Macieira da Lixa, 17 de junho de 2042
Há muitos anos, o Manuel António Pina escreveu um poema com o título: “Ainda não é o Fim, nem o Princípio do Mundo. Calma! É Apenas um Pouco Tarde”. Ei-lo:
“A poesia vai acabar, os poetas vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros (enquanto os pássaros não acabarem).
Esta certeza tive-a hoje ao entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar ao balcão; eu perguntei:
«Que fez algum poeta por este senhor?»
E a pergunta afligiu-me tanto por dentro e por fora da cabeça que tive que voltar a ler toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça. Como uma coroa de espinhos: estão todos a ver onde o autor quer chegar?”
Nos idos de vinte, eu acreditava que ainda fosse a tempo. Algo estava para acontecer. Já estava a acontecer. Não era o fim do mundo, era apenas o princípio – o início de novas práticas sociais.
Em 2011, numa entrevista, pronunciando-se sobre situação de crise que o país vivia, afirmou o seguinte: ” Diz-se que os povos felizes não têm história. Não é fácil (nem bonito) dizê-lo, mas às vezes, a infelicidade de um povo é a felicidade dessa espécie de historiadores do presente que os cronistas (sobretudo aqueles que, como eu, praticam sobretudo a crónica como género jornalístico e não literário) são”.
Me confesso “herdeiro” desse mestre da escrita, me reconheço um amador muito limitado na expressividade. Mas, apesar dos meus noventa e um anos, insisto em invocar o passado em breves cartinhas, para que reste memória do que foi aquele tempo de mudar e de nos mudarmos.
Nesse tempo, na Rússia, professores ensinavam meninos russos a odiar meninos ucranianos. Nos Estados Unidos, mocinhas animadoras de torcida vibravam com a luta dos machos do futebol americano. A herança lancasteriana sobrevivia a contradições. As escolas continuavam a fabricar robôs. Os seus alunos já eram robôs. E não sabiam.
Neste ano da graça de 2042, talvez seja para vós difícil de acreditar que, naquele tempo, ainda houvesse conflitos armados, tribunais, prisões, pena de morte. Que, na Europa das velhas democracias, a guerra comprometesse o futuro, e que as escolas fossem surdos campos de batalha. Para acordar memórias, vos deixo com um recorte de jornal colhido no fundo do meu baú das velharias.
“D. fugiu da guerra na Ucrânia à procura de paz. Um mês depois, fugiu de Portugal por abusos na casa onde foi acolhida.
D. vivia há poucos meses no centro do país numa casa alugada por um português que conheceu na internet. A chegada da mãe e do filho de D. que fugiram à guerra na Ucrânia não foi do agrado do português.
Costumavam sentar-se os três no adro da igreja. D., 44 anos, chegara àquela aldeia do centro de Portugal uns dias antes de a guerra na Ucrânia começar; quando se deu a invasão russa, a mãe de 64 anos e o filho de 16 juntaram-se lhe naquele lugar. Foram todos acolhidos por um homem português que D. tinha conhecido na internet.
É nesse mesmo largo que Américo, apoiado pela bengala e acompanhado pelo cão “Patinhas”, conta como mãe e filha gostavam de dar passeios todos os dias e de como o jovem, sempre que tinha dificuldade em expressar-se, tirava “um livrinho do bolso com as palavras em português e ucraniano.” Lá se entendiam. “Foram embora há coisa de duas semanas ou um mês”, conta o senhor de 81 anos, que vivia na vivenda ao lado daquela onde D. e a família moraram.
Não “foram” apenas “embora”: a família saiu em fuga. D. fez apenas um pedido: sair do país e esquecer tudo”.
Esta talvez fosse mais uma prova de que a guerra não acontecia, lá longe, na Ucrânia. Ela estava entre nós. Em nós.
Por: José Pacheco
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