessa secretaria (como em muitas outras), eu vinha perguntando quando regressaríamos ao aprimoramento dos projetos que nos propuséramos desenvolver. Naquele tempo, não faltavam pretextos para os interromper projetos: ou era um ministério que iria mudar de mãos, ou “os professores estão em férias, ou “o senhor diretor não tem agenda”, ou… “só depois do Carnaval”. 

Já estávamos depois do Carnaval. Só faltava saber as verdadeiras razões de adiamentos e… recomeçar.

Recomeçamos, enviando a pais, a professores, a diretores e a todos os cidadãos, que decidissem assumir um compromisso ético com a Educação um convite, que a Zizi elaborou com esmero.

Nele se dizia que, pelas onze horas brasileiras do dia 24 de fevereiro, se realizaria o encontro preparatório de muitos outros encontros, que nos conduziriam à prática refletida de uma nova construção social de aprendizagem.

Em próximas cartinhas, vos direi o que sucedeu.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXII

Montemor-o-Novo, 17 de fevereiro de 2044

Eis-me insistindo na busca de significado de tudo aquilo que, em cinquenta anos, a Ponte idealizou e concebeu. 

Quando se abandonou o gueto da sala de aula e se enveredou pelo trabalho em equipe, os professores assumiram mais algumas “funções”. A expresssão “colaboração do tutor”, que constava do “Perfil do Orientador Educativo”, consistia em muito mais do que um montessoriano. “seguir a criança”. De modo que, ao cabo de um ou dois anos, acreditavamos ter encontrado uma prática refletida, fundamentada numa teoria prudente, um modo de concretizar a nossa autonomia e a dos nossos alunos, então, transformados em sujeitos de aprendizagem.

A qualidade de um novo tipo de relação favorece, ou obstaculiza, a passagem de uma atitude centrada no ensino para atitudes de compromisso pessoal (quer do professor, quer do aluno) com a atividade. Este compromisso, a que subjaz a compreensão da dependência original, pode assumir a forma de projetos geradores de vínculos. 

O que fizemos foi partir daquilo a que chamos “acordos de convivência” e da instalação de dispositivos de relação. Através de mediações que permitiam aos (já) sujeitos de aprendizagem apreenderem uma perceção correta das tarefas e suas finalidades, eles participavam na seleção e planificação de tarefas plasmadas em roteiros de estudo, desenvolviam projetos de currículo tridimensional. 

Tinham aprendido a selecionar informação, a analisar a informação recolhida, a analisar e a comparar diferentres informações, a sintetizar e a avaliar a produção de currículo, a socializar o conhecimento, partilhando com a comunidade as “evidências de aprendizagem”, que nós (a equipe que, entretanto, eu havia reunido) referenciávamos em portfólios, em registos de avaliação formativa, contínua e sistemática.

A ação decorrente de projetos pessoais ou de grupo, a gestão individualizada de tempos e espaços de aprendizagem, a escolha de momentos e instrumentos de avaliação, a regulação de comportamento numa base de reciprocidade, o desenvolvimento de formas de cooperação e comunicação eram sinais evidentes do exercício de autonomia. 

Em meados dos anos setenta, num tempo em que ainda não havia computadores, eu ia batendo nas teclas de uma velha maquina de escrever, redigindo textos, que entregava à equipe de professores, para que os lessem e (fundentadamente!) opinassem. Guardava cópias em papel químico, que, com a passagem do tempo, se apagaram. Mas, tudo o que nesses papéis escrevi estava presente na nossa prática e em nós. 

O acto intencional caracterizava a existência digna, sempre que um aluno se fazia participante ativo de um projecto coletivo, na remoção prática de atitudes individualistas e autoritárias. Boaventura explicitou aquilo que apenas intuíamos, nos dios de setenta: 

“A modernidade confirmou-nos numa ética individualista, uma microética que nos impede de pedir, ou sequer pensar responsabilidades por acontecimentos globais.”

A crise da escola, tal como a crise da sociedade, refletia a flexibilidade das transformações económicas, sociais e políticas da vida em coletivo face a uma atmosfera de rigidez e de imobilidade, ao nível global da sociedade. E a autonomia equívoca concedida pelos ministérios da educação apenas confirmava o princípio que dizia ser a lealdade devida ao Estado o preço a negociar para preservação da segurança pessoal possível.

