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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXIII)

Vizela, 23 de abril de 2043

Prometi dar-vos a conhecer gente da educação que a gente da educação desconhece, e aqui vos apresento Alessandro Cerchiari, um operário da Paz, que a gente da sua época não compreendeu e que, durante mais de cem anos, foi ignorado.

Mais de um século não foi tempo suficiente para dar corpo aos seus ideais, que eram os de Zola, de Louise Michel e Francisco Ferrer, o seu mestre catalão vilmente executado no morro de Montjuic. Os seus desígnios talvez fossem frustrados por sutis modos de impedir que a humanização da escola acontecesse. 

A Escola Libertária Germinal, que Alessandro fundou em 1902, na cidade de São Paulo, pouco mais tempo durou do que a de Tolstoi, que o czar das Rússias mandou fechar. O sonho de uma “escola elementar racionalista, para ambos os sexos” foi encerrada em 1904. 

Apesar de ver malogrado o seu intento, Alessandro foi percursor dos percussores da Escola Nova. Mas, nos idos de vinte, apenas emprestava o seu nome a uma rua de São Paulo, cujos moradores nem sequer dele tinham ouvido falar. 

Depois de eu ter feito um breve inquérito de rua, apenas um transeunte ensaiou resposta: 

Alessandro? Isso é nome de jogador de futebol, não é?”

No início deste século, os teóricos continuavam a produzir teses sobre a relação escola-família, mas as famílias continuavam marginais à vida da escola. Na Escola Germinal, de 1902, os pais participavam na arrecadação de fundos e, de algum modo, na gestão do projeto. 

No novembro de1904, Alessandro lançou um derradeiro apelo nas páginas do jornal O Amigo do Povo

A praticabilidade e a rapidez dos métodos aplicados nesta escola souberam despertar tantos interesses e tantas simpatias que, hoje, um bom núcleo sempre crescente de homens de boa vontade assegura-lhe o material escolar para distribuir, gratuitamente, todo ano, aos alunos. 

Pensai no futuro de vossos filhos!” 

A população do Bom Retiro não se preocupava com a educação dos seus filhos.

Existia um pacto de silêncio em torno de iniciativas como a do Círculo Educativo Libertário Germinal de São Paulo, da Universidade Popular de Ensino Livre de São Paulo, da Escola Moderna de São Paulo, da Escola Moderna de Bauru, todas da primeira década do século XX. 

Quem ouviu falar da Escola Germinal do Ceará, da Escola Social de Campinas, da Escola Operária da Vila Isabel e da Escola Moderna de Petrópolis? Ainda hoje, as faculdades de educação não informam aos futuros professores de Porto Alegre que, em 1906, havia por lá uma escola com o nome de Elisée Reclus. Mas, nos idos de vinte, algumas escolas ostentavam designações com referência a coronéis, genocidas, ditadores e torcionários. 

Uma professora deteve-se em frente à sua nova escola. O que a impedia de entrar? A blindagem do portão? A catraca? O carrancudo guarda? 

Não. Aquilo que a fez parar foi a leitura da placa do frontispício do prédio, o nome da escola. Era o nome de quem havia torturado e ajudado a matar o seu pai, durante a ditadura.

Ainda se vivia num país onde escolas celebravam a morte da memória, onde pesava a herança neocolonialista e outros males sociais perpetuados pela velha escola, reprodutora de desigualdades. 

Tal como o país, a escola estava imersa numa profunda crise ética e moral, ao serviço da reprodução de uma sociedade doente. Sei que será difícil acreditar, mas crede que eu li num muro de uma cidade brasileira este dístico: 

Colégio D. – a seleção natural.” 

Não restavam dúvidas que, mais de cem anos decorridos sobre a tentativa frustrada de Alessandro de humanizar a escola, nos mantínhamos na proto-história da escola e carentes de humanização.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXII)

Guimarães 22 de abril de 2043

E lá fui até ao “Berço da Pátria”, a convite do amigo Paulo, para escutar educadores e deixar um convite. Já sabeis do que se tratava. Apesar dos pesares, eu continuava a acreditar nos professores. E, também, estava crente de que alguns acabariam por tomar a, já então, famosa “decisão ética”.

Apesar de ter perdido o monopólio do saber e apenas manter o monopólio da creditação, a universidade era referência matricial das escolas. E, como o modo como o professor aprendia era o modo como o professor ensinava, as práticas do ensino “superior” era o modelo sacramentado, inquestionado e plasmado nas práticas desenvolvidas no (pressuposto) ensino “inferior”.

