Brasília, 10 de janeiro de 2043
Netos queridos,
Nascestes no início deste século, mas houve alguém que, já no início do século XX, acreditava serem os seres humanos capazes de buscarem, em si próprios e entre os outros seres, a perfeição possível. E, no início do século vos dizia que, entre o brincar sem cuidados e o ir à escola, as crianças que vós éreis se fariam “alunos”.
Queria acreditar que, em 2007, já não sofreríeis os dramas que crianças de outras gerações suportaram. Iríeis fazer novos amigos e conhecer adultos que, supostamente, vos ajudariam a crescer e a compreender o mundo. Esse mundo novo e misterioso, que se abria para os vossos olhos de meninos curiosos, era fonte de estórias que não vos pude contar quando éreis pequeninos, estórias da escola de velhos mundos de outros tempos, que ficaram por contar.
Através das imperfeitas palavras, viajo ao tempo em que já se desenhavam os destinos das crianças futuras, em escolas de um devir luminoso, enquanto outras escolas deixavam de fazer sentido, deixando de se perguntar se fariam sentido.
Por esse tempo, educadores éticos tentavam recriar a Escola, humanizando-a, e se confrontavam com extremas dificuldades. Sofriam os efeitos do “dever de obediência hierárquica”, associado ao proverbial autoritarismo de ministérios e secretarias.
Ontem, usei como metáfora a rapadura. E vós respondestes que sabíeis do que eu estava a falar. Por isso, vos deixo algumas perguntas, como “tarefa de casa”.
Quando algum professor, efetivamente, “ensinava a fazer rapadura”, os “superiores hierárquicos” proibiam-no de o fazer e ameaçavam-no.
Isso não configuraria crime de assédio moral?
O “sistema” não era apenas hierárquico. Era autoritário. Fazia aprovar leis, planos, projetos de cariz humanizador, documentos potencialmente inovadores. Mas, impunha às escolas práticas contrárias à prossecução dos objetivos contidos nesses documentos.
Essa imposição não significaria crime de falsidade ideológica?
No início do novo governo, o ministério adotava práticas neoliberais, que provocariam o mesmo efeito das anteriores. O instrucionismo gerara analfabetismo e exclusão. Quando se juntava uma proposta neoliberal a um ministério instrucionista, o que esperar a não ser a continuidade do abandono intelectual de milhões de alunos?
Isso não constituiria mais um crime anunciado?
O “sistema” era, também, moralmente corrupto e contrariava o disposto na Constituição – o custo aluno-ano não correspondia ao custo aluno-qualidade. A escola pública era mercantilizada, através de contratos com abútricas empresas, ao engendrar máfias da merenda, do transporte e do livro didático. Um IDEB falsamente fabricado e outros índices manipulados, não conseguiam disfarçar as perdas de investimento.
Isso não configuraria crime de ineficiência administrativa?
Last, but not least (invocando a neocolonização da educação brasileira pelos anglo-saxônicos): dispúnhamos de uma lei de bases, de planos estaduais e municipais de educação, de um estatuto da criança e do adolescente e de projetos político-pedagógicos. Mas as intenções desses documentos eram contrariadas por impunes práticas legitimadas por doutores, cujas teses colocavam o aluno no centro do processo, mas que davam aula centrada no professor.
Isso não configuraria crime de “falsidade ideológica”?
Netos queridos, no janeiro de há vinte anos, a raposa neoliberal entrava no galinheiro instrucionista. E o vosso avô só pedia diálogo, para evitar que se perdessem quatro anos de promessas de mudança.
Diálogo! Só isso.
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