A autonomia da escola seria o primeiro passo para uma inversão de valores. E o instrumento que a concretizaria dava pelo nome de “contrato de autonomia”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDXI

Braga, 16 de fevereiro de 2044

A cidadania é uma “técnica de vida” a aprender como quaisquer outras. Por essa razão, o nosso Faria de Vasconcelos (já em 1915 e muito antes de Rogers!) defendia que a educação se deveria fazer de dentro para fora, pela experiência e pela prática gradual do sentido crítico e da liberdade. 

Ellen Key, vinte anos antes de Summerhill, prefigurou a realidade dessa experiência, ao afirmar que os pais e a escola afogavam a individualidade da criança e que seria necessário que o professor a libertasse dessas amarras. 

Se considerarmos a experiência dos libertários de Hamburgo como um malogro, é em Neill que encontramos os limites da liberdade possível. Diria mesmo que, sem a sua radicalidade, se perderia uma importante referência. 

Os movimentos que se seguiram à Educação Nova têm em Summerhill um primeiro ensaio de aplicação psicanalítica. Neill foi profundamente influenciado por Freud e Reich. Promoveu uma rutura profunda com os teóricos do seu tempo (incluindo os da Escola Nova), ainda que reatualizasse algumas propostas de Rosseau. 

É por essa razão que situo Neill numa fase transitória, marcada pela recusa da especulação teórica (é contra essa especulação que Freinet também reage). Neill acreditava na eficácia da regulação pelo desejo. Criou um ambiente de aceitação. sem ameaças nem medos, para que a criança pudesse exprimir-se e aprender a gostar de si própria. 

Mais do que renunciar à prescrição, o adulto-educador renunciava ao julgamento. Ao adulto competia, segundo Neill, criar condições em que o desejo pudesse cumprir-se:

“Em Summerhill, acredito termos provado que a autonomia funciona. E uma escola não faz concessões. Não podemos ter liberdade a não ser que as crianças se sintam livres para governar a sua própria vida social. 

Quando há um patrão, não há liberdade real. Isso aplica-se ainda mais aos chefes benévolos do que aos disciplinadores. A criança de espírito pode rebelar-se contra o chefe áspero, mas o chefe que usa de brandura apenas faz a criança sentir-se frouxa, e insegura quanto aos seus sentimentos reais”.

Realmente, a escola sem autonomia não deveria ser chamada escola progressista, no sentido que Snyders lhe conferia. Ao educador competiria representar um “princípio de realidade” não repressivo, cujas necessidades seriam reconhecidas e assumidas com as próprias crianças. Neill era considerado adepto de uma liberdade sem limites, mas ele próprio reconhecia não haver liberdade absoluta. Como alguém disse, “criança não faz o quer; criança quer o que faz”. 

Esse mestre reage contra a coercividade da educação inglesa, mas não vai ao ponto de rejeitar toda e qualquer disciplina, que considera como desinteresse do professor em relação à evolução do aluno. 

O que importa sublinhar neste autor é a sua convicção de que a conceção tradicional de disciplina não pode conduzir a criança à autonomia: 

“A autonomia é a conduta inspirada pelo eu, e não por uma força exterior.” 

Neill considerava que a criança não deveria ser forçada a fazer algo, antes de ter reconhecido que o deveria fazer. Restava saber se esse reconhecimento se operava por manifestação do desejo. E a resposta não era simples. Neill ainda a adensava, quando, ao esbater o dilema autoridade / não-autoridade referia que o que se fazia à criança não era importante, mas sim o modo como se fazia – mais uma vez nos antípodas de Snyders.

Se tiverdes paciência suficiente para aturar este vosso avô, contar-vos-ei estórias do Neill, do Snyders e de outros educadores do século XX, cuja obra, mesmo para os leigos, importa conhecer.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDX

Fátima, 15 de fevereiro de 2044

Eis-me na terra dos milagres. Em tempos idos, havia quem dissesse, talvez jocosamente, que, quando um professor brasileiro ia a Portugal, visitava Fátima e… a Escola da Ponte.