Era prejudicial o exemplo que acadêmicos ociosos davam às escolas, exemplo da incoerência entre a teoria que colocavam nas teses e a prática efetiva. Quando observava práticas “híbridas”, contraditórias, eu temia pelas consequências. Como explicar que um teórico “socioconstrutivista” continuasse a exercer o seu múnus profissional em sala de aula? Seria possível ensinar “métodos ativos” num contexto de passividade?

Atrevo-me a contar-vos um episódio, entre muitos, que ilustra o que acabo de dizer. 

Após uma palestra, fui interpelado pelo palestrante seguinte: 

Vou fazer a próxima palestra e estou sem saber o que fazer. Acabaste de dizer que a sala de aula é inútil e prejudicial. E a palestra que preparei é sobre planejamento de aula.” 

Manifestei-lhe a minha perplexidade: 

“Tu és professor universitário. Sabes que a docência, que o trabalho em sala de aula é inútil e prejudicial. Por que não o dizes?”

“Tens razão.” – concluiu, pesaroso – “Mas eu não poderei dizer isso aos professores… Tu sabes que eu dou aula na minha faculdade.”

A educação permanecia cativa de atavismos. As contribuições do Paulo, do Lauro e de outros insignes pedagogos tinham sido trocadas por teorias importadas do hemisfério norte. Nas universidades, abundavam os freirianos não-praticantes. E o demissionário silêncio daqueles que tinham sido formados em ciências da educação era insustentável, até mesmo obsceno.

As comunidades de aprendizagem eram objeto de estudo, a partir de uma matriz teórica estrangeira. Isso talvez se devesse ao desconhecimento da presença desse conceito nas obras de autores brasileiros. As práticas de comunidade de aprendizagem eram escassas e tomavam por referência experiências realizadas na década de 1990, nos Estados Unidos e na Espanha. Os acadêmicos que as implementavam ignoravam que, ainda que sob outras designações, já na década de quarenta (no Brasil) e na de setenta (em Portugal), tinham sido desenvolvidas práticas com as caraterísticas de comunidade de aprendizagem. 

Essa seria a introdução de formas possíveis de novas construções sociais, para que a velha escola pudesse, para além de denunciada, implodir. Porém, as escolas onde os acadêmicos introduziam projetos com essa designação mantinham-se ancoradas na… docência.  

Nos idos de vinte, eram publicadas teses sobre o paradigma da comunicação, sem que a transição da instrução para a aprendizagem tivesse acontecido. Falava-se de autonomia, de protagonismo juvenil, afirmava-se a necessidade de transformar o aluno em sujeito de aprendizagem, enquanto se mantinha hegemônico o modelo instrucionista, centrado no professor. Eram desenhados novos mapas sobre velhos palimpsestos. E, quando se justificava uma ajuda a professores com uma nova visão de mundo e que pretendiam melhorar a escola, o desgoverno contratava mais polícias e construía mais prisões.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXI)

Maraú, 21 de abril de 2043

Tenho contado muitas estórias. Chegou a vez de contar a história, de rever a história oficial brasileira, de analisar a versão dos vencedores, manipuladora de fatos de inconveniente revelação. Numa abordagem de amador – que os especialistas se ocupem de as corrigir – trago à colação fatos e figuras talvez adulteradas ao longo dos anos. 

O vosso avô foi ao fundo do baú das velharias e recuperou estórias que fizeram história. Como especialista em fofoca, peregrinou por lugares de estranhos eventos. Escutou bisnetos de protagonistas, bisbilhotou deturpados arquivos de velhas bibliotecas. Adentrou o mistério do local do túmulo do Tiradentes. Foi ao lugar onde uma batalha “inventada” dizimou o que restava de dois exércitos de negros com direito a alforria. E, desenterrando Canudos, ressuscitou o Antônio.

Ele era professor de aritmética, portuguêsgeografia, francês, latim e retirava prazer: do estudo das lendas populares da idade média. 

Não conseguiu ficar muito tempo nas escolas de fazenda, ao serviço dos barões. Abandonou o ofício de professor, para peregrinar pelo sertão e se expor a conspirações e calúnias. 

Tarde se iniciou na arte de ensinar e escassos foram os anos em que se dedicou a uma docência precária e mal remunerada. Buscou sustento em profissões de mais generosos proventos. Foi escrivão, solicitador e até advogado sem diploma. Até ao dia em que se decidiu pela errância no interior do Ceará, restaurando e construindo capelas, igrejas, cemitérios. 

Atento às pregações do padre Ibiapina, estudava os textos sagrados e espalhava o Evangelho entre o povo humilde, de quem escutava preces e a quem dava consolação. Daí o cognome que lhe conferiram, o de Conselheiro. 

