Ariquemes, 29 de setembro de 2040
Quando o setembro do distante 2020 se acabava, o mundo superava a triste marca de um milhão de mortes por coronavírus. A OMS alertava para a possibilidade de as mortes duplicarem e poderem alcançar a marca de dois milhões de óbitos, acaso as medidas para evitar a propagação do vírus não fossem mantidas.
Uma cidade de Goiás decretava lockdown – “Só saia em caso de extrema necessidade!” – proibindo a aglomeração de pessoas em qualquer ponto da cidade, incluindo ruas e calçadas. No decreto, a prefeitura determinava que ficavam “absolutamente suspensos eventos públicos e privados de qualquer natureza” e até visitas a pacientes internados no hospital municipal.
Na contramão de recomendações (e da história), seres humanos eram empurrados para espaços onde o vírus podia circular à vontade, causando sofrimento e morte. O contágio progredia nas aglomerações em bares, festanças, estádios de futebol, nas igrejas e… no “regresso às aulas”. Os danos colaterais causados numa economia predatória forçavam a elaboração de planos para o “regresso às aulas”. E a peste instrucionista voltava em força.
Era compreensível a preocupação expressa pela UNICEF: pelo menos um terço das crianças em idade escolar – 463 milhões de crianças em todo o mundo – foi incapaz de acessar o ensino remoto quando a Covid-19 fechou os prédios das suas escolas. Embora os números do relatório apresentassem um quadro preocupante sobre a falta de aprendizagem remota, a UNICEF alertava que a situação era muito pior do que a que os dados apresentavam. Mesmo quando as crianças dispunham de tecnologia e ferramentas, não eram capazes de aprender remotamente por meio das plataformas, dado que… havia “falta de apoio para seguir o currículo online ou a sua transmissão”.
Estava implícito nessas conclusões que o prejuízo era muito maior do que aquele que o relatório apresentava. A praga da aula alastrara para além dos muros de “escolas” fechadas. Ter passado a aula presencial para dentro das casas fora tão inútil quanto dar aula dentro de um prédio a que chamavam escola.
Esse tempo assemelhava-se a um longo pesadelo. Busquei refúgio na escrita e naquilo que chamei de “partilha de beleza”. Enviava pedaços de “boniteza” a quem as merecia. A beleza está nos olhos de quem vê, nos ouvidos de quem sabe escutar, no coração de quem sente. Naquele tempo, pensar era estar doente dos sentidos. Pensar nos impedia de experienciar o amor e a liberdade, que, juntos, nos conduziam por caminhos da resistência.
Sabíamos que a educação é um ato estético e que éramos agredidos pela degradação do sensível. Para não desesperançar ou desistir da vida, valia-nos o concerto dos pássaros, nas suaves manhãs e nos fins de tarde no meu Jardim do Éden, saboreando o encanto de pequenas coisas, que fazem grandes os dias. A beleza nos salvava.
Nos tenebrosos tempos da guerra civil espanhola, o catalão Pablo Casals recusou viver sob a ditadura franquista e se exilou. Durante a Segunda Guerra Mundial, o gênio do violoncelo foi ameaçado e perseguido pelos nazistas. Pouco antes de falecer, deixou escrito:
“Eu estou sempre a renascer. Cada nova manhã é o momento de recomeçar a viver. Há oitenta anos que eu começo o meu dia da mesma maneira – e isto não significa uma rotina mecânica, mas algo de essencial para a minha felicidade. Acordo, toco dois prelúdios e uma fuga de Bach. É uma maneira de retomar o contacto com o mistério da vida, com o milagre de fazer parte da raça humana. A música que toco é sempre a mesma – ela ensina-me sempre algo de novo, fantástico, inacreditável.”
Por: José Pacheco
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