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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLXXXII)

Rio das Ostras, 12 de dezembro de 2042

Dissestes que a cartinha de ontem era “diferente” das outras e que preferis cartinhas “mais leves”. Tentarei, netos queridos, tornar mais leves as estórias e explicar o porquê da “diferença”.

2022 foi tempo de encruzilhados destinos, tempo de escolhas quase definitivas. Num cenário de agitação social, a esperança de dias melhores andava à solta. No final de dezembro se desenhavam dúbios futuros.  

A Margareth fora indicada para cuidar das coisas da Cultura. A indicação para cuidar da Educação permanecia suspensa. 

Já tinham passado por esse ministério muitos ignorantes das coisas da educação, corruptos e até terraplanistas. Qualquer que fosse a escolha, seria bem melhor do que as antecedentes. Porém, os nomes que o marketing promocional divulgava só contribuíam para aumentar a minha preocupação.

De uma lista de obstáculos à mudança e à inovação (de que, em breve, vos falarei) constava um sinistro personagem: o áulico. Na obra “O Brasil como Problema”, Darcy questionava: 

Quem implantou esse sistema perverso e pervertido?”

E propunha um diagnóstico dos obstáculos cruciais, que a nação brasileira precisaria ultrapassar, para se desenvolver. 

Nesse livro, o maior dos obstáculos seria a nefasta ação de um certo tipo de intelectual alienado, colaboracionista num genocídio educacional caucionado por uma opinião pública acrítica e patrocinado por energúmenos da política, e até mesmo por… “professores”. 

Os áulicos prosperavam, vivendo à sombra do poder, produzindo ideias irrelevantes, planos inconsequentes, contribuindo para destruir qualquer esboço de inovação. 

Alguns áulicos manifestavam comportamentos antiéticos pois, sendo especialistas em ciências da educação, conhecedores dos maléficos efeitos de práticas fundadas no paradigma da instrução, contribuíam para as manter. 

Em assessorias e coordenações de projetos da iniciativa do sistema, legitimavam paliativos do esclerosado modelo educacional, optavam por se venderem, pecando por omissão, cumprindo o vil papel de evitar que mudanças acontecessem. 

Os áulicos controlavam estruturas do poder público, infestavam universidades, comissões de especialistas e se exibiam em gongóricas e anestesiantes palestras, nos palcos de inúteis congressos. E até se mancomunavam com abútricas empresas que, descarada e impunemente, invadiam a Internet com anúncios deste tipo: 

Ei, prof.! Se você der 30 aulas por semana, cobrando 40 reais por hora (fora planejamento e correções), isso gera 3 coisas no seu mês… Já ajudei mais de mil pessoas a transformar conhecimento em fonte de renda. Curso para produzir cursos online. Lucre desde o primeiro curso. Passo a passo para escalar o seu negócio e ganhar mais Dinheiro. Assim mesmo: Dinheiro com D maiúsculo! Como uma empresa de educação saiu de 0 para 4000 alunos em 12 meses. Metodologia Howeb de Aceleração de Vendas. Educador, o que você faria na escola com um prémio de 35 mil? As inscrições estão abertas.”

Anúncios deste tipo conspurcavam a comunicação social, se agravava a mercantilização da Escola Pública. Diante da avalanche de conteúdos homogeneizadores, negócios milionários com as redes públicas, anunciados como a salvação da educação nacional, só nos restava “fazer a nossa parte”. Enviámos à parte saudável da administração pública um “Plano de Inovação”. Propusemos ao ministério o reatamento do diálogo.  

O monstro burocrático, a que chamavam “ministério”, aceitaria dialogar? O que poderíamos esperar do novo ministro, ou da nova ministra da educação?

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLXXXI)

Arraial do Cabo, 11 de dezembro de 2042

Hoje, voltei ao sótão e remexi no baú das velharias. Bem no fundo do baú e no meio de muita tralha, deparei com um verbete de um dicionário, que elaborei aquando da publicação de um livrinho, que dava pelo nome de “Inovar é Assumir Um Compromisso Ético Com a Educação”. 

Já me tinha esquecido dele e dos restantes, que a ele estavam colados por força da humidade. Tentarei recuperar alguns, para vo-los dar a conhecer. Cá vai aquele que redigi sobe “inovação”.

Há trinta ou quarenta anos, de que estaríamos a falar, quando falávamos de avaliação educacional?

“O termo “inovação” tem origem etimológica no latim “innovatio”. Refere-se a ideias, métodos ou objetos criados, que não semelhantes a ideias, métodos ou objetos conotados com padrões anteriores. 