Teria Antônio consciência das invejas, da ira que o seu agir despertava junto de eclesiásticos e latifundiários? Os poderosos não perdoavam a fuga de súbditos, que o seguiram e oe ajudaram a fundar o arraial do Bom Jesus. E, de imediato, o acusaram de assassino. 

Provada a sua inocência, o seu prestígio cresceu entre a massa de deserdados. Essa humilde e castigada gente projetava na pessoa do Antônio a esperança de libertação de um cativeiro de séculos, às mãos de barões e coronéis.

Aquela fazenda abandonada às margens do rio Vaza-Barris foi anunciada como a terra prometida aos miseráveis, às prostitutas e aos jagunços, que semeavam o terror no sertão da Bahia. E era tal a sua fé, que as prostitutas viraram mulheres de virtude. E os jagunços se transformaram em paladinos da justiça. 

Antônio deu o nome de Belo Monte ao povoado que viria a ser conhecido por Canudos. Franciscano pedreiro, que era, como o santo de Assis, que também foi pedreiro construtor e reconstrutor de templos, iniciou a construção de uma igreja, congregando almas dispersas, banindo o uso do vil metal, instituindo a propriedade comum. 

Não lhe perdoaram a utopia de um Brasil sem prostituição física ou espiritual, sem corrupção. O genocídio perpetrado por um exército manipulado por políticos de baixa estirpe matou o admirável sonho de uma sociedade justa. Os poderosos do século XIX negaram a quinze mil seres humanos o direito a uma vida digna. 

Decorrido quase um século após a morte do Conselheiro, Agostinho da Silva evocaria a sua memória: 

“Temos de reorganizar todo o sistema educacional com o espírito de descobrimento do século XIV e com o espírito que foi criativo em Canudos.”

A crença na possibilidade de remissão de velhos pecados alimentou novas práticas de comunidade. Atravessado um século de ignomínia, o exemplo do Conselheiro nos ajudava a acreditar.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCX)

Cacém, 20 de abril de 2043

Em pleno século XXI, o da suposta valorização de minorias, num lugar remoto do nosso Brasil, escuto narrativas de culturas destruídas. Como aquela que nos fala de um astrônomo que visita uma aldeia, instala a sua luneta e convida um jovem indígena a espreitar constelações.

“Consegues ver a constelação de escorpião?” – pergunta o astrônomo. 

“Não. Eu vejo a da onça. O pajé me disse…– responde o jovem.

“Onça? Nada disso! Sou astrônomo. O que tu viste foi a constelação de escorpião.”

Decorridos dois anos, o cientista reencontra o mesmo jovem na universidade. E renova a pergunta: 

Então, meu jovem, já consegues ver o escorpião?”

O jovem indígena responde: 

“Consigo ver o escorpião, sim. Mas deixei de ver a onça. Houve um dia em que o escorpião matou a onça. 

Ruído na comunicação? Milton Santos dizia ser a comunicação “uma troca de emoção”

Milton sofreu na negra pele um duplo ostracismo. A de um racismo estrutural e uma incomunicabilidade, que não o coibiu de ser um semeador de paz. O seu exemplo nos ajudou a continuar pugnando pelo fim de um tempo em que ainda existiam “duas classes sociais: as dos que não comem e as dos que não dormiam com medo da revolução dos que não comiam

É bem verdade que, se na pré-história os homens das cavernas viviam em bandos para se defenderem dos predadores, os homens dos idos de vinte viviam em bandos para depredar. Mas, na humana geografia do sul, Milton abria caminhos para uma cidadania plena.

Geógrafo eminente, sabia o que faltava ao Brasil, para que fosse um Brasil fraterno, comunitário. Sabia que seria necessário juntar num mesmo território a educação escolar com a educação familiar e social, adotar princípios definidores de uma nova cultura pessoal e profissional do educador. 

Milton sabia que a teorização das práticas não antecedia a prática teorizada, que a dificuldade de comunicar justificava a busca de teoria, com vista a uma práxis coerente. 

Era errado pensar que a teoria precedia a prática, assim como errava aquele que na prática desprezava a teoria. A necessária reelaboração cultural requeria a alteração de padrões atitudinais, que eram complexos e de modificação gradual. Nesses processos de transformação, urgia considerar um renovado conceito no campo da formação: o isomorfismo. 

Dito em código restrito: o modo como o professor aprendia era o exato modo como o professor ensinava. Seria inútil “capacitar incapacitados”, que alguém servisse o Piaget em dez aulas, quando nunca o praticou. Quando o professor-capacitado voltasse à sala de aula, o Piaget já lá não estaria. 

