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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXXXIII)

Sacramento, 28 de março de 2041

Nos idos de vinte, eu já havia debelado a soberba de europeu convencido de que o futuro da educação estava no Norte. Vinte anos depois de rumar à mátria brasileira, levara um banho de humildade e a vaidade de professor coautor da Ponte havia desaparecido. Todos os dias, lutava contra pequenas arrogâncias. Todos os dias perdia a luta.

Por essa altura, reinava o caos social, em grande parte resultante do modelo educacional – familiar, social e escolar – fundado na proposta instrucionista. Adentrávamos o século XXI ancorados em velhas e nefastas práticas, buscando no hemisfério Norte aquilo que tínhamos de sobra no Sul. Adiávamos uma catarse, que nos libertasse de atávicos procedimentos.

Num aeroporto das minhas deambulações pelo Brasil da educação, escutei uma conversa de celular:

Vou chegar à faculdade em cima da hora da aula. Poderás xerocar as páginas que os meus alunos de pedagogia vão ler hoje?

Num tempo em que Gadotti afirmou que “a pedagogia tradicional, centrada sobretudo na escola e no professor, não consegue dar conta de uma realidade dominada pela globalização das comunicações, da cultura e da própria educação”, continuávamos a enfeitar o obsoleto modelo de ensino com aulas de apoio, de reforço, de “bem-estar”, ou de ética; com rankings, jogos, olimpíadas, “qualidade total”, cursos de “planejamento de aula” e “capacitações para dar aulas com alegria” (sic).

Os jornais informavam que professores universitários iam ser inscritos em cursos, “para adotarem novos modelos de aula, para que os alunos possam absorver melhor os conteúdos (sic) nas suas universidadesPeremptório, o diretor de uma universidade afirmava:

Não dá para abandonar as aulas tradicionais de uma vez”.

Não abandonaria “de uma vez”, nem nunca! As universidades iriam pagar trezentos e trinta e cinco mil reais a norte-americanos dadores de aula. Um absurdo! Mais dinheiro jogado no lixo da pedagogia requentada, quando no Brasil havia muito melhor formação do que aquela que iriam comprar no Norte. E quase gratuita!

Os doutos personagens desse imbróglio não conheciam o elementar princípio do isomorfismo na formação, não sabiam que o modo como o professor aprendia era o modo como o professor ensinava. Nem percebiam que, mesmo adjetivada de tradicional, invertida, ou híbrida, aula era aula, dispositivo que condenara à ignorância trinta milhões de brasileiros.

Trinta milhões de seres humanos diminuídos nos seus direitos não seriam tragédia suficiente? Quantas mais vítimas as universidades das aulas iriam fazer? Não seria já tempo de a universidade assumir a sua quota parte de responsabilidade pelo caos social, pelo negacionismo vigente?

A universidade era a matriz, produtora de ciência. Deveria abandonar práticas desprovidas de fundamento científico. Deveria dispensar a aula de cuspe e giz, práticas obsoletas, medievais. Porém, a educação seguia ao compasso de vontades e decisões de economistas, empresários e outros leigos.

Dizia-nos o dicionário que catarse era a palavra pela qual Aristóteles, na “Poética”, designava “purificação”. Na Psicologia, catarse equivalia a experimentar liberdade em relação a situações opressoras. Psicanaliticamente, poderia significar trazer à consciência recordações recalcadas. Na Medicina, era libertação do que era estranho à natureza do sujeito. Em 2021, talvez já fosse tempo de escutar Freire e começar a expulsar o sarro da velha escola. Ao invés de importar novos modelos de aula enfeitados com “híbridos”, conhecer aquilo que de bom tínhamos cá dentro.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXXXII)

Visconde de Mauá, 27 de março de 2041

Há cerca de uns quarenta anos, fiz uma declaração que deixou muita gente indignada. Afirmei haver estudantes que alcançavam diplomas sem nada terem aprendido, porque plagiavam trabalhos de outrem, parasitavam trabalhos de grupo (nos quais, um ou dois trabalhavam e os restantes levavam a nota), ou copiavam nos exames.

A indignação não me surpreendeu, pois havia sempre quem reagisse, quando o texto não era “politicamente correto”. Sempre houve quem recusasse ver o “fato novo do rei”, que o rei estava nu. O futuro mostrou que, mesmo que os “indignados” tentassem tapar o céu com a peneira, aquilo que era verdadeiro acabava sendo provado,

Um jornal deu a conhecer as conclusões de um estudo, que mostrava terem sido justas as minhas palavras de há quatro décadas: três quartos dos alunos das universidades colavam. O estudo divulgado tinha um título bem sugestivo: “Copianço nas universidades, o grau zero da qualidade”. O autor do estudo referia que a carga moral da assunção de uma conduta desviante poderia ter calado mais do que um dos alunos inquiridos. Mas que, apesar desse possível desvio por defeito, seriam “três quartos” os que exerciam a arte de bem colar (copiar).