Certo é que, quando aportei ao Brasil, me apercebi de que a Ponte se tinha transformado num mito. O amigo Rubem havia publicado “A Escola com que sempre sonhei”. E o “sonho” de todo o bom educador era rumar a Portugal e à Escola da Ponte.

Quando me emancipei do etnocentrismo europeu de que padecia, fui viver entre povos originários, em quilombos e favelas, enveredando por um processo de descolonização mental, que me permitiu ajudar a desenvolver projetos como o da Escola do Projeto Âncora. A melhor Educação estava no Sul. E pelo Sul me deixei ficar, para aprender.

No Brasil, a ausência de autonomia precipitara o sucateamento da escola pública e provocara a sua desintegração. Nas palavras de Anísio Teixeira:

Essa desintegração se completa com a supressão da autonomia quanto ao ensino, sua seriação, métodos e exames. Levada a ordenação externa da escola até esse ponto, é evidente que nada restará senão o automatismo de diretores e mestres, a executar o que não planejaram, nem pensaram, nem estudaram, como se estivessem no mais mecânico dos serviços. 

Ora, mais não será preciso dizer para explicar a pobreza, a estagnação, a total ausência de pedagogia, que vai pelas nossas escolas. De todas as instituições, nenhuma precisa de maior autonomia e liberdade de ação do que a escola. Cumpre dar a cada estabelecimento o máximo de autonomia possível e essa regra é a grande regra de ouro da educação. 

As escolas só voltarão a ser vivas, progressivas, conscientes e humanas, quando se libertarem, assumindo todas as responsabilidades.” 

Eis o que Anísio pensava da administração e gestão das escolas. Sábias e atuais considerações, escritas há quase um século. 

Desde então, o discurso sobre autonomia apenas logrou enfeitar normativos. Abundava no texto dos projetos, mas estava arredada das práticas efetivas das escolas. Isso mesmo: muitas escolas não cumpriam os seus projetos escritos, por não serem autônomas. 

O “sistema” mantinha-se cativo de funcionários legalistas que, à tralha normativa herdada das ditaduras, foram acrescentando despachos, resoluções e outros documentos caraterísticos de uma gestão burocratizada. Se muitas dessas normas fossem analisadas à luz das ciências da educação, concluir-se-ia serem ilegais. 

Mas, como é característico do terceiro tempo da modernidade, emergiam nesse contexto de “renúncia á interpretação”, movimentos de resistência. Professores assumiam o seu compromisso ético com a Educação, reivindicavam a dignidade do exercício de autonomia profissional, propondo a celebração de verdadeiros contratos e termos de autonomia. 

Talvez os critérios de natureza científica e pedagógica passassem, finalmente, a prevalecer nas decisões de política educacional. Talvez os projetos escritos pudessem ser postos em prática. Refiro-me a uma autonomia de duplo significado: a do indivíduo e a do indivíduo em grupo – nunca separadas! De outro modo, o exercício de autonomia conduzir-nos-ia ao absurdo do ideal de autossuficiência caraterístico das sociedades modernas, numa arrogância autónoma que seria a negação da aprendizagem da autonomia e da aprendizagem com os outros.

O vosso avô estivera em Fátima, nos idos de setenta, colaborando na elaboração de um currículo para a escola da democracia. Mas, o milagre de uma nova Educação não aconteceu. Dessa vez, não esperaríamos por milagres.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDIX

Vila Nova de Foz Coa, 14 de fevereiro de 2044

Quase ninguém se perguntava por que razão, regra geral, a criança era incluída num grupo rígido de crianças-alunos a quem o professor ensinava como um todo, no mesmo tempo, fazendo-se ouvir no mesmo código, exigindo o atingir dos mesmos objetivos… por todos. 

Era tão comum este procedimento que dificilmente se avaliava os seus efeitos no tratamento de um ser singular como objeto de ensino estandardizado. Seria forçoso concluir que as diferenças individuais reconhecidas pela psicologia exigiriam um planejamento adequado, individualizado, adaptado a cada ser humano em processo de formação. E esse planejamento só assumiria identidade, quando o sujeito da formação nela participasse. A ordem interna nasceria e se alimentaria de ocupações livremente aceites, com propósitos bem definidos e executados em função do interesse e necessidades sentidas. Obrigar cada um a ser o outro-igual-a-todos correspondia a negar-lhe a possibilidade de existir como pessoa livre e consciente. 

