Ribeirão Preto, 4 de janeiro de 2043
Magda Soares secundava Darcy, na crítica do modelo educacional ainda hegemônico nos idos de vinte:
“As camadas populares têm que lutar muito contra a discriminação e a injustiça. Alfabetização e letramento têm esse objetivo: dar às pessoas o domínio da língua como instrumento de inserção na sociedade e de luta por direitos fundamentais”.
A nossa Mestra partiu no exato dia da tomada de posse de um novo governo. Alguns dias antes do seu falecimento, fora publicado o relatório do Gabinete de Transição Governamental.
Seria de esperar que uma nova composição ministerial tentasse emendar erros e traçar novo rumo de política educacional. E um primeiro sinal foi dado, quando o presidente revogou um decreto que incentivava o atendimento de estudantes com deficiência em escolas especializadas, uma das medidas de retrocesso tomadas pelo anterior governo.
O relatório contemplava quase todas as dimensões da crise em que o “sistema” estava atolado. Quase todos, pois se esquecia do essencial: para um novo governo se requeria uma nova educação!
Era verdadeira a afirmação de que, desde o início do governo anterior, “a política de educação fora negligenciada”, mas ela tinha sido negligenciada desde o tempo do ministro Francisco Campos e do Capanema!
Durante quatro anos, se tinham sucedido “denúncias de corrupção”, mas o que esperar de práticas de um modelo educacional hegemônico, moral e intelectualmente corrupto? O que esperar de um monstro burocrático hierárquico e autoritário, comandado por economistas, pastores, engenheiros, advogados, médicos, e outros profissionais, para os quais as ciências da educação sempre foram ciências ocultas? Ajudei bons ministros, mas, porque o foram, perturbaram o status quo vigente e viram o seu mandato reduzido a alguns meses, ou mesmo dias.
Entre a criação do ministério, em novembro de 1930 e o lançamento do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova distou pouco mais de um ano. Nesse hiato, Anísio e seus pares perceberam que seria necessário colocar a Educação no século XX. Mas a sinistra máquina ministerial operou a “fagocitose dos “pioneiros”.
Fagocitose é a propriedade que algumas células têm de capturar e ingerir outras células. O “sistema” possuía mecanismos de fagocitose. E, porque o Anísio não se deixou fagocitar, o mataram. Em 1934, fora definido, constitucionalmente, que a educação seria “direito de todos os brasileiros”. Quase cem anos depois, por via da manutenção de um obsoleto modelo educacional, que Anísio, Darcy, Lauro, Nise, Freire e muitos outros insignes mestres denunciaram, a educação continuava a ser negada a milhões de brasileiros.
O relatório do Gabinete de Transição destacava “questões preocupantes” como “a reforma do ensino médio”. Era preocupante, mas não no sentido que era dado a essa afirmação. Fiquei preocupado, quando o documento referia como “ação de grande relevância” o ENEM.
Desde que (em 1934!) a Constituição consagrara o direito de todos os brasileiros à educação, se deveria considerar inadmissível a utilização de instrumentos de darwinismo social. Por essa razão e na intenção de ajudar a erradicar ilegalidades, dirigi algumas perguntas ao novo ministro e aos meus companheiros das ciências da educação:
Por que havia ENEM? Por que havia um “ensino superior”? Haveria algum “ensino inferior”?
O segmento universitário não era “obrigatório”. Mas, não seria “um direito de todos”?
Pedi-lhes que dessem respostas fundamentadas na lei e numa ciência prudente. Em breve, vos direi quais as respostas que recebi.
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