Os professores-polícias eram ineficazes face à criatividade dos alunos: um auricular escondido no cabelo comprido, uma mensagem no celular… No jogo do gato e do rato, o felino docente somente lograva desenvolver no rato discente competências e habilidades que reforçavam o faz-de-conta da avaliação por exame. Aqueles que policiavam a realização das provas somente conseguiam, sem que disso se apercebessem, ensinar valores. Partindo do pressuposto de que todos os alunos eram seres potencialmente desonestos, estimulavam a deslealdade, a mentira, a dissimulação, a falsidade… a corrupção.

Dizia-nos o estudo que copiar fazia parte do currículo dos universitários, um mundo de hipocrisia, onde as notas refletiam mais a habilidade do que o conhecimento. refletiam a capacidade de retenção de informação na memória de curto prazo, para vomitar numa prova e, depois, esquecer. Os exames somente traduziam “habilidades periféricas dos estudantes” e “a incapacidade real da universidade para medir o seu real desempenho”.

Quase todos os inquiridos admitiram que “tanto copiavam os maus como os bons alunos”, O objetivo era conseguir o canudo, fosse lá como fosse, o que denunciava “uma frequência escolar mais orientada para o sucesso certificado e nominal do que para o sucesso substantivo e real”.

Quando um ministro de triste memória quis ressuscitar os pretensos méritos dos exames, voltei à liça, para demonstrar que as provas pouco ou nada avaliavam. Terminei a série de artigos então publicados com um apelo aos professores. Pedi-lhes que fossem rigorosos na avaliação, para poderem dispensar inúteis exames. Que rejeitassem a fraude dos exames. Que recusassem o surrealismo de pautas trimestrais (ou semestrais) que, em escala ordinal, davam conta das classificações dos alunos. Que abandonassem práticas de avaliação obsoletas.

O sociólogo autor do referido estudo era digno da minha admiração. Sendo professor universitário, teve coragem de revelar obscuros bastidores da sua instituição.

Lamentavelmente. eram poucos os que ousavam denunciar. Distribuindo certificados e diplomas, mas não cuidando de qualificar os seus alunos, as escolas davam um significativo contributo para aquilo que parecia ser um desígnio nacional, aquilo que o Darcy designava de “projeto”, mas que se assemelhava mais a um “caso de polícia”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXXXI)

Passos, 26 de março de 2041

Decorria o mês de março de 2010. Perplexos, jornalistas e especialistas interrogavam-se sobre as causas de infaustos acontecimentos. Um jovem e um professor se suicidaram. Talvez tivessem desistido da vida porque convivência não rima com ausência e relação não rima com solidão. Talvez porque as escolas daquele tempo fossem prédios e arquipélagos de solidões.

A modernidade remetera-nos para uma ética individualista. Carecíamos de projetos humanos com referência a um novo sistema ético, uma matriz axiológica clara baseada no saber cuidar e conviver. Dizia-nos Maturana que a educação acontece na convivência, de maneira recíproca entre os que convivem. E Winnicott definia o ser humano como pessoa em relação, ser singular, que não pode existir sem a presença do outro.

O indivíduo-com-os-outros adquiria consciência do seu papel numa ordem simbólica complexa e concreta, que o protegia dos efeitos mortais da uniformização. Se, nesse longínquo ano, era verdade que o conceito de partilha estava eivado de conotações moralistas, também era certo que era de partilha que se tratava, da manifestação de um sentimento de partilha que rejeitava atitudes de quem se julgasse no direito de dar respostas a perguntas que nunca escutou. Contrariando racionalidades mecanicistas, numa relação de escuta, a circulação de afetos produzia novos modos de estruturação social. Não negando o potencial da razão e da reflexão, juntava-lhe as emoções, os sentimentos, as intuições e as experiências de vida.

A escuta, para além do seu significado metodológico, seria humanamente significativa. No contexto escolar, teria de abdicar de atitudes magistrais e paternalistas, para que todos aprendessem mediados pelo mundo. Aos adeptos do pensamento único dizia ser necessário saber fazer silêncio “escutatório”, fundamento do reconhecimento do outro. Dizia que precisávamos rever a nossa necessidade de desejar o outro conforme nossa imagem, respeitando-o numa perspectiva não-narcísica, ou seja, aquela que respeitava o outro, o não-eu, o diferente de mim, aquele que não queria catequizar, que defendia a liberdade de ideias e crenças, como nos avisaria Freud.