Diz-nos o dicionário que “inovação” é ação ou ato, que modifica antigos costumes, manias, legislações, processos… Isto é, ação ou ato renovador de algo, ou de alguém. Significa a abertura de novos caminhos, a descoberta de estratégias diferentes daquelas que habitualmente utilizamos. Pressupõe invenção, a criação de algo inédito. 

Em suma: inovação é efetivamente algo novo. Que, em princípio, contribui para a melhoria de algo, ou de alguém. Que pode ser replicado, por exemplo, a partir da criação de protótipos.

Após décadas de adaptação de teorias existentes, a realidades que se transformaram e perante aceleradas mudanças sociais e inovação tecnológica, será necessário rever o modo de produção de conhecimento. O seu crescimento exponencial, os dados da pesquisa no campo da neurociência e da inteligência artificial, ou a sutil convergência entre a teoria da complexidade e a produção científica radicada no paradigma da comunicação, exigem que, para além de uma tomada de consciência da obsolescência do modelo escolar, assumamos um compromisso ético com a educação, inovemos. 

Mas, como caracterizar inovação? Proponho cinco critérios. 

Primeiro critério: o ineditismo. 

Como diria Jacques de La Palice, Inovação será algo inédito. Significa trazer à realidade educativa algo efetivamente novo, ao invés de não modificar o que seja considerado essencial. Pressupõe, não a mera adoção de novidades, inclusive as tecnológicas, mas mudança na forma de entender o conhecimento. 

Segundo critério: a sustentabilidade.

A inovação organizacional é considerada quase sinônimo de adaptação, pois tudo que foi inventado passou por um processo de recriação do já existente, transformando-o em novas formas e qualidades – no contexto da escola, uma recriação assente na tradição. 

Terceiro Critério: a replicabilidade.

Há quem confunda inovação com uma qualquer “alternativa romântica”, iniciativa de uma escolinha isolada, um projeto de morte anunciada. Há quem considere inovador um modelo híbrido, mistura de resquícios de práticas do paradigma da aprendizagem com instrucionismo, circunscrito a escolas particulares e raríssimas escolas ditas “públicas”. 

Quarto critério: ser insituinte. 

Àquilo que é novo não poderemos aplicar raciocínios dedutivos. Inovação será algo que possui capacidade de se renovar, se reinventar, estar em permanente fase instituinte.

Quinto critério: ser útil. 

No campo da educação, será um processo transformador, que promova ruptura paradigmática, mesmo que parcial, com impacto positivo na qualidade das aprendizagens e no desenvolvimento harmónico do ser humano, que a todos garante o direito à Educação.”

Sei que sois mais sábios que eu, queridos netos. Por isso, vos pergunto:

Quereis atualizar este verbete?

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLXXX)

Armação de Búzios, 10 de dezembro de 2042

Há mais de cem anos, Montessori dissera que a competitividade estimulada no seio das famílias, em sociedade e nas práticas escolares era a origem remota de todas as guerras. E, há trinta anos, o amigo Pedro convidava-nos para entender um Maturana, que dizia que “competição sadia não existe”: 

“Competição e empatia social são “mundos completamente distintos”. Romantizando os ideais estudantis em seu tempo de estudante, Maturana compara o tempo em que se dizia se esperar do estudante devolver ao país o que recebeu dele, com o tempo atual no qual o estudante se prepara para competir no mercado profissional.

“A diferença que existe entre preparar-se para devolver ao país o que se recebeu dele, trabalhando para acabar com a pobreza e preparar-se para competir no mercado de trabalho é enorme. Trata-se de dois mundos completamente distintos. Hoje quer-se do estudante a negação do outro, sob o eufemismo: “mercado da livre e sadia competição”. A competição não nem pode ser sadia, porque se constitui na negação do outro”. 

O “projeto”, a que Darcy se referia, quando comentava a “crise educacional” brasileira estava fundado na disputa e na negação mútua, que negava a cooperação na convivência, aquilo que constituía o social. 

No dezembro de há vinte anos, se buscava um “projeto de país”. A Educação seria a peça-chave desse projeto. Porém, as notícias que me chegavam da “equipe de transição de governo” não eram animadoras. Não se questionava a o “sistema” condenado por Maturana. E reformas avulsas não lograriam desarmar máquinas produtoras de mentiras, o negacionismo e o ódio.

A reação de Maturana reverbera uma esperança escondida no coração de muita gente. Nos esportes, alguns têm como objetivo machucar (boxe, luta livre…), levando multidões a assistir embevecidas com nocautes estupendos, enquanto o perdedor está estirado ao chão, inconsciente e ensanguentado. A multidão – desde o circo romano pelo menos – vibra com um espetáculo em si degradante, mas que mantemos como “esporte”, no sentido mínimo de que é um confronto com regras, com juiz. 

