Santa Senhorinha, 2 de abril de 2041
Volto a citar o amigo Wilson:
“Faltando um quarto de século para o fim do século XX, aparecia em Portugal uma outra maneira de se fazer funcionar uma escola, algo diferente daquela que se estruturou após a revolução industrial. Diferente em muitos aspectos. Numa primeira olhada, destaca-se o que não tem: não tem aula, não tem turma, não tem ano e, portanto, ninguém ali repete o ano, assim como ninguém “passa de ano”. Crianças não vão ali para assistir aulas: vão para estudar e aprender. Professores, por sua vez, não estão ali para dar aula: estão ali para acompanhar, ajudar alunos a aprender. Professores não aplicam provas, alunos não fazem provas, professores não corrigem provas, nem dão notas. Fazem avaliação!
Num segundo olhar, são muitas coisas que não costumam ser encontradas em escolas: tutor, plano de estudos, grupos de responsabilidade, assembleia, “preciso de ajuda”, “eu já sei”, “acho bem”, “acho mal”, direitos e deveres elaborados pelos alunos.
O pai Wilson conhecia o teor do projeto e as vantagens da “passagem do centro no professor para o centro no aluno”. Como pai, participava ativamente no processo de negociação do primeiro contrato de autonomia celebrado entre uma escola e o poder público. Tomara consciência de que, tradicionalmente, o espaço social de intervenção dos pais nas escolas era exíguo. Por isso, contribuía para a elaboração da matriz axiológica do projeto.
A criação de um núcleo de projeto marcava o início da reconfiguração das práticas. Os educadores que o constituíam procediam à identificação de valores comuns, porque os seres humanos são, implícita ou explicitamente, conduzidos por valores, que comportamentos e atitudes refletem. Um valor é um fundamento ético, que norteia (ou suleia) o comportamento humano.
Cada educador elaborava uma lista de valores, que considerava serem fundamentais nas suas vidas. Depois, verificar-se-ia se haveria valores comuns às várias listas. Esta tarefa poderia ser realizada com recurso a uma dinâmica chamada “árvore dos valores”. Tomava forma a matriz axiológica do projeto.
A escola pública da Ponte era considerada uma escola ”anormal”, porque nela os pais tinham voz e o poder de decidir. Se nas escolas ditas “normais”, os pais dos alunos não sentiam a escola como coisa sua, por que deveriam respeitá-la? Por que respeitariam regulamentos em cuja elaboração não participaram? Em quantas escolas os representantes dos pais dos alunos participavam nos órgãos de direção, administração e gestão, exercendo em pleno as suas funções e fazendo valer os seus direitos? Naquele tempo, talvez apenas a Ponte. E com tristeza o digo.
Em 2004, extinguimos órgãos unipessoais e criamos conselhos. Com a celebração de um contrato de autonomia, o diretor (que tinha dever de obediência hierárquica) foi substituído por um Conselho de Direção, coordenado por um representante dos pais (que não estavam obrigados a obedecer). Nos anos seguintes, o contrato de autonomia viria a ser descaracterizado pela prepotência do ministério. Mas, os pais sempre estiveram presentes, quando foi preciso decidir o destino do projeto.
Li num jornal o comentário de uma professora que, ao cabo de mais de trinta anos de serviço, se viu envolvida na aventura de criar um “agrupamento de escolas”:
“Há dias, houve uma reunião e estava lá um representante dos pais. Fiquei espantada! Com esta idade, nunca tinha visto nenhum!”
A exclamação só constituiria surpresa para quem não vivesse o quotidiano de escolas “normais”, onde os pais não passavam da portaria.
Por: José Pacheco
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