Aos cínicos dizia que, onde houvesse turmas de alunos enfileirados em salas-celas, dificilmente encontraríamos resquícios de convivência. Que onde houvesse séries, anos, segmentações assentes na crença de ser possível ensinar a todos como se de um só se tratasse, enquanto o professor estivesse sozinho na sala de aula, seria inviável pensar em dialogia e convivencialidade.

As escolas careciam de espaços de convivência reflexiva. Precisávamos compreender que pessoas eram aquelas com quem partilhávamos os dias, quais eram as suas necessidades (educativas e outras), cuidar da pessoa do professor, para que se visse na dignidade de pessoa humana e visse os outros como pessoas. Precisávamos exercer a consideração positiva incondicional, de que falava Carl Rogers. De praticar a confirmação, no dizer de Martin Buber, o amor incondicional postulado pela Alice Miller.

Restava acreditar que os educadores pudessem inspirar-se nesses e em outros autores, para reconfiguração das suas práticas, para a passagem de uma profissão solitária para uma profissão solidária. Restava acreditar que o suicídio não era algo inevitável.

Havia quem se surpreendesse, quando eu recomendava que procurassem nas escolas professores que ainda não tivessem morrido. Havia quem recusasse ver que muitos professores morriam aos vinte e eram enterrados aos sessenta.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXXX)

São Sebastião do Paraíso, 25 de março de 2041

Nos idos de vinte, o homem mais lúcido que havia conhecido decifrava os pequenos grandes segredos que a natureza humana encerrava. Nos seus noventa e nove anos, comungava da simplicidade dos sábios, para nos dizer que estava vivendo uma crise nova, uma nova pandemia (ele nascera quando findava a gripe espanhola):

“Surpreendi-me com a pandemia, mas em minha vida estou habituado a ver chegar o inesperado. Estou vivendo uma crise nova, enorme, mas que tem todas as caraterísticas da crise. Isto é, de um lado suscita a imaginação criativa e, de outro, suscita medos e regressões mentais. 

Buscamos todos a salvação providencial, só que não sabemos como. É preciso aprender que na história o inesperado acontece, e acontecerá de novo. Pensamos viver certezas, com estatísticas, previsões, e com a ideia de que tudo era estável, quando já tudo começava a entrar em crise.

Vemos hoje instalarem-se os elementos de um totalitarismo. Este, não tem mais nada a ver com o do século passado. Mas temos todos os meios de vigilância a partir de drones, de celulares, de reconhecimento facial. Existem todos os meios para surgir um totalitarismo de vigilância. O problema é impedir que esses elementos se reúnam para criar uma sociedade totalitária e invivível para nós.

Às vésperas dos cem anos, o que posso desejar? Eu desejo força, coragem e lucidez. Precisamos viver em pequenos oásis de vida e de fraternidade”.

Como diria o amigo Valdo, Morin era um referencial de várias naturezas e olhares. A escassos meses de completar um século de vida, dizia:

“É hora de mudarmos de via, de atentarmos nas lições do corona vírus”.

Ao que parece, os professores não liam o que Morin escrevia.

A leitura não é tudo na vida, ler não é suficiente para operar mudanças, mas não pode haver mudança nas práticas que possam dispensar a teoria. Por mais livros que se leia, nunca serão suficientes na ajuda prestada na resolução das nossas dificuldades de ensinagem. Compreendi isso no contexto de uma prática que concretizou utopias. E, já aposentado, partilho leituras com professores que não desistem de se melhorar. Tenho consciência de que, por mais livros que leia, serei sempre ignorante, dada a quantidade de conhecimento disponível.

Surpreendia-me, quando alguém me dizia haver professores que não liam. Talvez por isso, muitos professores agissem como aprendizes de feiticeiro, não logrando explicar por que faziam aquilo que faziam, fosse lá o que fosse que fizessem. Não conseguiam fundamentar as suas práticas com recurso à teoria. E, porque não se distinguia a sua “opinião” da “opinião” de qualquer leigo em pedagogia, eram “desvalorizados por uma opinião pública na qual todos se consideravam especialistas em Educação”, como nos diziam a Hanna e o Piaget.

Os não-leitores eram mais vulneráveis a discursos pretensamente inovadores. Sei de gente que fez fortuna vendendo receitas de autoajuda pedagógica, sedutoras soluções, que os próprios vendedores não aplicavam. Observava-os afagando o ego dos professores, contornando questões delicadas, recorrendo ao discurso da desculpabilização, tratando os professores quase como mentecaptos.