Maturana segue indicando uma de suas teses mais marcantes: “competição é fenômeno cultural e humano, e não constitutivo do biológico. Não existe a convivência sadia, porque a vitória de um surge da derrota do outro. O mais grave é que, sob o discurso que valoriza a competição como um bem social, não se vê a emoção que constitui a práxis do competir, que é a que constitui as ações que negam o outro” 

Entretanto, na Ucrânia, muitas pessoas eram encontradas mortas, com as mãos amarradas, com sinais de tortura. Hospitais, bens culturais, escolas e edifícios residenciais eram destruídos. Dois terços das crianças ucranianas eram obrigadas a abandonar as suas casas. Milhares de soldados mortos jaziam nas morgues. E parecia que ninguém os queria recuperar. 

O Mikhail apelava a que as mães russas fossem buscar os cadáveres dos seus filhos, pois estava a ser planejado o desfile do Dia da Vitória. O autarca recebeu ordens de “limpar uma parte do distrito central da cidade de escombros e cadáveres”, para garantir que o desfile pudesse ser realizado.

Li este comentário nas redes sociais:

“Temos de atravessar a névoa da guerra para chegar à verdade”. 

Perguntei: Seria necessária essa “névoa”?

Na Ucrânia dos anos vinte, muitos milhares de civis foram mortos, mulheres e crianças foram violadas, foram perpetradas atrocidades sem fim e pairava a ameaça do uso de armas químicas. Mas, para os donos da guerra a “operação militar” tinha apenas… “objetivos nobres”.

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLXXIX)

Além Paraíba, 9 de dezembro de 2042

Aquilo que hoje vos conto passou-se há quarenta anos. Estávamos no julho de 2002 e o vosso avô atravessava o Atlântico, para mais um tempo de aprendizagem de Brasil.

Em Portugal, julho e agosto são, por regra, os meses mais quentes do ano. Parti vestido de camiseta leve e sandálias. De Guarulhos segui para o interior paulistano. O dia estava enfeitado de sol, a temperatura estava amena. Porém, um vento gélido começou a soprar, no final da tarde.

No interior do Brasil, o mês de julho é, tradicionalmente, “fresquinho”. Eu não previra essa situação e o meu corpo começava a reagir, eu já tremelicava. Dirigi-me a uma loja, para comprar agasalho.

“Boa tarde! Preciso de uma camisola.”

“Uma camisola?” – quis confirmar a atendente.

“Sim, uma camisola.”

“E… para quem é a camisola? A pessoa é magra? Que idade tem a senhora?”

“Não! Não é para outra pessoa, a camisola é para mim.”

A funcionária fitou-me com ar de incredulidade. 

“O senhor está a brincar, não está?”

“Não! Não estou. A camisola é mesmo para mim. Lá fora, está muito frio.”

Poupar-vos-ei à descrição do que, a seguir, se passou. Acabámos ambos a rir, quando tudo se esclareceu e a moça do balcão da loja ficou sabendo que, em Portugal, camisola é roupa de lã, tecido de aquecer o corpo.

No tempo em que a palavra ainda era fonte de mal-entendidos, essa não foi uma situação isolada. Já em 2001, no nordeste brasileiro, eu “armara confusão”, quando me referi aos “putos da Ponte”, e tentei explicar como esses putos aprendiam. Até recorri a alguns versos de um belo poema: “São como bandos de pardais à solta os putos.”

A palestra decorria numa escola confessional. E eu não entendia por que as freirinhas da primeira fila do auditório manifestavam incómodo. Quase saltaram da cadeira, quando eu disse que as professoras da Ponte eram raparigas muito trabalhadoras. E exibiram nos rostos um esgar de reprovação, quando eu afirmei que precisava de “pagar propina”, para poder estudar.

“Puto” é a palavra portuguesa equivalente a “guri”. É a maneira mais bela de nos referirmos a uma criança… em Portugal, claro! No Sul, a palavra adquiria dúbio significado, ou era considerada vitupério. Involuntariamente, eu proferia ofensas. 

Foram inúmeras as situações de linguístico desentendimento. Já nos idos de setenta, quando rumei aos cafundós do meu país, precisei de elaborar um glossário, para mitigar o meu desenraizamento cultural.

Desde 2040, as cartas que vos enviei eram sementeiras de palavras, que adquiriram visibilidade pública, tentando encurtar o fosso existente entre os saberes e os fazeres, e entre o linguarejar teórico e o domínio da prática. Tarefa difícil era essa de tentar explicar o sem sentido da Escola que tivemos, até aos anos vinte deste século! Mas não perdia nada em tentar.