Para Olivier Reboul, ensinar não consistia em inculcar, nem transmitir – seria fazer aprender. E o professor não deveria ser aquele que impunha respostas-padrão, mas aquele que colocava questões. Nesse contexto, ele seria insubstituível, pois, “aprender realmente, é sempre desaprender, para vencer o que nos paralisa, nos encerra, nos aliena”, como Reboul afirmava. 

Existe em cada pessoa uma vontade de autocontrolo das ações e de ficar liberta do controle coercivo do seu comportamento. Se a liberdade se concretiza no desenvolvimento identitário, é obvio que um clima autoritário não promove tal desenvolvimento. Ausubel afirmava que “em comparação com grupos de crianças de grupos dirigidos democraticamente, os alunos que são submetidos a controles autocráticos são mais agressivos, adotam, ao relacionar-se com o líder, atitudes mais submissas, são menos capazes em trabalhos e comportamentos autodisciplinadores, quando é retirada a supervisão direta”.

Mas, rejeitar práticas autoritárias não seria suficiente. Já nos idos de vinte, seria preciso afirmar que a liberdade se aprende com os outros, era evidente a necessidade de refundar o “sistema”.

O Mestre Bartolomeis assim o expressava:

“As crianças beneficiam de influências ambientais e pessoais intencionalmente organizadas. Há que compreender quais os novos moldes em que as relações dos alunos entre si e com os professores se devem organizar, para que possam dar vida a uma comunidade onde o duplo processo de individualização e de socialização encontre o seu ambiente mais favorável. 

Se o autogoverno dos alunos houvesse de excluir a orientação do professor, teríamos de renunciar a vê-lo realizado na escola”.

A educação continuava ainda a ser justificada mais como meio de controlo social do que como instrumento de aperfeiçoamento pessoal. E um dos maiores óbices à mudança residia no permanente julgamento do aprendiz e no dever de obediência hierárquica do professor, o que invalidava qualquer esforço no sentido da autorresponsabilização. 

Seria possível o professor se assumir na dignidade do exercício de autonomia?

Era com os pais e os professores que a criança encontrava os limites do controlo, que lhe permitisse progredir em autonomia. Essa autonomia era liberdade de experiência e de expressão, dentro de um sistema de relações e de trocas sociais, que compreendia ações de ajuda do professor. Sem socialização não seria possível praticar uma didática de autogoverno, de trabalho autónomo. 

Em que consistia tal “didática”?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDVII

Leiria, 12 de fevereiro de 2044

Assisti ao desaparecimento de centenas de notáveis projetos. Todos estavam devidamente fundamentados na lei e numa ciência prudente. Também todos soçobraram por falta de sustentabilidade financeira. Duraram enquanto durou o voluntariado, a boa-vontade, a filantropia, até mesmo o assistencialismo. 

Enquanto a mercantilização da “escola pública” prosperava, projetos com potencial de mudança definhavam por falta de apoio. 

Ao cabo de trinta anos, a sobrevivente Escola da Ponte viu reconhecida a sua autonomia. Ela tinha raízes num movimento comunitário dos anos setenta, nas famílias que confiaram a educação dos seus filhos à Escola Pública da Ponte. Passou pela publicação de uma Lei de Bases e de um Enquadramento Jurídico da Autonomia das Escolas (Lei 43/89 de 1 de fevereiro), pela publicação da Lei da Autonomia, já em 1997, e a celebração de um contrato, já no século XXI (em 2004). Tinham passado trinta anos de resiliência.

Foi árduo o processo. E só conseguimos alcançar o estatuto de autonomia, porque, a par de uma prática reconhecida como de excelente qualidade, criamos sustentabilidade pedagógica, científica. Aqui vos deixo mais um pouco do textinho redigido nos anos oitenta. Que vos faça bom proveito, apesar de já ser bem antigo.

O meu artesanal textinho começava por afirmar que em toda a aprendizagem havia dependência. Os programas eram “impostos” e era preciso compreender a dimensão da dependência, para poder aprender. 

