Castelo Branco, 16 de março de 2042
Nos idos de março de há vinte ano, foi breve a passagem por terras albicastrenses, mas tempo suficiente para testemunhar o quanto os educadores da Beira Interior se movimentavam para reivindicar cidadania plena.
Eram evidentes as obscenas assimetrias sociais de que padecia o interior do país. Mas o pecado maior era o de muitos educadores se resignarem a um estatuto de menoridade, de aceitarem viver num país desigual, à espera de projetos lançados, quando a Europa dita comunitária abria os cordões à bolsa.
De passagem por Castelo Branco, revivi momentos de fecunda aprendizagem. Reencontrei o Valter e outros amigos de longa data. Com o amigo João, a Patrícia, a Zélia e outros educadores, aprendi o que desaprendera em vinte anos de voluntária diáspora. O país tinha mudado, se europeizara, mas padecia dos mesmos males de países ditos subdesenvolvidos, eufemisticamente apelidados de “em vias de desenvolvimento”.
Nas minhas travessias do Atlântico, reconheci o quanto e educação lusa se atrasara, relativamente àquela que se fazia no sul. Mas, também, me apercebi de que, no interior português despovoado, surgiam focos de inovação, que contrastavam com pseudo-inovações oferecidas por empresas e financiadas por ministérios. Por isso, me deixei ficar por terras do norte, durante alguns meses, convidando educadores para o intercâmbio com uma nova educação vinda do sul.
Depois, voltei ao Brasil, ao encontro de outros projetos, que o Brasil desconhecia. Numa escola, que tinha Maria Montessori por referência maior, participei num evento comemorativo dos cem anos da fundação da Casa dei Bambini. Todos os educadores presentes conheciam a proposta montessoriana e dignamente a celebravam.
Ousei fazer uma pergunta marginal à comemoração:
“Quem conhece a obra de Eurípedes Barsanulfo?”
Entre as centenas de educadores presentes, somente três braços se ergueram. O nome não lhes era estranho, mas nada sabiam do projeto de Eurípedes. A perplexidade traiu-me, o tom da minha voz alterou-se:
“Estamos a homenagear alguém que, em 1907, fundou uma escola, na Itália. E nada fazemos para homenagear um brasileiro que, também em 1907, fundou uma escola tão ou mais inovadora, em terras brasileiras?”
Perante o pesado silêncio, prossegui com o questionamento:
“Quem conhece a obra de Agostinho da Silva?”
Apenas uma professora “tinha ouvido falar”. Apercebi-me do despropósito da minha agressividade. Respirei bem fundo, para recuperar a serenidade e não ser injusto para com aqueles educadores, que se reuniam para celebrar e partilhar. Disse-lhes que fora Agostinho da Silva quem fizera a tradução da obra de Montessori para o português do Brasil. Surpresa geral!
A minha irritação desvaneceu-se, quando manifestaram interesse em saber quem fora Eurípedes. Falei-lhes do projeto que esse insigne educador, contemporâneo de Montessori, desenvolveu. Falei-lhes da adopção de classes mistas, que o fez defrontar preconceitos da época da abolição de provas tradicionais. Falei de uma escola sem castigos, das aulas de Filosofia, de Botânica, do teatro e de outras artes, dos passeios de observação da natureza, da contratação do primeiro professor negro e da primeira professora brasileira.
Parecia ser sina de Portugal e do Brasil desprezar o que era seu, para importar modas do estrangeiro. Mas, sem prescindir de Montessori e de outras referências estrangeiras, educadores brasileiros e albicastrenses reconstituíam preciosos legados, descobriam uma produção científica até então ignorada: a dos seus.
Por: José Pacheco
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