No condomínio de luxo, como nas favelas, foram destruídas as redes de vizinhança, a convivência fraterna. Também por isso, numa formação experiencial em círculo de proximidade ou de vizinhança, na génese de uma nova construção social, deveríamos priorizar a necessidade da transformação do professor-objeto de formação em professor-sujeito no contexto de uma equipe de projeto, na dignidade do exercício de uma profissão-fulcro de mudança social.

Quando perguntaram a Orson Wells como havia conseguido, em seu primeiro filme, realizar uma obra-prima nunca superada na história do cinema, diz-se que terá respondido: 

Por ignorância, porque eu achava que se podia fazer tudo em cinema.”

Netos queridos, na mesma linha de raciocínio e na intenção de provocar a vossa curiosidade, cito Freire: 

“Criar o que não existe ainda deve ser a pretensão de todo sujeito que está vivo.”

Isto é: reelaborar o conceito de comunidades de aprendizagem, conceber uma nova construção social é construir um inédito viável.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCIX)

Sintra, 19 de abril de 2043

Nos idos de vinte e três, foi breve a passagem por Sintra, mas foi tempo suficiente para sentir um entusiasmo latente e uma vontade expressa de rever o modo como se poderia fazer das crianças seres mais sábios e mais felizes.  

Ali, só conheci boa gente: o Luís, a Conceição, a Isabel, a Carla e um sem-fim de educadores de primeira água. Mas, a surpresa maior foi-me proporcionada pela Rita, quando me apresentou os seus pais. O Luís e a Manuela devolveram-me o “espírito pátrio”, pela via de uma gentileza sem limites. Reencontrei o saber receber, a lusa hospitalidade, que pensava ter sido perdida. 

Deixara no Brasil um princípio de descrença, dera-me ao direito de um tempo de ausência, para me recuperar. Debelados tempos sombrios, a educação brasileira continuava à deriva, entre o trauma do assassinato de crianças e a sina daqueles que morriam sem nunca terem vivido. Porque ainda se morria no Brasil “de morte igual, da mesma morte severina: a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte”

Uma estranha cegueira não permitia enxergar o que o atento olhar do João desvendava:

Escolas são usinas, que engolem gente e vomitam bagaço”.

Escassos professores atentos à tragédia conversavam com os seus alunos sobre o que queriam ser. A Elen me dera a ler os seus preciosos registos: 

“Uma boa parte quer ser médica, outra parte quer ser engenheira e não identifiquei algum querendo ser professor. Descobri que alguns alunos gostariam muito de ser pedreiros.

Mas por que sonhar com uma profissão tão árdua e de pouca remuneração? Fiquei sem entender! 

Até que um daqueles que sonham em ser pedreiro, teve dó de mim e resolveu explicar o motivo de muitos quererem essa profissão.

Tia, a senhora sabe o que é e o que faz um pedreiro?

Pedreiro é o profissional que trabalha na construção civil. Não deverias tentar ser doutor, criaturinha?

Ele sorriu e respondeu:

Tia, pedreiro é quem vende pedra de crack. Aqui, na comunidade, quem vende mais pedras ganha mais, tem “participação nas vendas”. A senhora não vê alguns alunos com celulares de última geração e cordão da moda? Compram com o dinheiro da “comissão” da venda.

Neste momento, meu mundo desabou completamente.” 

A diretora de uma escola chamou o pai de um aluno, para lhe sugerir que levasse o seu filho para uma escola particular, porque aquela “só tinha aluno marginal”, aquele aluno que a escola-usina vomita como bagaço, na ignorância de que o “marginal” regressará, armado de fuzil de assaltar, ou já cadáver exibido nos jornais e na tv. 

A curiosidade levou-me até à escola dos ditos marginais. Contornei altos muros e dispositivos de proteção. Passei por jardins cobertos de lixo. Desemboquei num pátio repleto de avisos de proibições, entremeados de grades. Por detrás de outras grades, o olhar inquisidor de uma funcionária fuzilava o visitante (os olhos de outra funcionária estava pousado no facebook). Escutei os gritos de professores, dando aula. Vi jovens alheios à aula, bocejando, usando celular, acondicionando fones nos ouvidos. 

Eu procurava um ponto de apoio onde assentar uma frágil crença em dias melhores. Valeu-me a recordação de um velho affaire com a minha professora de francês, que me levara a acreditar nos versos de Paul Eluard: 

« Au bout du chagrin Une fenêtre ouverte, Une fenêtre éclairée, Il y a toujours un rêve qui veille, Désir à combler, Faim à satisfaire, Un cœur généreux. »

E, na década seguinte, quando tudo parecia estar perdido, sobre as ruinas da velha e obsoleta escola, o Brasil veria nascer uma nova construção social de aprendizagem.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCVIII)

Lisboa, 18 de abril de 2043

Por altura de abril de vinte e três, circulava nas redes sociais este abaixo-assinado: 

“Assine e exija que nossos líderes regulem as plataformas, para proteger aqueles que amamos. Compartilhe com todos que conhece, pois precisaremos de muitas assinaturas – os donos das redes sociais virão com tudo contra nós!”