Para nos referirmos ao sujeito de aprendizagem no contexto de uma relação, desenvolvendo vínculos, não seria suficiente falar de pedagogia. Já não se tratava da paidós grega, da criança conduzida pelo pedagogo, nem de andragogia, palavra que designava a educação de adultos, mas de considerar a pessoa (o ser humano criança, jovem ou adulto) em autotransformação-com-outros, produzindo e partilhando conhecimento. Poderíamos recorrer, por exemplo, ao termo antropogogia, para designar uma ciência da aprendizagem.

Para uma nova construção social de aprendizagem seria necessário conceber uma nova nomenclatura. Se a linguagem produz e reproduz cultura, se àquilo que era novo não se deve aplicar raciocínios dedutivos, não se recomendaria a elaboração de um novo glossário?

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLXXVIII)

Riacho Fundo, 8 de dezembro de 2042

Perguntastes: Se o avô não sai de casa, por que escreve junto à data nomes de cidades onde não se encontra?

É verdade, queridos netos. O ciático já não me permite fazer grandes viagens. Por isso, coloco junto à data os locais aonde ainda consigo ir e, também, aqueles para onde a memória me tem levado. Escrevo os nomes de lugares onde ajudei educadores a criar projetos, como Bananeiras, do sertão paraibano, de que vos falarei mais adiante.

Há vinte anos, eu regressava a lugares onde vivera por muitos anos e de onde tivera de partir para sobreviver a tempos sombrios. Em romagem de saudade, fui até ao Memorial Darcy Ribeiro. Lá, fiz a foto que junto a esta cartinha, e que fazia parte de uma exposição evocativa do Mestre. 

Após um bom repasto vegetariano no restaurante Utopia, meti conversa com o Alexandre, argentino de nascimento, brasileiro de coração. O Alexandre recordava-se do nosso encontro na casa do amigo Isaac, e me perguntou:

“Por que voltaste a Brasília?” 

“Para retomar projetos, claro! Um taurino nunca desiste, nem abandona à sua sorte aquilo que estima.”

Inevitavelmente, a Copa veio à baila. Éramos dois estrangeiros no país do futebol. A Argentina, Portugal e Brasil estavam nos quartas-de-final da competição. 

Nas escolas daquele tempo, ainda vigorava a gestão do tempo herdado da Revolução Industrial. Ainda havia ano letivo, os cinquenta minuto de aula, as sirenes ainda tocavam nas fábricas e nas escolas, para anunciar os fins de turno. Dos 365 dias de cada ano civil, as escolas apenas aproveitavam 200 (mal aproveitados, diga-se de passagem). E, em tempo de Copa, até essa tradicional gestão do tempo era subvertida – em dia de jogo do Brasil, os prédios das escolas fechavam as portas.  

A comunicação social delirava com as vitórias da seleção nacional. O futebol ocupava quase todos os noticiários, misturado com notícias de assaltos, de guerras e outras violências. De vez em quando, lá aparecia uma boa notícia. Foi o caso de uma reportagem sobre uma escola de Bananeiras.

No dezembro de há vinte anos, a Senhora do Carmo foi notícia na televisão. Gostei de ver a Leila dizer que trabalhavam em equipe, que lá não havia prova, nem sala de aula, que faziam tutoria e elaboravam roteiros de estudo. A equipe de projeto da Leila usava tudo aquilo que com eles eu partilhara, numa das minhas viagens ao interior paraibano. A Leila se inspirara no exemplo da Escola da Ponte e, com a sua equipe, tinha vivido a aventura do seu primeiro voo para visitar o Projeto Âncora.

O WhatsApp se animava com trocas de mensagens sobre a reportagem. Era evidente o regozijo dos meus companheiros universitários, que eles deveriam temperar com senso crítico. Porque aquela escola corria risco de paralisia inovacional. 

Quando eu soube que aquela escola fora convidada para fazer parte de um “programa”, que corria risco de ser apanhada numa “Rede”, em que ainda havia quem pensasse que “o centro” do processo de aprendizagem era o aluno, eu temi pelo futuro do projeto. 

Poderia vir a ter o destino de outros celebrados projetos. Quando assumiam visibilidade social, eram objeto de curiosidade, celebrados em vídeo, vertidos em teses. Acadêmicos se apossavam das “novidades”, inventando “redes de projetos inovadores” que, na realidade, não passavam de esforços de mudança. 

Elogiados, usados e abusados, esses projetos estacionavam em práticas de escolanovismo primário, não evoluíam. A inovação desaparecia sem deixar rasto. A inovação matava a inovação.

Acaso os acadêmicos não perceberiam a diferença entre “mudança” e “inovação”?