“Se o modelo (dito) tradicional estabelece um mundo de experiências totalmente subordinado a um controlo gerador de múltiplas dependências, que dizer de modelos (ditos) alternativos ao modelo tradicional? 

Gagné, por exemplo, considera o aluno como inapto para agir por si próprio: “Manter o aluno interessado no que está fazendo e nas habilidades que vai adquirindo é tarefa que requer grande perícia e capacidade de persuasão de uma pessoa, geralmente do professor, que representa o mundo da experiência e da sabedoria do adulto”.

Para este teórico, não restava qualquer dúvida de que ao aluno competia adquirir habilidades e ao professor a ciclópica tarefa de o manter interessado, a capacidade de persuadir, de o motivar… de o seduzir. 

Gagné admitia ser mais fácil ao professor levar a cabo a sua dura missão, se comunicasse com um único estudante de cada vez. E fazia apelo à “instrução programada”, como se tudo fosse programável em função do binómio estímulo-resposta. 

Vai ao ponto de afirmar que “o resultado é também, no sentido verdadeiro, exterior à pessoa que aprende” E ainda esclarece que ensinar implica agir sobre o aluno “com o propósito de: dirigir-lhe a atenção e as ações e guiar o seu pensamento para determinadas áreas”. 

No âmbito das teorias associacionistas, Skinner criara uma versão muito particular de “individualização”, que Gagné reproduzia. Era uma individualização que fazia apelo a uma atividade mecânica e proscrevia a autonomia. 

É Skinner que afirma ser necessário manipular as condutas dos outros para o bem geral. Vai mais longe na defesa da utilização do “reforço positivo”, ao dizer que os indivíduos controlados se sentem livres. 

Considero que Gagné estava certo ao afirmar que um sistema educacional se destinava a “provocar modificações nas capacidades e atitudes”. Resta saber a que “modificações” se referia. Não o disse. 

Nos idos de vinte, o textinho que escrevera, há meio século, mantinha-se atual, apenas desgastado por ação de uma das sete pragas, que afetavam a Educação: o teoricismo. 

Os teoricistas teriam noção do dano que causavam?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDVI

Campo de Ourique, 11 de fevereiro de 2044

Falemos, então, de… autonomia.

Num dos “encontros de sábado”, conversamos sobre condições sine qua non de sustentabilidade: o exercício de autonomia pedagógica a par da autonomia financeira, no pressuposto de que a autonomia do sujeito de aprendizagem seria da mesma natureza da autonomia do professor e da escola. Mas, como assegurar autonomia a projetos de mudança e inovação? 

Não presumia ter encontrado resposta, uma solução, mas já tinha ajudado a criar grupos de trabalho, dispositivos como os círculos de aprendizagem e a base teórica de uma autonomia comunitária, no quadro de uma nova construção social. 

Netos queridos, há cerca de meio século, redigi um textinho, que aqui transcrevo, esperando que não seja para vós maçador.

Posicionemo-nos eticamente face à pedagogia. Pode considerar-se uma pedagogia que busque apenas uma liberdade racional, uma pedagogia que vise apenas a liberdade pulsional, ou uma outra que promova a integração de ambas, na realização equilibrada do homem como indivíduo. 

Acresce (claro!) a necessidade de se considerar a dimensão social. Se a näo-directividade ingénua descura a influência da sociedade sobre o indivíduo, a pedagogia autoritária descura a possibilidade de autonomia no educando. 

Estes extremos não realizam a tarefa fundamental de dotar os aprendentes com uma adaptação crítica às condições sociais, porque o conceito de liberdade está embotado de equívocos. E, à semelhança de qualquer nova pedagogia, a näo-directividade foi assimilada na sua exterioridade e a escolástica destituiu-a de qualquer significado transformador.

O que é, concretamente, a liberdade de uma criança? Diz-nos Reboul que “a psicologia não pode responder-nos porque não existe uma ciência da liberdade, dado que esta está para além de todos os determinismos, a psicologia pode dar-nos preciosas indicações sobre as condições e os obstáculos de uma educação para a liberdade”. As práticas alheias ao educar para a liberdade e pela liberdade são anacronismos anteriores a Carl Rogers que somente refere a necessidade da realização de equilíbrios psicológicos como a “prática simultânea da afirmação de si e da adaptação ao próximo”. 