Agora, é quase um massacre por semana nas escolas. E as redes sociais continuam se recusando a remover perfis que fazem apologia a este tipo de crime. Isso não pode continuar assim! 

Queridas amigas, meu filho é meu coração andando fora do meu corpo. Ontem, eu tive uma crise de pânico, quando fui buscar meu filho à escola e uma mulher veio correndo em minha direção. Por um momento, achei que meu filho tinha sido vítima de um massacre. Felizmente, era apenas uma corredora se exercitando.

Naquele mesmo dia, os jornais anunciaram que os advogados de Elon Musk, dono do Twitter, se recusaram a derrubar os perfis de pessoas que fazem apologia a ataques em escolas. mesmo que São Paulo, sozinha, tenha recebido 279 denúncias de ameaças deste tipo em uma semana.”

“Projetos preveem ‘big brother’ com câmeras, detectores e reconhecimento facial em escolas. Ao menos cento e duas iniciativas foram protocoladas nas últimas semanas nas Assembleias Legislativas.

Jovens usam ChatGPT como psicólogo, em busca de conversa sem julgamento. Para especialistas, a ferramenta pode dar dicas tranquilizantes, mas não funciona como tratamento.” 

Pânico instalado, notícias contraditórias, desorientação geral colmatada com os habituais paliativos.

Na Idade Média, quando os senhores feudais mandavam publicar uma nova lei, os lacaios passavam cal sobre o papiro onde havia sido publicada a lei anterior. Sobre a cal seca escreviam o texto da nova lei. Afixada a lei, o vento e a chuva fustigavam o papiro, a película de cal se desfazia e a nova lei era apagada. No papiro ficava a lei antiga.

Algo semelhante acontecia nos idos de vinte. Vivíamos um tempo marcado por uma modernização de racionalidade técnica, burocrática, industrial, numa sociedade da informação caraterizada pela solidão e o individualismo. 

No domínio da educação, “especialistas” acrescentavam camadas de tinta nova em velhos palimpsestos, sem entender que novas necessidades somente poderiam ser satisfeitas no quadro de uma nova construção social. Se bem que a obsessão uniformizadora e seletiva da escola viesse sendo questionada por esses “especialistas”, a maioria não fazia ideia alguma de como contribuir para a saída do caos. 

No fundo do baú das velharias, encontrei esta notícia:

“Menos itinerários, mais apoio a professor. São Paulo vai ajustar novo ensino médio. O Secretário da Educação afirmou que a reforma do ensino médio precisa passar por ajustes:”

“Feder comemorou os programas lançados nos primeiros cem dias de sua gestão como o “Aluno Presente”, que registra de forma virtual a frequência dos estudantes. Na virada do semestre, os professores já vão encontrar no celular deles as próximas aulas para dar na escola, se eles quiserem usar.

Também vai replicar outros programas do Paraná em São Paulo — como o “Redação Paulista” e o de “professores embaixadores”. No primeiro caso, a ideia é incentivar os alunos a escreverem mais, além de automatizar a correção dos textos. No segundo, haverá escolha de professores que vão instruir os colegas. Para o secretário, é possível replicar “as coisas boas do Paraná”

Coisas boas? Do Paraná? O secretário estaria a referir-se à educação, ou à cachaça de Morretes?

Como diriam os italianos: “Porca miséria!”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCVII)

Itacaré, 17 de abril de 2043

Durante meia dúzia de anos, atravessei o Rio de Contas na balsa de Itacaré, em direção a Piracanga, para ajudar a minha amiga Angelina a transformar areia inóspita num lugar de bem viver. 

Depois, optei por viajar de Ilhéus para Maraú por estrada. Quase a chegar a Serra Grande, fazíamos “escala obrigatória” numa loja que servia deliciosas empadas. Subindo para a estrada de Uruçuca, parávamos no mirante, para saborear a paisagem e prepararmos o corpo para os buracos na estrada, mais adiante, até chegar a Cassange e ao Projeto MarAmar da minha amiga Isney. 

E lá estou eu a enaltecer o mérito feminino…

Para não dizerdes que sou maniqueísta, ou tendencioso, farei um contraponto, falar-vos-ei de um homem que desenvolvera o seu lado feminino ao ponto de mostrar extrema sensibilidade perante violências impostas à infância.