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLXXVII)

Rio das Flores, 7 de dezembro de 2042

Já aqui referi a existência de um terceiro manifesto da educação brasileira. Publicado em 2013, foi votado ao ostracismo. Desta vez, o menciono, em palavras de outro dos seus coautores. Faço-o, à distância de trinta anos, para que a memória dessa geração e da geração dos “pioneiros” e “convocados” não se apague.

O Terceiro Manifesto foi fruto de árduo trabalho. Não me refiro à tarefa de o termos redigido, mas da tentativa (frustrada) de o operacionalizar. 

Numa entrevista, a Ely isto dizia:

“Um sistema ultrapassado e tenta perdurar. Não tem mais sentido científico nem legal. É um bolo com massa e recheios podres e um lindo glacê branco por cima. Vem um governo e troca o glacê, vem outro e põe um moranguinho. Nenhum mexeu na massa.

Cadeiras enfileiradas em frente ao professor que fala por 50 minutos sem parar. O cenário comum às salas de aula brasileiras já não é mais tão bem aceito por alguns educadores, tampouco pelos alunos.”

Assim se expressava a Ely. Dez anos decorridos, as cadeiras continuavam enfileiradas em frente a um professor, que falava por 50 minutos. E a inovação maior desse período – a Escola do Projeto Âncora – ia sendo destruída, deixando raras réplicas.

Entre os anos de 2004 e de 2013, os Românticos Conspiradores elaboraram o Terceiro Manifesto. Lançaram-no na primeira CONANE. Depois, no entender da Ely, ele terá sido… “engavetado”.

O manifesto demonstrava, com base em estatísticas oficiais, que a situação da educação brasileira estava aquém do desejado. Um relatório da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), de 2010, revelava que 56 bilhões de reais tinham sido desperdiçados por más políticas públicas do setor. Entre os 100 países com melhor Índice de Desenvolvimento Humano do mundo, o Brasil era o terceiro com maior taxa de abandono escolar. Anualmente, três milhões de jovens deixavam de estudar e 47% dos universitários desistiam no meio do curso.

A divisão etária dos alunos era questionada. Dizia a Ely que “a separação das crianças pela idade, no momento de entrada na escola, tinha tido origem na década de trinta, quando essa medida era necessária para limitar as vagas públicas, devido à grande procura e pequena oferta. Entretanto, o Estatuto da Criança e do Adolescente tornou obrigatório o oferecimento das vagas. 

Os períodos de 50 minutos em que as aulas são divididas remetem-nos a um período ainda mais distante. É herança da divisão precisa de tempo imposto pela Primeira Revolução Industrial do século XIX, e a segmentação cartesiana das disciplinas enfraquecia o diálogo entre disciplinas.

O corte etário não é científico. Que diferença existe entre a criança nascida em 30 de maio e a nascida no 1º de junho? O instrumento para diminuir a quantidade de vagas é comparável ao Enem, que serve para reduzir a quantidade de vagas na universidade. São dois absurdos!”

E a Ely apontava um possível caminho: 

“A grande aposta é a da implantação de comunidades de aprendizagem, “derrubar muros”, libertar ´professores e alunos da sala de aula, numa aprendizagem de contato direto com a comunidade. 

Além da interação com o entorno, propomos uma nova avaliação, evidências de aprendizagem comprovadas cientificamente. É uma proposta diferente das comunidades de aprendizagem criadas pela Universidade de Barcelona e implementado pela UFSCar.”

Na entrevista, a Ely referia-se a uma das fake news em que a comunicação social desse tempo era fértil. Como essa de São Carlos ser “referência em comunidades de aprendizagem no Brasil”. 

Dessas falsas comunidades vos falarei.

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLXXVI)

Mar de Espanha, 6 de dezembro de 2042

A minha amiga Cláudia acompanhou o drama de uma escola que, por trinta anos resistira a múltiplas investidas, à semelhança de um Asterix num canto da Gália, e de uma equipe que via se aproximar uma espécie de “orfandade” de “líder histórico”.

Como vedes, estou sempre a retomar a história da Ponte, porque ainda está por utilizar um manancial de informação contido em muitos estudos. No decurso da pesquisa da Cláudia, os entrevistados repetiam o que em outros estudos haviam dito:

“O afastamento do Professor Zé foi numa altura em que nós ainda estávamos com grandes desequilíbrios dentro da equipa, ele teria que estar por perto.”

Estive “por perto” nos momentos em que me pediram para estar. Como numa reunião em que assisti ao abjurar de princípios. Só dez anos depois, me dispus a procurar explicação para o sentimento de vergonha, que me assaltou nessa reunião. Mas, voltemos à tese da Cláudia, que assim descrevia as suas primeiras impressões na chegada à Ponte:

“Muitas coisas chamam a nossa atenção ao chegarmos na Ponte. Para mim, o primeiro impacto foi o “portão da rua”. Cheguei na escola numa segunda-feira à tarde, horário de aula, e o portão de acesso à escola estava completamente aberto. Achei que alguém tinha esquecido de fechar ou até mesmo de trancar.

