Araguari, 4 de março de 2043
Nos idos de vinte, eu temia que, quando se dissipasse a crise pandêmica, a normose regressasse e não houvesse um “novo início”. Talvez os educadores não tivessem entendido a mensagem do vírus e continuassem a ignorar a necessidade de mudança no sistema político, econômico, educacional. Talvez não tivessem entendido a subliminar mensagem e se perdesse a oportunidade de fazer o que, já há mais de cem anos, precisaria ser feito.
Tal como o vírus, o sistema de ensinagem possuía grande capacidade de adaptação. E a administração educacional usava artifícios virtuais, para prolongar a agonia do “sistema” e os seus trágicos efeitos.
Irei servir-me de mais uma metáfora, estabelecer um paralelo com a situação de “conservantismo”, que se vivia nos idos de vinte.
No “hino da alegria” – a “Ode An Die Freude”, magistralmente musicada por um surdo – o coro canta:
Alegria, formosa centelha divina! Tua magia volta a unir o que o costume rigorosamente dividiu. Todos os homens se irmanam onde teu doce voo se detém.”
Nesse poema, Schiller apelava à prática de ideais como a liberdade, a paz e a solidariedade. Ideais partilhados com um Beethoven, que viu censurada a sua obra.
Na primeira apresentação da Nona Sinfonia, os “tradicionalistas” chamaram “aberração” ao último dos seus andamentos. Nesses tempos sombrios, os detratores do génio opunham-se a que se cantasse que “o Homem é para todo o Homem um irmão” e que “a alegria é a filha querida dos deuses”.
Dois séculos decorridos, “tradicionalistas” e “conservantistas” recorriam a um novo tipo de fundamentalismo pedagógico, assente na funcionarização da profissão de professor.
No submundo das escolas da sala de aula. os professores funcionarizados diziam não poder mudar as suas práticas porque deveriam “cumprir ordens recebidas dos seus superiores hierárquicos”.
A escola “prussiana” do século XVIII, que havia atingido a sua máxima expressão nas escolas do Terceiro Reich, fazia sentir os seus efeitos nas escolas do século XXI. No Julgamento de Nuremberg, os comandantes dos campos de extermínio, também, diziam “ter cumprido ordens dos seus superiores hierárquicos”.
Urgia preservar os projetos, protegê-los do controle exercido por professores funcionarizados e seus “superiores”. E, se a necessidade aguça o engenho, nada mais fácil do que recorrer aos saberes do Mestre Pedro, que inspirou a redação de um termo de autonomia.
Em Portugal, o projeto da Ponte consolidou-se a partir da celebração de um contrato de autonomia, pelo que, no Brasil, efetuamos a entrega de minutas de termos de autonomia à administração e à direção das escolas. Seriam negociadas à luz de artigos da LDBEN (nomeadamente, o 15º) e da Meta 19 do PNE.
Assim falava o amigo Pedro, nos artigos que me enviou, para me ajudar a contornar obstáculos à criação de comunidades de aprendizagem:
“A autonomia que Pacheco quer é a de poder mudar a proposta pedagógica, saindo do instrucionismo e voltando-se ostensivamente para o direito de aprender do estudante. Por isso alega ele que a escola atual está fora da lei.
Está, sim! E flagrantemente. Na escola onde se aprende matemática em apenas 7.3% (média nacional em matemática em 2015 no ensino médio), temos desobediência escabrosa à Constituição e à LDB.
O burocrata vai exigir as “aulas”, porque está no papel; não se dá ao trabalho de verificar que não prestam para nada. Bastaria observar os dados que o próprio MEC produz. Como é “pau mandado”, usa o mesmo pau para mandar. Mantém o instrucionismo vigente e facilmente exacerba o fracasso escolar.”
(continua)
Por: José Pacheco
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