O Mestre Agostinho deixou sementes de mudança na Bahia, na Paraíba, em Santa Catarina, na Brasília do Darcy, nunca perdendo de vista que, mais importante do que educar, é evitar que os seres humanos se deseduquem: 

“Cada pessoa que nasce deve ser orientada para não desanimar com o mundo que encontra à volta.”

Agostinho acreditava sermos capazes de reencontrar o que em nós é extraordinário e que poderemos transformar o mundo. Mas, em vão pugnou por transformar o mundo, por encontrar tratamento dos males da educação, pois foi obrigado a partir para o seu país natal, Portugal, quando a pátria mãe andava distraída em tenebrosas transações.

Quiseste trocar o lema “ordem e progresso” por “liberdade e desenvolvimento”, mas foi forçado a abandonar um projeto de universidade proposto por Darcy.

Etimologicamente, educar significa “levar de um lugar para outro”. E a palavra crise – do grego “Krisis” – designa o momento crítico, no qual o médico, após fazer o diagnóstico da maleita, deve tomar uma decisão: qual deverá ser o tratamento?

Nos idos de vinte, cinquenta anos após a sua despedida do Brasil, a educação da segunda pátria de Agostinho continuava à deriva, perdida entre modismos e reformismos, pois quem a poderia transformar não tinha poder e quem detinha o poder não a transformava. 

Agostinho sofreu as consequências da sua coerente desobediência, como atestava o seu credo pedagógico: 

“A vida certa do mundo inteiro seria que cada um pudesse viver a sua vida e cada um dos outros pudesse ter esse espetáculo extraordinário de ver pessoas diferentes à sua volta e não, como tantas vezes acontece, sobretudo em pessoas que gostam de mandar nos países, achar que deve ser tudo igual, e quando aparece alguém diferente se ofendem, acham que está fugindo das regras, saindo da vida que deve ter.” 

Mestre Agostinho sabia que escolas eram comunidades feitas de pessoas. E ensaiou a formação de uma comunidade de aprendizagem, em Itatiaia. E sabia que o desenvolvimento dessas comunidades dependia da diversidade de experiências das pessoas que as integravam, bem como requeria que todos os membros que a constituíam se envolvessem num esforço de participação, de produção conjunta de conhecimento, vizinho a vizinho, numa fraternidade aprendente.

À medida que ias traduzindo para a língua brasileira a obra de Montessori, compreendia que a criação de uma comunidade de aprendizagem pressupõe a reconfiguração das práticas escolares, uma indispensável ruptura paradigmática. Viveu na medida daquilo em que acreditava. E, de vários modos, ousou rupturas, gestos poéticos de quem aprendeu a arte de colocar o sonho em ato, porque, como dizia:

“Poeta é aquele que cria na vida alguma coisa que na vida não existia.” 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCVI)

Algodões, 16 de abril de 2043

Netos queridos, presumo que tenhais dado a ler a amigos e vizinhos as cartinhas que vos envio, porque a de ontem mereceu comentário de educadoras:

“Ontem, resolvi expressar minha opinião no grupo do “Combate à violência nas escolas”, trazendo os holofotes para as causas da violência e mostrando que tratar as consequências não seria o caminho. Só fui criticada.”

Precisamos mudar a educação básica para, no futuro, não passarmos o que estamos passando hoje. O trabalho preventivo deveria acontecer a partir da gravidez das mulheres. Muitos filhos já vêm ao mundo sem amor e atenção.

Precisamos agir! A saída está na prevenção. O depois do já feito é só chorar sobre o sangue derramado e punir.”

A clarividência dessas educadoras contrastava com a irresponsabilidade de uma desgovernação masculina. 

Nos idos de vinte e três, a propósito do pronunciamento de um Secretário de Estado, os meus colegas teoricistas pronunciavam-se deste modo, nas redes sociais:

“Infelizmente o que o Feder, que, diga-se, não é educador, está propondo é um remendo, que é pior do que o soneto.

O que ele fez no Paraná não serve de exemplo para nenhuma rede. Precisamos ficar de olho nos detalhes.”

Esses colegas punham o dedo numa das “feridas” do sistema: o novo aprendiz de feiticeiro não era educador. Aliás como quase todos os secretários e ministros, desde que o ministério era ministério. Desde a criação do Ministério da Educação, dezenas de homens o dirigiram e apenas uma mulher foi ministra. 

Por isso, perguntava aos meus colegas teoricistas:

E se o feminino fosse maioria na governação? Já imaginaram um ministério da educação gerido por mulheres? 

Não mulheres que se comportam como machos, quando estão em funções governativas, como a Margaret Thatcher, apenas mulheres.”