Perplexo, eu assistia a intervenções públicas de adeptos do pensamento único, que misturavam afirmações do senso comum com propostas fósseis, contribuindo para que as escolas não se apercebessem da obsolescência do modelo instrucionista.

Mas, a década de vinte seria marcada por uma profunda e radical transformação cultural decorrente da criação de hábitos de leitura: de si e do mundo.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXXIX)

Serra da Mantiqueira, 24 de março de 2041

Nunca será demais lembrar que, apesar da teoria e contra ela, a realidade nos diz que, no campo da educação, nos idos de vinte e desde há séculos, tudo estava escrito e tudo continuava por concretizar. Continuávamos a negar a diversidade. Isso mesmo: a “crise da escola” era a dificuldade de lidar com a diversidade.

Acreditava ser possível obter mudanças efetivas no comportamento humano, questionando a estrutura das formas de educação que praticávamos. O desenvolvimento de atitudes de respeito, de solidariedade e preservação da vida pressupunha escapar de formatações, superar visões fragmentadas, aprender a reconhecer os impactos coletivos gerados por ações individuais e vice-versa – aprender a identificar padrões de dominação e exploração presentes em nossa cultura… e diversificar.

Desejava que essa asserção estivesse presente na elaboração de políticas públicas e que influenciasse positivamente os tecnocratas que controlavam o sistema, bem como as instituições de formação de professores. Esperava que os ministérios e secretarias de deseducação passassem a ser de educação, e que os sistemas de ensinagem se transformassem em redes de aprendizagem.

Reflitamos… Se é sabido que aprendemos com quem sabe algo diferente daquilo que nós sabemos e que escassa novidade vem do mesmo grupo etário, por que razão as séries e as turmas eram predominantemente constituídas por jovens da mesma idade?

A essa absurda segmentação se juntava aquilo que dava pelo nome de “data de corte”, ou “idade de corte”. Dizia a lei que os guris poderiam entrar no ofício de aluno, apenas se completassem seis anos até ao dia 31 de março. Se a mamã se esforçou, puxou, tentou, mas não conseguiu parir o seu filho, até à meia noite desse mês, a criança deveria esperar um ano inteiro para ter o seu primeiro dia de escola?

Eram inúmeros os exemplos de absurdos legislativos. Por ora, apenas acrescentarei um, por estar intimamente ligado ao anterior. Presumia-se, ou as conclusões de duvidosos estudos determinavam, que existisse uma idade ideal para a alfabetização. Mas, como explicar que houvesse crianças que desejavam aprender e aprendiam a ler aos cinco anos, e jovens com dez anos sem desejo nem condições de serem alfabetizados?

Crime era fazer esperar os primeiros e submeter os segundos à humilhação de precoces tentativas de alfabetização, todos ensinados pela mesma cartilha e metodologia, como se fossem um só. Cadê o respeito pelo ritmo de cada qual? Esse duplo absurdo explicava, em parte, a existência de milhões de analfabetos funcionais, que as estatísticas brasileiras vergonhosamente ostentavam.

Urgia interpelar o quadro legal naquilo que ele tinha de rançoso. Urgia desburocratizar as práticas, num projeto feito num refazer-se contínuo, em permanente fase instituinte, avaliado em múltiplas releituras. Urgia reformular terminologias: desenvolver trabalho COM e não ensinagem PARA; substituir o OU pelo E, harmonizar o EU com o NÓS. Urgia redefinir o perfil do mediador de aprendizagem, considerar o aluno como participante ativo de transformações sociais, reconfigurar práticas, desguetizar as escolas.

Seria possível passar do absurdo à concretização da utopia, identificando causas profundas de fenômenos como a exclusão escolar e social, que não eram inevitáveis. Bastaria que os professores se interrogassem. Da capacidade de interpelar as práticas poderiam emergir dispositivos de mudança, em todos os espaços sociais onde ocorria aprendizagem.

Em 2021, só faltava… fazer.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXXVIII)

Pedra Selada, 23 de março de 2041 

Sempre oportuna e incisiva, a minha amiga Tina zurzia a propósito as “bolhas enfadonhas” e outras aberrações em que a educação dos idos de vinte era pródiga:

“Não confundir PRESENÇA com “P” na chamada. Como as escolas e universidades se tornaram bolhas enfadonhas, criaram a chamada, que obriga o aluno a estar de corpo presente e a mente pode estar na lua. No dia que as escolas e universidades forem genuinamente espaços de aprendizagem, os alunos terão sede de novos conhecimentos. Para que haja aprendizagem, é necessário engajamento, empenho, dedicação, esforço, desejo, emoção, empolgação, curiosidade e encantamento. 