A liberdade pode ser ensinada, não no recurso à didática, mas a uma gramática de ensino da liberdade. Esse ensino não passará tanto por uma didática específica, quanto por uma gramática que explique as transformações. Neste sentido, os modelos de näo-directividade ingénua são tão falíveis quanto aqueles que pressupõem controlo externo, porque nem tudo se passa, exclusivamente, entre professor e aluno. É o Mestre Morin quem o diz: “o sujeito emerge ao mesmo tempo que o mundo, a partir da auto-organização, onde a autonomia, individualidade, complexidade, incerteza, ambiguidade se tornam quase caracteres existenciais”. 

O meu amigo Luís era um dos raros diretores de agrupamento de escolas, que assumira um compromisso ético com a educação. Com perspicácia e bondade, ia tentando contornar burocráticas armadilhas. Eu compreendia a intenção do meu amigo, mas já vira tentativas semelhantes se saldarem por insucessos. 

Um decreto tinha aberto caminhas de autonomização. Mas, no quadro de uma regulamentação instrucionista, a assunção de autonomia era “missão impossível”. 

Lancei avisos, aconselhei-o, mas respeitei as suas decisões. Só não conseguia entender a falta de ética de outros diretores.

Se a autonomia estava a ser, gradual e responsavelmente, assumida na “Manuel da Maia”, o que impedia que o fosse em outras escolas?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDV

Paranhos, 10 de fevereiro de 2044

E foi, então, que a minha amiga e irmã Maria me presenteou com o que dissera uma cartomante, que tomar decisões era a melhor forma de prever o futuro. Aproveitei a “deixa”, para tomar decisões e agir praxeologicamente. E para pedir que, acaso discordassem daquilo que eu escrevesse ou fizesse, me dessem conhecimento das dissidências e do modo como, dialogando. as poderíamos sanar.

Certamente, estareis recordados de vos ter falado que uma profunda crise ética se instalou, quando concluí que, ensinando a ler do único modo que eu sabia ensinar, os meus alunos continuariam analfabetos. Só conhecia um “método”, aquele com que me tinham ensinado, porque o modo como o professor aprendia é o modo como o professor ensinava. O modo! 

Os alunos que me foram confiados já tinham reprovado várias vezes, por permaneceram analfabetos, porque os professores anteriores os tinham tentado ensinar pelo mesmo “método”. 

Inscrevi-me em cursos de preparação de alfabetizadores, onde, supostamente, eu encontraria solução para a minha “dificuldade de ensinagem”. Ledo engano! Aqueles formadores não faziam a mínima ideia de como se ensinava a ler. 

Nada daquilo que palravam tinha a ver com a sua prática. Eram professores universitários, meros replicadores de teoria, de algo que poderíamos ler num livro, sem necessidade de pagar para os ouvir. 

Há mais de cinquenta anos, os escutava repetir as mesmas ladainhas. Percorria as salas de aula das universidades, os salões onde decorriam palestras, auditórios lotados de professores que, como eu, procuravam contribuições para a melhoria do exercício da profissão. No final das palestras e formações, os meus colegas de chão de escola concluíam: “É tudo teoria”. E era mesmo!

Hesitei entre aprender outros “métodos”, ou sair da profissão. Optei por aprender a ser alfabetizador. Fiz-me autodidata e me refiz. Estudei Psicologia da Aprendizagem, Psicologia da Cognição, Psicologia da Memória, dez psicologias.

Aprendi a elaborar repertórios linguísticos, quando me apercebi que, por volta dos quatro ou cinco anos, as crianças já sabiam ler. Por exemplo, “Big Brother” e “McDonalds” em inglês, “Coca-Cola” em português e até palavras japoneses sabiam ler: “Toyota”.

Aprendi a determinar a lateralidade predominante, tendo identificado cerca de duas dezenas de alunos esquerdinos, que tentavam escrever com a mão dextra, bem como “estilos de inteligência”, num tempo em que o Howard Gardner ainda não tinha iniciado os seus estudos. 

