Barra de Caraíva, 10 de fevereiro de 2043
Queridíssimos netos, dissestes terdes ficado impressionados com a descrição que fiz das atrocidades perpetradas sobre os povos que habitavam o sul da América e a destruição sistemática de culturas pré-colombianas. Não era por acaso ou fatalidade histórica que tal acontecia. Desde os primórdios da colonização, se instalaram em Pindorama – em guarani-tupi, a “terra livre dos males” – o autoritarismo, a rapina de recursos e múltiplas violências.
Quando o “Bolívar Libertador” encomendou ao Lancaster o ensinar a ler, que permitisse que um povo analfabeto pudesse ler a Constituição, novas colonizações foram impostas. Durante um século, as igrejas de Nova Granada, onde o povo aprendia as “primeiras letras”, foram dando lugar à implantação da Escola dos colonizadores.
No final do século XIX, o currículo positivista de Benjamim Constant prenunciava a reprodução do modelo instrucionista lancasteriano que, até aos idos de vinte do nosso século, semeou ignorância e exclusão.
Por essa altura, um palestrante chamado Karnal levava-nos a refletir sobre mudanças sociais, sobre novos tipos de relação humana, sublinhando que a tecnologia contribuíra para a demanda de novas formas de vida e a satisfação de novas necessidades. Dizia que que o ser humano se transformava, constantemente e que, em contrapartida, ainda tínhamos escolas que pouco ou mesmo nada haviam mudado, ao longo de duzentos anos.
As escolas eram o equipamento social mais abundante e a “escola pública” concebida para garantir equidade, era uma das maiores conquistas da humanidade. Porém, a “escola pública” instrucionista nunca chegou a ser pública, não cumpriu o desiderato para que fora criada: a equidade.
Na década de vinte, atentos à necessidade de operar mudanças, diretores de agrupamentos de escolas portuguesas e secretários de educação brasileiros pediram que os ajudássemos a fazer “escola pública”. Montemor-o-Novo, Leiria, Tavira, Quarteira, Caldas da Rainha e outros municípios portugueses, o Distrito Federal, Maricá, Mogi das Cruzes, Porto Seguro, Mendes, Caçapava do Sul e outros municípios brasileiros foram precursores de um movimento de regeneração, que se prolongou até meados da década de trinta.
O modelo escolar instrucionista não era o único modelo de educação e ela deveria ser pensada a partir de redes de comunidades, de modo que os processos de aprendizagem tivessem um papel transformador nas sociedades. Para tal, as escolas não disporiam apenas de interfaces sociais, mas de espaços onde ocorreriam atos contributivos do desfazer do abismo entre a escola, as famílias e a sociedade.
As escolas poderiam constituir-se em espaços de cultura, lugares onde os saberes eruditos se casavam com os saberes populares, onde a transformação acontecia na partilha do conhecimento produzido.
De modo irreversível, no 11 de fevereiro de vinte e três, começava a ser desmontado um pérfido “sistema”. Chegava o tempo de interpelar interditos, de erradicar tabus e de devolver à Escola Pública a dignidade que perdera, por via da predominância de uma hierarquia autoritária e da corrupção moral e intelectual em que a tinham atolado.
Eram criados dispositivos legais, o primeiro dos quais sob a forma de um Grupo de Trabalho (GT) de criação de comunidades de aprendizagem. Recuperávamos a esperança perdida e apenas pedíamos que as secretarias e os agrupamentos de escolas fossem leais aos valores enunciados nos seus planos, e que as escolas desenvolvessem práticas coerentes com o teor dos seus projetos.
Só isso!
Por: José Pacheco