Era certo e sabido que, por detrás de uma grande mulher, havia sempre um grande homem. Por exemplo, quando os formadores de professores citavam Freinet, os formandos supunham que estivesse a referir-se ao Celestin. Mas, cadê a Elise, exímia professora de Arte e companheira do Celestin?   

Quando os livros de história da educação apresentavam uma lista dos vinte maiores vultos da pedagogia do século XX, regra geral, nomeavam dezoito homens e apenas duas mulheres: Montessori e Ferrero. Num sistema educacional patriarcal, apesar de serem maioria, a mulheres eram quase invisíveis. 

Armanda Alberto foi uma das duas mulheres subscritoras do Primeiro Manifesto da educação brasileira. Gesto pleno de significado de uma militante feminista, que criticava feministas, aquelas que viam no homem um ‘inimigo’ da mulher”. 

Atraída pelas teses da Escola Nova, transformava o chão da escola num laboratório, bem ao modo de Montessori. Antecipou em um século a prática de contraturno, pois as crianças completavam o dia com o cultivo da horta e a criação de animais. 

 

Quando presidente da Associação Brasileira de Educação, sofreu a perseguição da polícia política e acompanhou a Olga Prestes nas prisões do Getúlio. Pagou elevado preço pela sua ousadia. 

As agruras da prisão não esmoreceram o seu entusiasmo. E a cidade de Duque de Caxias lhe deve a criação da primeira biblioteca pública. Na Biblioteca Euclydes da Cunha, pugnou pela valorização da obra de autores brasileiros e desenvolveu formas criativas de mobilização da comunidade. 

Queridos netos, pressinto que estareis a perguntar por que razão quis falar-vos deste modo, e vos satisfaço a curiosidade. É porque, fez ontem vinte anos, a nossa comunidade perdeu alguém, que poderia ter sido uma mulher construtora de comunidades.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCV)

Cassange, 15 de abril de 2043

O Complexo Penitenciário da Papuda é um conjunto de presídios situado na região administrativa de São Sebastião, na periferia de Brasília. Há quase trinta anos, o Secretário Estadual de Educação do Distrito Federal me convidou para visitar esse sinistro local. Percorremos a ala dos “jovens infratores”, um corredor feito de celas e de martírios. Dali, fomos para a Unidade de Internação de São Sebastião, onde outros jovens já cumpriam sentença.

No regresso à Secretaria de Educação, o Secretário Júlio pediu-me que elaborasse um projeto para salvar as vidas daqueles jovens, porque era mais do que provável que, cumprida a sentença, eles voltassem para o mundo do crime.

Agradeci a confiança em mim depositada, mas eu estava mais interessado em desenvolver um projeto que evitasse a necessidade de haver prisões, unidades de internação, jovens prisioneiros, assassinatos e… ataques a escolas. 

Eu participara em projetos preventivos e me propunha desenvolver um projeto semelhante, que contribuísse para evitar a necessidade de haver prisões como a Papuda e unidades de internação. Isto é: conceber um projeto a montante do sistema, para não haver necessidade de medidas de compensação e correção, a jusante. Assim nascia a ideia da primeira comunidade de aprendizagem do Distrito Federal. 

O Júlio foi um bom secretário de educação, sentiu como oportuna e justa a intenção, que me animava. E apoiou a iniciativa de professoras do CEF04 do Paranoá de criar uma comunidade de aprendizagem no Paranoá Parque. 

Após várias reuniões, enviei à Secretaria referenciais de um projeto de comunidade e uma minuta de Termo de Autonomia. Numa ata de reunião realizada na Direção Regional de Educação do Paranoá, estão descritos os acordos de instalação da designada “Comunidade de Aprendizagem do Paranoá”, a CAP. Também foram estabelecidas condições de assessoria – o meu trabalho e o da Cláudia decorreria em regime de voluntariado não remunerado.

No mês seguinte, graciosamente, a arquiteta Cláudia elaborou um estudo de adaptação do edifício a novas funcionalidades. Contratamos e pagamos uma funcionária de apoio às ações de formação por nós realizadas, em que participaram centenas de professores do Distrito Federal. Vezes sem conta, fomos reunir na Secretaria. Pacientemente, escutamos e esclarecemos burocratas. Dialogamos com engenheiros e arquitetos, que pretendiam instalar salas de aula no edifício da CAP. Fomos para as escolas, viajando no nosso carro. Despendemos centenas de horas num trabalho insano. Gastamos centenas de milhar de reais nesse projeto. Não recebemos um real sequer.