E no mesmo ano em que a Emília Ferreiro iniciou os seus estudos sobre alfabetização, eu aprendi mais uma dúzia de “métodos”: global de palavras, global de frases, global de contos, o “Tu já lê” do Paulo Freire, o das “28 palavras”, o Jean Qui Rit” e outras abordagens fonomímicas, metodologias fonossintéticas, silábicas…

“Especializado” com alfabetizador, em pouco tempo, consegui criar leitores. A prática do “Método Natural de Leitura” de Freinet, me levou a aderir ao Movimento da Escola Moderna. Instalei ficheiros autocorretivos, a Imprensa Freinet, a classe cooperativa, a Assembleia, mas tudo… em sala de aula.

 

Uma profunda crise ética me possuiu, quando compreendi que, em sala de aula, não conseguiria garantir a todos os meus alunos o direito à educação. Fui ajudar a fazer uma escola sem sala de aula.

Ao longo de cinquenta anos, questionei:

Se a Ponte, sem sala de aula, provou a possibilidade de a todos ser assegurado o direito à educação, porque seria que os ministérios continuavam a construir salas de aula e a ensinar os professores a “dar aula”? 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDIV

Arapiraca, 9 de fevereiro de 2044

Atravessando o rio São Francisco, de Sergipe para Penedo, segui para Arapiraca, colhendo pelo caminho suaves recordações. Estávamos no fevereiro de vinte e quatro. As palavras de Mia Couto me impeliam ao agir imediato 

“”A infância não é um tempo, não é uma idade, uma coleção de memórias. A infância é quando ainda não é demasiado tarde.”

A urgência se me impunha. Acatava o conselho do amigo Nóvoa de abrir o olhar à necessidade de “abandonar uma atitude defensiva, excessivamente prudente e auto-justificativa”. Três situações justificavam intervenção imediata. A corrupção moral impedira a continuidade do projeto de Mirantão. A Fabi continuava exposta ao assédio moral de uma diretoria e uma comunidade nascente corria risco de acabar.

Num dos “encontros de sábado”, decidi partilhar com educadores éticos situações que apenas careciam de ajuda, de solidariedade ativa. Essa era a hora de não nos acomodarmos ao mundo como ele era, nem à vida como no-la impunham. Essa era a hora inadiável de exigir a justiça possível e de realizar um ideal transformador. Não poderíamos “deixar para depois do Carnaval” o exercício de solidariedade.

Em breve vos contarei a estória de uma comunidade de aprendizagem. Hoje, apenas a refiro como exemplo acabado de potencial vítima do “projeto” a que Darcy se referia, quando perguntava a que se devia a crise da educação. 

Nesse tempo, a administração educacional era (propositadamente?) ineficiente e moralmente corrupta. Impunha um modelo educacional obsoleto e que jamais garantiria a todos o direito à educação, colando-lhe paliativos “maker”, “híbridos”, organizando inúteis e dispendiosas conferências, congressos, seminários. 

Era por demais evidente a falência do “sistema de ensino”. O erário público era saqueado por abútricas empresas, por (de)formadores, por eufemísticos “centros de estudo” (de “explicações”, de “reforço”) e por palestrantes de PowerPoint. 

Os projetos com potencial de mudança definhavam por falta de apoio. Alheios ao drama, os meus companheiros das ciências da educação (teoricamente) se debruçavam sobre a questão. Entre eles o Zé Alves, que, por essa altura, publicava no antigo Facebook um artigo com o título “A autonomia (relativa) e as possibilidades de desenvolvimento profissional e organizacional”:

“No seu sentido etimológico e que continua a ser pertinente, a autonomia é a capacidade e a possibilidade das pessoas e das organizações se darem as próprias normas de ação. Ter a capacidade e a possibilidade de optar, decidir, construir os regulamentos em função das situações, dos problemas, das especificidades da ação concreta. 

Como refere Weber, “a autonomia significa, ao contrário da heteronomia, que a ordem do agrupamento não é imposta por alguém de fora do mesmo e exterior a ele, mas pelos seus próprios membros e em virtude dessa qualidade”.