A chamada é o mais poderoso instrumento infantilizador e controlador do sistema educacional. Em nada contribui para o processo de aprendizagem e chega a ser mais inútil que a nota.”

Quando li as palavras da minha amiga, recordei o dia em que me entregaram a “listagem das turmas”, me exigiram um “cronograma de aulas para o semestre” e uma proposta de datas de realização de exames. Juntaram ao pacote umas “listas de presenças”.

Devolvi a “listagem”, informando que não acataria a imposição de segmentações, fossem elas “turma”, “ano letivo”, o que quer que fosse de tralha instrucionista. Com todo o respeito pelos hábitos da casa, recusei entregar o “cronograma das aulas”, informando que não daria aula. E joguei no lixo as “listas de presença”, porque na “proposta pedagógica” dessa instituição estava escrito que se pretendia “formar cidadãos autônomos e responsáveis”.

Comuniquei, também, que praticaria avaliação formativa, contínua e sistemática, traduzida em portfólio. Não haveria exames. Em pleno século XXI, os testes padronizados eram criadouros de corrupção intelectual e moral. O hábito da “cola” era um dos subprodutos de um malfadado modelo educacional recriado no século XIX. Alguns termos importados da gíria – no Brasil, a “cola”; em Portugal, “copianço” – chegaram a ser encarados pelos autores dos dicionários com algum pejo. Mas, por maior ostracismo a que fossem votados pela ortodoxia, não deixaram de ser práticas sociais suscitadas e alimentadas pela escola da prova, que ainda tínhamos no início da década de vinte. Delas resultaram fenómenos colaterais, cujos efeitos poderão ser avaliados pela leitura do diálogo que se segue.

No rescaldo de uma palestra, em que eu (fraternalmente!) zurzi nas práticas de avaliação mais vulgarmente utilizadas pelas escolas, uma jornalista fez-me a pergunta seguinte:

“O que faria para resolver o problema da “cola”? 

Questionei:

“A “cola” é mesmo um “problema”, ou consequência de um problema bem maior?” 

A jornalista não entendeu a pergunta, ou não quis entender, porque insistiu:

“Que sugestão daria para resolver este problema?”

Eu satisfiz a sua curiosidade, recorrendo a alguns considerandos:

“Se uns alunos copiam e outros não, se o acesso à informação deve ser democratizado, bastará que se acrescente ao currículo nacional mais uma disciplina. Poderá chamar-se “Técnicas de colar”. Depois, far-se-á um concurso interno na escola, de modo a selecionar o professor para a leccionar. Será aquele que, no seu tempo de estudante, tenha dominado bem a utilização da “cola”. 

Com a carga horária de uma hora semanal, esta disciplina habilitaria todos os alunos ao uso da variedade de recursos disponíveis nesse campo do saber. Deste modo, estaria assegurado o cumprimento do princípio que nos diz ser a escola uma estância de igualdade de oportunidades.” 

No tempo do negacionismo, a ironia nos salvava, quase nos livrava do desespero.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXXVII)

Uberaba, 22 de março de 2041

Querida Alice, querido Marcos, a estória do beija-flor é uma fábula tão curta, que se conta em poucas linhas. Mas é também tão rica de ensinamento, que aquilo que nos ensina não cabe em mil compêndios. Conta-se que, certo dia, houve um incêndio na floresta – no tempo em que nascestes, havia mãos criminosas que ateavam fogos destruidores –  e todos os animais se puseram em fuga. Todos, excepto o beija-flor. Ia e voltava, ia e voltava, trazendo uma gota de água no bico, que deixava cair sobre as labaredas e a terra calcinada.

Quando um dos animais em fuga o interpelou, dizendo ser impossível extinguir o fogo daquele modo, o beija-flor respondeu:

“Eu sei que não são estas gotas que vão apagar o fogo, mas eu faço a minha parte”.

Talvez o beija-flor da estória tivesse lido um livro de muitos livros, onde está escrito que mais vale acender uma luz do que maldizer a escuridão. Isso não sei. O que sei é que havia um beija-flor no meu Jardim do Éden. Pequenino, negro, um corpinho onde cabia a inabalável fé dos colibris, o dom da solidariedade que herdara das gaivotas, toda a generosidade do mundo. O beija-flor sabia que só vale a pena viver, se a Vida for serviço.