Lembrei das escolas que trabalhei e convivi no Brasil, o portão sempre estava trancado, de preferência com cadeado, deixá-lo aberto era uma falta grave.”

A Cláudia surpreendeu-se com a atitude de “abertura” da escola, simbolizada num portão aberto, porém, a interface escola-meio social nem existia nessa autônoma construção social de aprendizagem, porque essa escola era um nodo de uma comunidade. E a Cláudia concluía:

“A curto e a médio prazo, a qualidade da escola pública não será tributária de políticas educacionais macros, tampouco de massificados e efêmeros programas, projetos ou política de governo, mas sim da decisão dos (as) profissionais que nela trabalham de tornarem-se autores (as).

 

A singularidade da construção pedagógica realizada na Escola da Ponte abriga um processo de produção intelectual dos seus atores, que talvez só possamos nos dar conta da sua verdadeira importância, passado o período de um certo apelo mitológico.

O Projeto Fazer a Ponte, tanto no que diz respeito aos princípios, quanto às práticas, não deixa de ser tributário de um quadro teórico e conceitual com base em trabalhos de estudiosos do fenômeno educacional escolar e do desenvolvimento humano. Entre esses, incluem-se Celestin Freinet e os educadores que fazem parte do Movimento da Escola Moderna.”

Efetivamente, o projeto Fazer a Ponte nascera sob o signo da Elise e do Celestin (porque, por detrás de uma grande mulher, há sempre um grande homem), mas soube evoluir, atualizar a proposta da família Freinet. Nesse movimento nos afastamos do “congelamento” de técnicas e de fundamentalismos pedagógicos.

Conta-se que, em tempos idos, foi promovido um concurso, para distinguir o projeto dos projetos e o seu guru.
Concorreram dezenas de confrarias pedagógicas e, após sucessivas eliminatórias, duas se defrontaram na final.
O júri apresentou um problema e pediu propostas de solução. Tratava-se de mudar uma lâmpada fundida. A equipe que apresentasse a proposta mais criativa seria considerada vencedora.

As duas equipes desistiram da competição.

Quando o júri quis saber o porquê da desistência, uma das equipes disse que, no tempo em que o seu guru teorizara, ainda não havia lâmpadas.

A outra respondeu:

“O nosso mestre nunca escreveu sobre lâmpada fundida.”

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLXXV)

São José do Vale do Rio Preto, 5 de dezembro de 2042

Queridíssimos netos, sei por que me que dizeis que as perguntas do final das cartinhas são “malandrinhas” e retóricas. Em certo sentido, todas as perguntas o são. Só pergunta quem sabe a resposta, ou uma hipótese de resposta.

Até cerca dos seis anos, quase todas as crianças fazem perguntas de modo espontâneo. Porém, sempre que eu ia ao chão das escolas e fazia perguntas a crianças que já tivessem passado por duas ou três salas de aula, invariavelmente, elas respondiam:

“Eu posso dizer o que eu quero saber? Eu posso dizer o que quero ser?”

“Sim! E não quando fores grande…”

As crianças já quase não perguntavam o que queriam saber, fazer, ou ser. Já lhes tinham destruído o dom de perguntar, de interrogar a vida e de se interrogar. Foram proibidas de questionar. 

Em sala de aula, já tinham ouvido respostas a perguntas que jamais fizeram. Alguém lhes destruiu a curiosidade. E esse era um dos efeitos perversos de um obsoleto modelo educacional, do qual as escolas mais conservadoras somente conseguiram libertar-se já perto do final da década de trinta. 

Ontem, falei-vos da minha emancipatória saída da solidão da sala de aula. Ainda que a direção da escola e o ministério me mandassem a ela voltar, jamais voltaria. Por mais de meio século, exerci a profissão em múltiplos espaços de aprendizagem e em equipe. 

Quando o amigo Rubem me perguntou como conseguia o guacho colocar o primeiro graveto do seu ninho, respondi com metáforas.  

“Ao construir os seus ninhos suspensos sobre as águas, o guacho dava lições de arquitetura. Mas, sobretudo, dava lições de cooperação, de solidariedade. Possuía os saberes dos construtores de pontes, sabia que as pontes estabelecem sempre uma transição entre o que é e o porvir. E que, para enlaçar o segundo dos gravetos no ramo pendente sobre o abismo, precisaria de dois bicos solidários segurando o primeiro. 

