Palmela, 3 de junho de 2042
Há alguns anos, andando por terras da margem sul, saboreando o esplêndido projeto concebido pela amiga Elsa e com ele muito aprendendo, instaram comigo para que escrevesse a história da Ponte.
Nunca me atrevi a fazê-lo, nem a farei. Era uma tarefa ingrata, porque ela não se deixava historiar. Os “desvios de rota” – pelo menos, era assim que eu interpretava alguns “descaminhos e inações” – não me permitiam descrevê-la estática. Fiquei pela redação de artigos dispersos, esperando que alguma boa alma os quisesse organizar. E foi isso que aconteceu.
A partir da década de oitenta, a nossa escola foi objeto de curiosidade. Milhares de visitantes ali rumaram, talvez em busca de inspiração. Depois, foi objeto de estudo. Afinal, reconhecer-se-ia que a Ponte tinha sido a primeira escola a conseguir “ir além do Bojador”, como diria o Fernando, que foi Pessoa e dezenas de heterónimos.
No início do século, outro Fernando assim se referia à Escola da Ponte:
“Conversas revelam, muitas vezes, um conhecimento diferente — um conhecimento da escola vista de fora, por quem não vive no seu seio e para quem ela se apresenta como uma realidade mais estranha. E este conhecimento da estranheza é essencial, sobretudo quando o que está em causa é uma realidade que tende a ser encarada como naturalmente boa independentemente das suas práticas e experiências concretas.
Poderia contar vários episódios reveladores deste tipo de conhecimento, mas refiro aqui apenas uma conversa recente com um casal jovem que tem uma filha de seis anos que acabou de entrar na escola.
Como outros pais e mães, estes estão interessados na vida escolar dos filhos. Neste caso, pude aperceber-me que eles não estão apenas interessados, como já estão também bastante preocupados, apesar de a menina só ter entrado para a escola há duas ou três semanas. Contavam-me, receosos, que a professora lhes dissera que a filha estava atrasada no i. Poderíamos discutir amplamente o significado desta expressão, que é profundamente reveladora de concepções e práticas de ensino, mas o que provocou maior estranheza foi o facto de eu próprio ter verificado que a criança identificava e desenhava o i perfeitamente. Durante a conversa, pude perceber, no entanto, que não era isso que estava em causa. Estar atrasada no i significava que a criança não escrevia tantas linhas de iiiii quantas a professora pretendia.
Este episódio ilustra uma das características mais enraizadas da forma escolar tradicional – o trabalho desprovido de sentido, baseado na mera repetição – que as sucessivas reformas educativas das últimas décadas conduzidas pelo Ministério da Educação não conseguiram alterar, apesar de tanta retórica e de tanta legislação produzidas.
Neste período, têm-se desenvolvido, apesar de tudo, experiências que questionam profundamente a forma escolar tradicional e mostram que a escola da repetição não é uma fatalidade e que é possível construir uma escola com sentido para os saberes e para as pessoas que os trabalham no contexto escolar.
A Ponte é, talvez, o exemplo mais marcante de uma escola com sentido que nasceu e se desenvolveu no período democrático em Portugal, com a qual temos muito a aprender. E é possível aprender com ela, não apenas nas suas dimensões endógenas, mas também sobre os mecanismos das reformas educativas e de outras decisões do Ministério da Educação que frequentemente criam dificuldades, inviabilizam e até destroem experiências e projetos inovadores, tal como está a acontecer hoje em relação ao projeto educativo da Escola da Ponte.”
Por: José Pacheco
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