Itapera, 14 de agosto de 2042
Lá pelos idos de vinte contava-se uma bem conhecida anedota, a que eu não achava graça alguma. Para além de bem conhecida, essa anedota era lesiva da imagem do profissional de desenvolvimento humano a que se dava o nome de… professor. Colocava-se a possibilidade de fazer viajar no tempo (ou de ressuscitar) um médico cirurgião e um professor, que tivessem vivido nos primórdios do século XIX. Dizia-nos a anedota que, recolocados médico e professor nos seus locais de trabalho, o primeiro morreria de susto perante a sofisticação dos recursos disponíveis no bloco operatório onde aportasse. Por seu turno, o professor retomaria a aula interrompida há duzentos anos, mandando abrir a cartilha na página oitenta e três.
Tratava-se de uma anedota, bem sabíamos. Também sabíamos que os avanços da Medicina, enquanto ciência, tinham introduzido na prática médica profundas transformações, tornando obsoletos conhecimentos e práticas de há dois séculos. O que distinguiria as escolas do século XIX das escolas do século XXI? A sofisticação do discurso, o aparato tecnocrático e a mercantilização da escola pública.
O modelo engendrado no século XIX mantinha-se inalterado: classes, turmas, aulas, lições, tempos de padrão uniforme, currículos segmentados, estanques, inadequados. Mais computador, menos manual, mais “data show” menos pau de giz, em pleno século XXI, a Escola mantinha-se tributária de necessidades sociais do século XIX. Foi o que encontrei, quando troquei a engenharia pela profissão de professor.
O vosso pai nasceu no mesmo mês – no outubro de 76 – em que fui ser professor na Ponte. A preocupação que sentia nessa altura era da mesma natureza daquela que senti quando nascestes. Quais os caminhos a percorrer, netos queridos, para que pudésseis ser seres humanos felizes?
Escolhi o caminho de não escolher caminhos. Seríeis vós quem percorreria caminhos por inventar. Impedi-me de determinar, do alto dos meus cabelos brancos, os vossos desejos e necessidades. A primeira das regras era a de não tentar ensinar aos netos aquilo que se pensava que eles precisariam saber. A segunda, procurar aprender o que eles eram e o que pensavam, para além do que pensávamos que eles deveriam pensar. Os tempos eram outros e só os avós com certezas absolutas ainda não o tinham entendido.
A preocupação inicial se foi esvaindo à medida que crescíeis. Perdurava apenas um receio, o de que pudésseis fazer perguntas que não tivessem resposta. Não porque me preocupasse que pudésseis considerar-me ignorante – até seria útil que ele se apercebesse de que os avós de desse tempo, contrariamente aos antigos, não eram guardiães de todas as respostas – mas porque não seria capaz de responder a perguntas sem explicação.
Se me perguntásseis por que o céu era de cor azul, eu não vos daria a resposta. Saberia perguntar: “Por que será?” E saberia indicar-vos caminhos para que a encontrásseis. Porém, havia uma pergunta carente de uma explicação lógica: Por que razão a Escola do século XXI se mantinha idêntica à do século XIX?
Que poderia fazer, a não ser confessar a minha ignorância? Não saberia que resposta dar. Aliás, ninguém sabia.
O que pensaríeis de pessoas que não sabiam explicar por que faziam aquilo que faziam? E, quando essas pessoas eram professores, eu temia o que pudésseis pensar e sentir.
Mandava a verdade que acrescentasse haver professores não-contemplados na anedota de mau gosto. Falei-vos da vida maravilhosa da Irene Lisboa e dei-vos a conhecer professores não-acomodados. Isso bastou para vos tranquilizar.
Por: José Pacheco
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