Muitas vezes me perguntaram qual o segredo da longevidade do projeto Fazer a Ponte. O Rui nos contou um dos segredos:

“A organização escolar moderna baseou-se na transposição da relação dual entre um professor e um aluno para uma relação dual entre um professor e uma classe. O pensamento pedagógico continuou preso à primeira alternativa (a relação professor-aluno) em desfasamento com a realidade (a relação professor-classe). 

Na Ponte, esta contradição foi superada, na medida em que a organização é estruturada por uma relação entre uma equipa de professores e um conjunto de alunos, considerados na sua individualidade e que multiplicam entre si, na relação com os espaços e na relação com os professores, uma gama variada de modalidades de interação. 

É assim que se torna viável uma escola que, em princípio, não deveria funcionar, pois todos os professores trabalham com todos os alunos e estes não têm um lugar fixo para brincar e aprender. A demonstração prática de que é possível organizar uma escola de forma bem-sucedida, sem o recurso à organização por classes, representa uma contribuição inestimável dos professores da Ponte para enriquecer a utensilagem mental que nos permite lidar com os problemas da organização escolar.

A experiência educativa desenvolvida na Ponte constitui a mais clara afirmação do que pode ser a construção da autonomia de uma escola, baseada no profissionalismo de uma equipa docente, em alternativa a tutelas burocráticas e centralizadas.” 

E a pergunta “que não posso calar” é esta:

Por que seria que este processo de construção e afirmação de uma autonomia real, não outorgada nem imposta por decreto, não acontecia em outras escolas?

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLXXIV)

Guapimirim, 4 de dezembro de 2042

Neste mesmo dia, mas do dezembro de há vinte anos, convidei amigos acadêmicos, exímios no campo teórico, para acompanhar educadores éticos na teorização das suas práticas. Porque, há setenta anos, me reconheci… praticista.

“Ainda bem que chegou um homem!”

A exclamação da diretora da escola deixou-me apreensivo. Entre sorrisos e votos de boas-vindas, fui amavelmente recebido e esclarecido:

“Colega, temos uma turma de lixo a precisar de pedagogia musculada, de um professor homem.”

“Turma de lixo?”.

“Sim. De analfabetos e malcomportados. O colega aceita ficar com eles? Fazia-nos um grande favor”.

Essa frase ainda ecoa na memória deste vosso avô. E já lá vão quase setenta anos. “Turma de lixo”! Chamar lixo a seres humanos?…Aceitei.

No primeiro dia de aulas, perguntei àqueles jovens por que não tinham aprendido a ler.  

“A gente não tem cabeça, senhor professor. A gente é burro. Estamos aqui, há seis anos, nós já tivemos pr’aí umas dez professoras e todas as professoras disseram que a gente é burra.”

Quis saber como as professoras dos anos anteriores os tinham ensinado (melhor dizendo, não tinham). Responderam em coro:

“Todas ensinaram igual…o a, e, i, o, u. E a gente fazia carreirinhas de as, es, is, os e us. Depois, a senhora professora dava a lição do pê, a do pa, pe, pi, po, pu. Depois, a gente juntava à lição do tê: pato, pito, pote, pipi, tatu, tutu… 

“A gente é burra!” – Um estranho sentimento se apossou de mim. Passara anos ensinando pelo método fônico, porque outro não conhecia. Se eu voltasse a ensiná-los pelo método fônico eles conseguiriam aprender a ler? É evidente que não. Se o fizesse, seria um crápula. 

Entrei em crise, uma crise ética que só admitia duas saídas: ou aprendia a ensinar de modo que todos aprendessem, ou iria embora da profissão.

A solução surgiu com o trabalho de equipe. Juntei a turma “do lixo” com as turmas de duas professoras. A Luísa ficou com a alfabetização lógico-matemática e mais duas disciplinas. A Maria José, com a socioemocional e mais duas disciplinas. Eu fiquei com a alfabetização linguística e mais duas disciplinas. E fui aprender a alfabetizar.  

Apercebi-me de que as crianças já sabiam ler, quando chegavam à escola. Sabiam ler, por exemplo, “Coca-Cola”. Mas, até então, eu desprezara o seu repertório linguístico e mandava ler ca, ce, ci, co, cu, “ensinando” todos os meus alunos do mesmo modo, ao mesmo tempo (o famigerado “ritmo da aula”). 

Ao cabo de dois ou três meses, aqueles que “não acompanhavam” marchavam para o “reforço” e, mais tarde, para o equivalente do EJA, em Portugal.