A Vida ao serviço da Vida nos leva a defrontar obstáculos. Tentando ultrapassá-los, cometi tantos erros na Vida, que nem sei como ainda há quem cuide deste velho professor. Como quando suscitei reações de tenebrosos seres. Escabicharam os mais secretos recantos, estiveram atentos ao mais leve bater de asas. Depois, partiram para informar o chefe dos pássaros de tudo o que tinham visto e escutado e que em nada correspondia ao que os abutres tinham escrito e os papagaios tinham repetido. Mesmo assim, o negacionista chefe dos pássaros manteve-se persecutório, provando que na vida dos pássaros, perante a infâmia, como face à beleza de certos gestos, há momentos em que nem chorar se consegue.

Quando fui  forçado a me afastar do Jardim do Éden, a amoreira adoeceu, a romãzeira morreu, os canarinhos-da-terra migraram para outros jardins. Mas, o beija-flor ficou por lá, não desistindo de fazer a sua parte.

Eu decidira viajar, depois de mais de um ano prisioneiro de um prudente confinamento imposto por um vírus. Senti necessidade da presença presente dos beija-flor, que apenas vira na tela do computador. Fui ao encontro dos beija-flor de outras paragens.

Eram tempos de profanação aqueles de que vos venho falando. Mas eram também tempos de um adormecer calmo, na expectativa de manhãs que lavassem toda a infâmia que sobre o mundo se abateu. Os pássaros que habitavam as trevas assustavam pelo poder da maldade que sempre estavam prontos a usar. Mas, a maldade pouco ou nenhum poder tinha face ao brilho sereno da verdade.

Estava a escola imersa numa angustiante espera, quando foi acariciada pelo sussurrar de palavras esperadas. Os pardais são pássaros de que se depreende uma benfazeja simplicidade e foram as palavras singelas de um pardal que chegaram sob a forma de e-mail.

“Caro Zé, tenho seguido com grande preocupação teu viajar. Sei que acreditas na possibilidade de todos os pássaros poderem viver livres das grilhetas, que os violentam. Pena é que, para além dos vírus, não faltem por aí urubus famintos. Mas, fica sabendo que os beija-flor continuam ativos e não estão sozinhos. Há muitos pardais debaixo de um céu carregado de nuvens escuras, que apenas aguardam um sinal para agir”. 

O sinal de agir seria dado pelos beija-flor. Pelos que eu já conhecia da Internet e pelos que reencontrei na viagem. Mesmo em tempo de pandemia, “navegar é preciso”. Viver e fazer viver, também é preciso.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXXVI)

Cidreira, 21 de março de 2041

Num seminário sobre “flexibilização curricular”, uma diretora de agrupamento afirmou, orgulhosa, ter introduzido uma inovação (foi isso mesmo o que ela disse) na gestão do tempo. Substituiu a atribuição das notas trimestral (os seus professores ainda “davam nota”) pela nota… semestral.

Eu cheguei a acreditar que se tratasse de uma blague, do uso da ironia para captar a atenção e, depois, dizer qual fora a “inovação”. Mas, ela mais não disse. Foi ovacionada. E, para não faltar ao respeito à senhora, me retirei do local.

Nos idos de vinte, o debate sobre educação era algo surreal. Soube que, após a minha saída do auditório, essa diretora enalteceu o regime de ciclos e disse ser esse o regime em vigor nas suas escolas. Fora do auditório, um vendedor de livros escolares, fazia publicidade aos manuais usados nas escolas que a senhora diretora superiormente dirigia. As capas desses manuais ostentavam inscrições como “Matemática 1º ano”, “Língua Portuguesa 2º ano”, “História 7º ano”… Ano! Cadê o ciclo?

Outro entretenimento em voga por essa altura era o de estabelecer “a melhor idade para aprender a ler”. Deparávamos sempre com as mesmas inúteis discussões, as mesmas abstrações. Eram organizados congressos. realizadas reuniões nos ministérios, para se encontrar resposta para uma pergunta que aportava um pressuposto – o de que todos deveriam fazer o mesmo, aprender o mesmo, no mesmo momento.

Conheci crianças de cinco anos aptas para a alfabetização e jovens de dez anos sem condições de aprender. Quando se pronunciava a palavra “aluno” de qual aluno (em concreto) estariam a falar? De nenhum…A melhor idade era a idade de cada qual.

O processo de letramento deveria ser considerado como um processo de inclusão. Aprender a ler pressupunha desejo e esforço. A linguagem é aprendida socialmente, nas interações verbais, como nos avisavam Bakhtin e Freire. Não poderia ser ensinada segundo a presunção de Comenius de que seria possível ensinar todos como se fossem um só. Se o fizesse, a escola não promovia o uso da leitura e da escrita como meio de comunicar e de assumir cidadania.