Como se vê, este poder assenta no pressuposto de que as pessoas e as organizações são capazes de assumirem a liberdade e o risco da tomada de decisão, podem ser coautores das regras de conduta; e, igualmente se compreenderá, que este saber poder é limitado e relativo. Porque ninguém sabe tudo, ninguém é inteiramente livre de agir, está condicionado pelos saberes e liberdades dos outros e pelas normas legais e sociais em que se movimenta e de que é coautor. Daí que se aceite que a autonomia assuma uma natureza pluridimensional, relacional, relativa, processual.”

Olha a novidade!

Porque seria que se continuava a sofisticar o discurso e a aceitar a continuidade da miséria das práticas?

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola MDIII

Piranhas, 8 de fevereiro de 2044

Ainda andava por terras onde o São Francisco se espraiava, antes de chegar ao mar, à conversa com educadores, que me levaram a fazer referência a um estranho fenómeno. Sendo a profissão de professor eminentemente feminina, porque seria que, no elenco dos mais importantes pedagogos, divulgado em teses, artigos e livros, apenas surgiam os femininos nomes de Ferrero e de Montessori? Como se não houvesse matéria para reduzir a quantidade de referências a homens (para três ou quatro, por exemplo), para integrar no “quadro de honra” mais uma dúzia de educadoras. 

Não faltavam exemplos, na história da educação do século XX: Armanda Alberto, Irene Lisboa, Maria Nilde, Cecília Meireles, Magda Soares, Nise da Silveira… só referindo aquelas que já tinham deixado a nossa companhia. Propositadamente, não referirei as do século XX, mas uma ilustre desconhecida, que viveu no século XIX. 

Louise Michel nasceu em 1830 e faleceu em 1905. Foi professorapoetisaenfermeiraescritora

Preocupada com a educação infantil, lecionou em Paris, até 1856. Aos 26 anos, já era autora de uma extensa obra literária, política e educacional, com foco nos movimentos sociais. Participou na Comuna de Paris, tendo sido presa e deportada para a Nova Caledônia. Em 1880, retornou à França, participou de inúmeras iniciativas libertárias, sendo vigiada e sofrendo prisão, frequentemente.

Após seu falecimento, foram muitas as homenagens, sendo considerada uma das mais notáveis feministas, sindicalistas e educadoras libertárias do século XIX, preservando tal reconhecimento até à atualidade.

Na adolescência, Louise lia Rousseau e Voltaire, precocemente desenvolvendo um temperamento altruísta. Em 1850 fez um curso de magistério, mas foi impedida de lecionar nas escolas estatais por se recusar a jurar lealdade para Napoleão III e seu império. Essa recusa é idêntica àquela que Agostinho da Silva assumiu, nos anos quarenta do século passado e que lhe valeu o exílio no Brasil (felizmente para o Brasil!)

Em 1852, Louise fundou uma escola livre, onde lecionava, ensinando princípios republicanos — inclusive com aulas de canto onde os alunos aprendiam a cantar a Marselhesa. A escola foi obrigada a fechar, por pressão das autoridades. No fim de 1854, abriu outra escola. Por ensinar princípios libertários, continuou a ser perseguida pelo governo. 

Mudou-se para Paris, para lecionar num colégio interno para moças, e se dedicar a atos de solidariedade. Em 1865, fundou uma escola (a que hoje daríamos a designação de escola de tempo integral, pois funcionava doze horas por dia), ao mesmo tempo que apoiava a criação de escolas e orfanatos laicos.

A educação assumia grande importância no pensamento libertário do século XIX. A sua proposta de pedagogia diferenciada influenciou muitos pedagogos do Movimento da Escola Nova.

Nessa época, Louise Michel conheceu Victor Hugo, um dos mais famosos e respeitados escritores da época, que a retratou como personagem em obras sobre mulheres excecionais com destinos trágicos.

Durante a Guerra franco-prussiana, quando a fome se abatia sobre Paris, Louise Michel criou um refeitório comunitário para as crianças. Condenada, presa, degredada, onde quer que a vida a levasse, Louise foi fonte de inspiração de uma pedagogia libertária, que chegou ao Brasil com imigrantes europeus. A primeira escola libertária foi fundada em 1905, em São Paulo, por imigrantes italianos, o ano do falecimento de Louise Michel. 

Nos idos de vinte, quantos professores teriam ouvido falar de Louise Michel?

 

Por: José Pacheco

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