Vale de Gouvinhas, 13 de março de 2042
Na década de vinte, em pleno tempo da proto-história da Educação, a “sala de aula” ainda era o espaço privilegiado da ensinagem, era nela que se desenrolava a quase totalidade do drama escolar. Como alguém, nesse tempo, a ousou descrever, a sala de aula era um “lugar onde os professores fingiam que ensinam, enquanto os alunos fingiam que aprendiam”.
Por essa altura, envolvi-me numa polêmica sobre “aulas de substituição”, propondo que não houvesse “aulas de substituição”, mas a substituição das aulas. A polêmica teve origem num eloquente evento. Aqui o conto.
As mensagens de celular e na internet eram peremptórias:
“Greve de alunos contra as substituições. Mensagem a rodar. Passem!”
Os alunos do Ensino Secundário faziam um dia de greve às aulas de substituição. A televisão, sempre prestimosa a mostrar as feridas abertas do sistema entrevistou jovens grevistas. E eu escutei estas pérolas, num telejornal: “Os profs não sabem o que estão a fazer nas salas. Ou acabam com as aulas de substituição, ou metem lá profs competentes!
Fazemos greve porque não gostamos das aulas de substituição. Também, porque os professores não gostam de ficar na escola até mais tarde.
Nas aulas de substituição, nós ficamos a olhar para as paredes, ou a jogar às damas e às cartas.
Essas aulas não servem para nada. Põem-nos dentro de uma sala com um setôr que não sabe nada do que está lá a fazer. Às vezes, até nos põem a fazer testes e eles nem sabem a matéria dos testes.”
Os estudantes organizaram manifestações para chamar a atenção da ministra para a inutilidade das aulas de substituição. E não tiveram pejo em afirmar que “vão para as salas de aula, com os professores substitutos, jogar à sardinha, ou contar anedotas”, acrescentando:
“Em vez de estarmos fechados numa sala de aula, devíamos estar a aproveitar os recursos que a escola nos oferece, como a biblioteca, as salas de computadores ou as salas de estudo”.
Registaram-se habituais desacatos, quando alunos impediram a entrada dos professores numa escola e agrediram um agente da polícia.
Registaram-se as habituais declarações, quando um governante afirmou:
“Há normas e orientações da parte do Ministério, que permitem assegurar as aulas e atividades de substituição com qualidade e maior significado pedagógico. Há todas as condições para esse efeito. É, fundamentalmente, uma questão de organização”.
O governante apenas tinha razão na segunda das frases. Em declarações aos jornalistas, garantiu:
“A solução não passa por acabar com as aulas de substituição”.
Discordei. Era um grave equívoco pensar-se que se poderia melhorar as escolas aumentando o número de aulas, ou melhorando o modo como elas eram “dadas”.
O bricolage legislativo criara mais esse artefato das “aulas de substituição”. Melhor fora não haver, substituindo as aulas por dispositivos organizacionais que contribuíssem efetivamente para a melhoria das aprendizagens. Uma escola poderia melhorar-se se, da garantia de aula dada para todos se passasse a garantir uma escola de todos e para todos. Se os professores assumissem um projeto de autonomia profissional. Se a escola se reconfigurasse.
Para que não voltassem a apelidar-me de “teórico”, evocava uma prática. Eu conhecia uma escola onde nunca houvera “aulas de substituição”, mas onde nunca um aluno ficara “sem aula”. Nem faziam falta, dado que os alunos aprendiam bem mais e melhor sem elas. Essa escola nunca adotara bricolage ministerial
Para ser mais preciso: nessa escola nem sequer havia aulas, porque deixara de haver… sala de aula.
Por: José Pacheco
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