Quando uma professora quis ensinar a letra fê, recorreu a uma daquelas frases de antologia, que só traduziam desprezo pela inteligência e criatividade da infância. Leu para toda a turma, ao mesmo tempo, do mesmo modo:

“A mãe afia a faca.”

A Fia sou eu! – exclamou uma aluna.

“Não é nada disso, Jéssica! Eu disse afia! Afia é como… amola. Percebeste?”

“A mola?” – perguntou a aluna, com cara de nada entender.

“Sim. Amola! Já vi que compreendeste!” – concluiu a mestra.

Por este e por outros fonéticos equívoco é que alguém já disse que a linguagem é fonte de mal-entendidos.

Quando visitava uma escola, perguntei a um pequenito:

“Estás a ler essa revista?”

“Não. Eu estou só vendo e cortando. Não estou lendo!”

Sábio moço! Tinha consciência de que cortar de uma revista, palavras “que tivessem o ca e o co”, como mandara fazer a professora, não era o mesmo que ler. Nunca lera Boff, mas sabia que cada leitor e cada escritor era coautor, que cada leitor lia e relia com os olhos de que dispunha, porque compreendia e interpretava a partir do mundo que habitava.

Os adultos sabiam por que queriam aprender a ler:

“Eu vim aprender a ler, para poder ler os bilhetes que estão nos bolsos do casaco do meu marido”.

Também os menores nos davam lições de pedagogia. Como a Luciana:

“Ler é saber em silêncio”.

E os professores não eram desistentes:

“Muitos dos nossos alunos repudiam a escola. Ela os sufoca, mas nós acreditamos numa outra escola. E iremos lutar para que ela exista”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXXV)

Guarda do Embaú, 20 de março de 2041

Quando deparava com situações que não sabia como explicar, refugiava-me entre metáforas…

No fim do dia, o automóvel regressaria ao lugar de onde havia partido, mas a formiga não o sabia. Inadvertidamente, subira pela borda do pneu e introduzira-se na cabina, para empreender uma fatídica viagem. Enquanto percorria as longas estradas de Minas, eu observava o deambular solitário da pobre formiguinha. Trémula, subia, descia, voltava a subir, contornava obstáculos no couro escorregadio. Quase trezentos quilómetros humanos percorridos, a formiguinha passou pela enésima vez no mesmo lugar: o rebordo do banco dianteiro. Num gesto suicida, embrenhou-se no cabelo do passageiro. Porfiou, repetiu vãs tentativas de fuga sobre tecido e metal, até ao fim inglório – acabaria esmagada sob uma palmada certeira do meu companheiro de viagem.

A formiga da história não era a mesma que o Zeca Afonso cantava. Eu preferia a formiga cantada pelo Zeca, andando no carreiro das outras formigas, mas em sentido contrário. Admirava os professores que ousavam mudar as suas práticas, exasperando os imobilistas. Acompanhava aqueles que investiam no estudo de teorias, exasperando aqueles que ainda acreditavam que, sem fundamentação teórica, seria possível melhorar a prática. Solidarizava-me com os práticos que melhoravam as escolas, constituindo-se em alvos preferenciais dos que criticavam a “pedagogia centrada no aluno”.

A incauta formiga da história era laboriosa, mas de uma ingenuidade fatal. Uma ingenuidade idêntica à dos laboriosos professores que criam que, “dando aula”, ensinavam. Quando o ruído se instalava na comunicação e os professores disso não se apercebiam, os equívocos se sucediam. Como aconteceu numa sala de aula da antiga escola primária.

Era uma vez… um aluno, que levava cartões para a escola e os entregava ao professor. Durante alguns dias, o professor ignorou-os. Até que o aluno perguntou:

“Senhor professor, por que não lê os papéis que eu lhe dou?”

O professor leu o primeiro dos papéis:

“ALUGA-SE”.

“Então, se tu ainda não sabes o la, le, li, lo, lu, já queres ler este cartão, que diz “ALUGA-SE”?” 

“Ó professor, o meu prédio está cheio de cartões com essa palavra. E não há lá nenhum cartão com o “la, le, li, lo, lu”.”

Rematemos com um exemplo de incomunicabilidade universitária:

“Agora, temos cinco minutos para tirar dúvidas. Alguém tem dúvidas?” 

Ninguém se pronunciou. Ninguém tinha dúvidas, porque ninguém tinha entendido o que quer que fosse do que a professora dissera. A catedrática retomou a leitura do power point, até ao momento em que exclamou:

“Ai! Perdão! Esta imagem está posta ao contrário, de penas para o ar…!”

 “Pode deixar assim, minha senhora. Para nós, tanto faz!” – exclamaram, por sua vez, os alunos.

