Montijo, 4 de junho de 2043
Em boa hora, a Lina me levou até à Moita, passando pelo Montijo. Tive ensejo de comunicar com educadores de um novo tempo. Na última das viagens de trabalho a Portugal, senti que chegara o “novo tempo”, que já não seria o meu.
A minha geração se perdera em descaminhos, ou, visto de modo otimista, havia sido geração de transição. Decidi que as futuras viagens se destinariam a visitar parentes e amigos, a ir a Alpedrinha saborear carnudas cerejas, a Borba, saborear um tinto de se lhe tirar o chapéu, e outras romagens gustativas.
O tempo que restasse seria empregue em visitas a projetos que, nos idos de vinte e três, emergiram da espuma dos dias, na busca de um sistema de aprendizagem humanizado.
Setenta e cinco milhões de mortos nas chamadas “guerras mundiais” não bastavam, pois vivíamos numa sociedade em estado de guerra permanente. E os ataques a escolas eram apenas uma das manifestações da pulsão da morte, a freudiana pulsão em direção à autodestruição. Vede o que os jornais nos diziam:
“Briga por jogo de bocha acaba com homem morto com tiro na cabeça.
EUA alertam para risco de guerra nuclear com China e Rússia.
Homem mata padrasto da esposa após descobrir abuso na infância.
Lygia morre aos 40 anos por complicações com silicone industrial. Estava hospitalizada, após sofrer um acidente vascular cerebral.
Um homem de 54 anos foi assassinado a facadas na noite desta quarta-feira.
Pelo menos quatro adolescentes mortos e dezenas de feridos em tiroteio tiroteio, nos EUA. O crime ocorreu em Dadeville, no Alabama, numa festa de anos.”
O junho de vinte e três foi tempo de engendrar uma gramática de mudança. A esboçara, há muitos anos já. Encontrei um rascunho, papel amarelecido pela humidade, por mais de trinta anos esquecido no fundo do baú das velharias e que dava pelo título de “Novas construções sociais de aprendizagem”. Ei-lo:
“Os projetos humanos contemporâneos não se coadunam com as práticas que carecem de um novo sistema ético e de uma matriz axiológica clara, baseada no saber cuidar e conviver. Requerem que abandonemos estereótipos e preconceitos. Exigem que se transforme uma escola obsoleta numa escola que a todos e a cada qual dê oportunidades de ser e de aprender.
Se a modernidade tende a remeter-nos para uma ética individualista, nunca será demais falar de diálogo, enquanto condição de aprendizagem. A partir do que somos, do que sabemos e do que sabemos fazer, urge afirmar a possibilidade de conceber “comunidades de aprendizagem”. Urge humanizar a educação, conceber novas construções sociais de aprendizagem, nas quais, efetivamente, se concretize uma educação integral. Urge constituir redes de aprendizagem, que promovam desenvolvimento humano sustentável.
A educação acontece de maneira recíproca entre os que convivem, desde que se concretize a transição de práticas fundadas no paradigma da instrução para práticas fundadas no paradigma da aprendizagem e da comunicação.”
Na Escola da Ponte de há muitas décadas, compreendemos que não deveríamos continuar a reproduzir o modo como nos tentavam adestrar em (de)formações e palestras. Num tempo em que não havia computadores, assistíamos à projeção de transparências com súmulas de teorias e propostas de práticas. Nenhuma delas se encaixava no hic et nunc das nossas salas de aula, talvez porque nenhum dos palestrantes tivesse posto em prática as teorias e as práticas recomendadas.
Meio século depois, escutávamos a mesma lenga-lenga, já alindada com novas designações para velhas modas pedagógicas. Sem mais esperar, “pusemos mão à obra”.
Por: José Pacheco
248total visits,4visits today