Deveria haver outros modos de aprender a ler… Aprendi mais duas dezenas de metodologias: o global de palavras, de frases e de contos; o método natural do Freinet; o das palavras geradoras, das “28 palavras”, o “Tu já lê”; todos os fonomínmicos, todos os fonossintéticos; os silábicos, enfim!

Para saber o que se passava aquelas cabecinhas, no processo de aprendizagem, fui aprender psicologias: a da aprendizagem, a dos processos cognitivos, a da memória, enfim! Li todos os livros sobre alfabetização que, no início dos anos setenta encontrava. 

Até 76, a minha sala de aula era uma “árvore de Natal” enfeitada de projetos. A partir desse ano, não mais voltei a ser professor de sala de aula. E a “turma do lixo” aprendeu a ler.

Já pensavam que eu não faria uma pergunta. Então, cá vai (em triplicado): 

Por que razão os “teóricos” e os “práticos” andavam de costas voltadas?

Para que servia o “academicismo teoricista”? 

Por que se mantinham os professores ancorados num “jeitinho praticista”? 

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MLXXIII)

Cachoeiras de Macacu, 3 de dezembro de 2042

Regresso à sábia escrita do amigo Pedro:

“Ser professor é cuidar que o aluno aprenda. Teorias de fundo biológico da aprendizagem enfatizam sua tessitura autopoiética, de dentro para fora, autorreferente, interpretativa e reconstrutiva. 

Sábio, consciente e fundamentado, Pedro citava Varela e Maturana: 

“A realidade é captada do ponto de vista do observador (…) ativo, participante, sujeito, não objeto. Assim é todo ser vivo: não tem acesso direto à realidade externa, a não ser mediado pelos sentidos e cérebro que elaboram uma imagem reconstruída, não reproduzida. 

Nosso cérebro é, nisto e por enquanto, bem diferente do computador. Este é linear, sequencial, algorítmico, reversível, funciona de fora para dentro, não tem, nem cria autonomia própria. Já a tessitura neuronal desenvolve a habilidade reconstrutiva política de sujeitos que podem tornar-se autônomos. 

Através do conhecimento questionador seria viável superar todos os entraves à liberdade humana. Para saber pensar, uma das primeiras condições é acabar com as autoridades que nos tolhem a liberdade de pensar. Quem sabe pensar questiona o que pensa; quem não sabe pensar, acredita no que pensa. 

Na universidade, a prática comum é dar e escutar aula, tudo no mais tranquilo instrucionismo, tendo como complemento fatal a prova e na qual o assunto é recopiar a aula copiada. Instrucionismo é isso: em vez de formar, educar, emancipar, contenta-se com instruir, treinar, domesticar – o instrucionismo avassalador que carcome o sistema de ensino de alto a baixo, por conta da obsessão por aula.

Uma verdadeira universidade só poderia ser de pesquisa, não de ensino. 

Aula é invenção de professor. Aluno é vítima. A aula é vista, cada vez mais e para desgosto de muitos “auleiros” inveterados, como signo de quem não sabe pensar.”

Mais um mistério por desvendar! Se possuíam conhecimento profundo de sociologia da educação, se publicavam estudos sobre os malefícios da escola prussiana, por que a mantinham viva? Por mais que tentasse, eu não encontrava resposta (nem eles mandavam). 

Nem tudo estava perdido. Havia quem, apesar de continuar em sala de aula, refletisse. Era o caso do André, que, no WhatsApp, “postou” o seguinte comentário: 

“Este é o debate que convoca a comunidade educativa a repensar estratégias que, a partir de princípios e valores, garanta a educação emancipatória. 

Mas, não será fácil levar essa pauta ao primeiro plano. Há uma crença de que a educação brasileira deve seguir as diretrizes impostas pela OCDE, expressas, por exemplo, na BNCC, de modo impositivo e obrigatório. A pandemia parece ter sido interpretada como a prova de que é necessário “unificar” o sistema a partir de conteúdos previamente definidos.

 Assim, fica mais operacional controlar os profissionais, para que cumpram o roteiro, série a série, dos conteúdos prescritos. Se a avaliação for conferir quem cumpriu a BNCC, série a série, estamos em caminho perigoso. Vale lembrar os Manifestos de 32 e 59: unidade na diversidade. Sobrou a unidade.”

Queridos netos, vou terminando mais uma cartinha. Mas, antes que me esqueça, cá vai mais uma das perguntas que, só na década de trinta tiveram direito a resposta: 

Por que seria que, nos idos de vinte, tendo lido os autores de três (não dois) manifestos, depois de celebrarem Anísio e Darcy em livro, em congressos e na Internet, acadêmicos produtores de teses sobre os paradigmas da aprendizagem e da comunicação não praticassem Anísio e Darcy? Por que reproduziam instrucionismo, nas suas… salas de aula?

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