Perversões

Volto ao assunto. Faço-o porque, apesar dos pesares, continuo a acreditar que, em algum momento, se iluminará a mente dos áulicos e que ocultos interesses não prevalecerão sobre o bom senso. Para que a Base Nacional Comum Curricular deixe de ser perversa. Nesta curta crônica, analisemos apenas uma das perversões nela contidas.

Na década de 1990, integrei uma comissão do Conselho Nacional de Educação encarregada de emitir “parecer” sobre uma proposta de base curricular. A avaliação de um projeto de “gestão curricular flexível”, que antecedeu a redação da proposta de base curricular, apontava a necessidade de alteração do modelo escolar. E o “parecer” sobre a proposta de lei, por nós elaborado, reiterava a recomendação do relatório de avaliação: para concretizar a base curricular no chão da escola, seria necessário substituir práticas de “ensino tradicional” por práticas coerentes com o discurso das ciências da educação.

A recomendação foi ignorada. A lei foi aprovada. Visava-se a melhoria da qualidade da educação, mas a educação de Portugal não melhorou. E, em 2017, o Ministério da Educação de Portugal lançou nas escolas mais um projeto de “gestão flexível do currículo”, isto é: perdemos vinte anos de oportunidades de mudança.

Tive oportunidade de intervir no CNE, no Senado Federal e em outras instâncias de poder, tecendo crítica construtiva, fundamentada. Apresentei argumentos, que não foram contestados. Porém, tal como no Portugal de há 20 anos, falei para orelhas moucas.

Foi dito pelos ilustres autores da base curricular que o seu conteúdo é mera referência. E que, no exercício da sua autonomia, as escolas fariam adaptações. É bem verdade que o termo “autonomia” é referido 57 vezes na proposta de base curricular. Porém, omite-se o fato de o artigo 15º da LDBEN continuar sem efeitos práticos e que o “dever de obediência hierárquica” nega às escolas o direito à autonomia. Daí que as escolas devam ficar atentas a esta e a outras perversões, em que a base curricular é fértil.

Reafirmaram os autores ser o conteúdo da base mera referência. Então, não será obrigatório assegurar a ensinagem de toda a base? O seu conteúdo é apenas “uma referência”? Se assim for, por que se deram ao trabalho de acrescentar descritores? O amigo Nóvoa já nos alertou para o fenômeno do “transbordamento curricular”, mas, só considerando as metas do 4.º ano de escolaridade, os descritores são quase 100!

As ditas “habilidades” – há muita habilidade no uso de eufemismos – serão o objeto central das avaliações nacionais, por esta­rem associadas a descritores.

Não nos iludamos, porque é gato escondido com o rabo de fora, perversão do discurso. Na avaliação de larga escala, nas provas e exames, todos os alunos terão de saber, por exemplo, “interpretar anamorfoses geográficas”, “identificar efeitos de sentido do uso de orações adjetivas restritivas e explicativas em um período composto”. Ou fazer decoreba das produções da Senegâmbia, no 8º ano.

Por que se estabelece que determinada “habilidade”, ou “conteúdo” seja “ensinada, ou “aprendida”, no quarto, ou no oitavo ano? Essa determinação não constituirá infração do artigo 23º da Lei de Bases?

Quero acreditar que as supostas perversões não o sejam. E, esperançosamente, aguardo que o debate se reacenda.

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