Entretanto, elaborarmos um projeto de adaptação de instalações de um centro de eventos e uma proposta de formação, para ajudar professores voluntários para o trabalho em comunidade. Até que…

Até que “alguém” – ainda hoje, não sabemos se seria homem, mulher, ou um grupo organizado – iniciou o seu trabalho sujo. Deixamos de ser informados da realização de reuniões de trabalho em que deveríamos participar. E o projeto foi adiado para as calendas.

Naquela altura, já se assassinava, dentro e fora das escolas. Dez anos mais tarde, uma violência incontida recrudesceu numa vaga de ataques a escolas. Mas a consternação, as lamentações e as “medidas de combate à violência” ofuscaram a visão dos governantes e dos educadores. 

Mais uma vez, não se procurar identificar a origem da tragédia. Agiu-se sobre as consequências, sem se cuidar de eliminar as causas. 

Mais uma vez, tivemos de chorar a morte violenta de crianças. 

Mais uma vez…

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCIV)

Cachoeira do Sul, 14 de abril de 2043

Este dia de há vinte anos foi pródigo em boas notícias. O amigo Ubiratan apresentava o seu livro; do amigo Bruno recebia esta notícia:

“Com grande alegria, fui selecionado, de entre os Agentes de Mudança Inspirados pela Fé da Ashoka, para receber o Prêmio Soularize. Esse lindo reconhecimento é fruto da um trabalho amoroso em prol de uma nova educação. 

Junto com outros amigos e educadores (movidos por essa utopia) damos início, em 2019, à Comunidade de Aprendizagem Escola da Floresta. E, desde lá, temos demonstrado na prática que (Sim!) é possível revolucionar a educação formal e a escola pública.

Mas essa jornada (com toda a resistência de uma ação que desafia os padrões instituídos) só foi possível pela fé que carrego em um mundo de amor e liberdade. Foi essa visão gnóstica de uma espiritualidade livre (que confia na realização da potência humana) que me manteve firme nos dias difíceis. 

Agradeço, também, a parceria com a Escola Eliana Bassi de Melo e a Universidade Federal do Pampa, que fizeram desse sonho uma realidade.” 

Nesse dia, o Bruno, a Mariana e a Luana viajaram de Caçapava do Sul para Cachoeira do Sul, para a Jornada Nacional de Educação, para a qual eu fora convidado para “palestrar”. A equipe da Escola da Floresta começava a sair do anonimato. A “Educação Humanizada” se mostrava através de um dos seus projetos, na afirmação de valores de um novo tempo, numa brilhante intervenção, dialogando sobre novas construções sociais.

Na sua obra “Urutagwa” Ubiratan conta a lenda tupi de um guerreiro que virou pássaro, no caso, o Urutau ou Mãe-da-lua. Embora discretamente, O amigo Ubiratan invocava uma bela visão de mundo pré-colombiana, que importava atualizar e incorporar na educação brasileira contemporânea. O amigo Bruno concretizava uma visão de mundo feita de “amor e liberdade”. 

A alegria sentida não iludiu a dura realidade. Ubiratan e Bruno protagonizavam exceções à regra geral. Por essa razão, nunca me sansei de recordar que, para uma nova Humanidade, seria necessária e possível uma nova educação. E, para uma nova educação, uma nova construção social de aprendizagem.

Os círculos de aprendizagem não surgiam como mais uma quixotesca tentativa de redimir um sistema falido. Eles eram o anúncio de um novo tempo. E, nesse tempo, sendo raros, corriam risco de se transformarem em mais um modismo pedagógico. 

Eram escassos os estudos de interpretação e de organização crítica de experiências com essa conotação. Justificar-se-ia o seu estudo como um estudo de “marginalidades”, para que não sucedesse a sua assimilação e descaracterização. 

Durante trinta anos, acompanhei, do interior, processos de autoformação em círculo de estudo – estou a lembrar-me do de Maricá – e aferi o discurso de professores pelas suas práticas. Foi-me permitido concluir ser difícil romper uma reflexão sobre a prática cada vez mais viciada por lugares-comuns e uma retórica herdada da formação de modelo académico. 

No campo da formação ainda eram escassos os estudos que incidissem em efetivas inovações. O drama dos pesquisadores era o de quem vivia o quotidiano do chão de escola a todo o momento, sem sobrar tempo para fazer registos. E aqueles que estudavam “sobre” as práticas captavam o supérfluo e generalizavam-no. 

O drama dos que estavam “dentro” do processo consistia em tudo parecer já ter sido dito pelos especialistas. No irónico contraponto com a realidade, era extremamente difícil assumir a humildade curiosa de quem compreendia que, na formação contínua, não existia ainda um edifício teórico coerente. 

 

Por: José Pacheco

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