A douta senhora tinha gastado dois meses a falar para ninguém! Nenhum daqueles alunos possuía rudimentos básicos para encaixar a “matéria dada”. Nestes diálogos de surdos das escolas de antigamente se consumia a energia que escasseava para afastar o espectro do insucesso. Havia professores que tomavam consciência dos equívocos, mas não arriscavam mudar, porque os cínicos atacavam nas escolas e na internet. Quedavam-se num exercício de queixumes, em circuito fechado. Eu escutei os desabafos de um desses professores:

“Bem gostaria de poder trabalhar numa escola diferente da minha, porque só vejo acomodação e infelicidade à minha volta. Gostaria de fazer um trabalho como o que vós fizestes, na Ponte.”

“Gostarias, ou queres? Gostarias, ou irás fazer?” – repliquei.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDLXXIV)

Ribeirão da Ilha, 19 de março de 2041

Como qualquer pai que se preze, o meu amigo Edilson se mostrava preocupado com o futuro escolar do seu filho:

Quero que  o meu Nuno vá para esta escola, porque é uma boa escola”.

E mostrou-me uma revista, que ostentava na capa um sugestivo título: “Conheça as melhores escolas para o seu filho”. A mídia usava e abusava dessa ambígua expressão. Mas, a opinião pública saberia distinguir o que fosse uma “boa escola”? As maravilhas anunciadas iriam gerar filas de espera para matrícula. A publicitada “boa escola” iria ter salas abarrotadas de alunos.

Nos idos de vinte, a “má escola” era a dita “escola pública” demonizada, maltratada, que sobrevivia nas margens da obsolescência. E os indefetíveis partidários do regresso ao passado elegiam como vilã a escola das ditas “novas pedagogias”.

“Novas” não eram. Os seus avatares eram fósseis! Piaget nascera no século XIX. Vigotsky morrera há quase cem anos. Montessori criara a sua escola em 1907. Dewey escrevera o seu livro essencial em 1905.

Numa simples expressão se sintetiza aquilo que o leigo considerava “boa escola”: era aquela que, desde a creche, preparava o aluno para passar no vestibular, aquela que ocupava os primeiros lugares de absurdos rankings.

O que nos diziam os rankings? Assinalavam escolas cujos alunos mais conteúdos aprendiam? Mas aprendiam, ou era apenas decoreba vomitada em prova e esquecida?

A memória é esperta e apaga aquilo que não tem significado. As designadas “boas escolas” apenas adotaram algumas habilidades pedagógicas, que os potenciais clientes adoravam. As lousas digitais não eram mais do que quadros negros do século XXI. Aquilo que distinguia uma “boa” de uma “má” escola não era dispor, ou não dispor, de salas de aula 3d, ou tablets para todos. Esses enfeites pedagógicos apenas davam um ar de modernidade a práticas fósseis.

“Eu quero que o meu filho aprenda, mas também que seja feliz e que seja um bom cidadão”.

Compreendi a preocupação do Edilson, mas questionei-o, quando argumentou que a escola escolhida “ocupava os primeiros lugares dos rankings”. O Edilson partilhava da vontade de qualquer pai, mas a dita “boa escola” cuidaria da formação sócio-moral dos alunos?

Qual a moral que a autorizava a condicionar a matrícula apenas a “bons alunos”, ou a recusar a matrícula de crianças “especiais”? Os rankings atestavam honestidade? Como se explicaria que, entre as élites que as frequentaram, se contassem muitos corruptos de colarinho branco? Quantos conformistas eram produzidos nas “boas escolas”, indo ocupar as cadeiras do poder, incapazes de uma postura humanista e inovadora?

Qual a moral prevalecente nas “boas escolas”? Aquela que legitimava a aplicação de vestibulinhos? Aquela que, entre vestibulinhoe e o vestibulares, impunemente, produziam exclusão? Seriam essas as “boas escolas”? Afinal, o que seria uma “bos escola”? Não seria aquela que a todos acolhesse e a cada qual desse condições de ser sábio e feliz, independentemente de ter patrocínio público ou privado? Seria preciso enjeitar maniqueísmos fúteis, questionar o mito da “boa escola” e pugnar para que todas as escolas a todos garantissem o direito à educação.

O mito da existência de “boas escolas” legitimava a existência das “más”. Quer os zelosos e abastados progenitores dos alunos das “boas”, quer os indiferentes pobres pais dos alunos das “más”, as patrocinavam. Uns com mensalidades faraónicas, outros com a bolsa famíla, ajudavam a manter a “boa escola” das suas representações. E a tragédia educacional parecia não ter mais fim. Até que…

 

Por: José Pacheco

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