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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXXXII)

Algures, 5 de fevereiro de 2041

A pandemia de 2020 e 2021 foi metáfora de “um novo normal”. Enquanto os prédios das escolas permaneceram fechados, as escolas enviaram aos alunos inúteis “atividades” e as secretarias de educação desperdiçaram milhões em inúteis aulas online. Paralelamente, muitos professores e muitas famílias tomaram consciência de que escolas são pessoas e não prédios, e se organizaram em “círculos de vizinhança” e “turmas-piloto” de comunidade de aprendizagem.

A Internet dava notícia de que uma professora produzira materiais de estudo e os tinha levado para os alunos de um bairro distante, a uns vinte quilômetros da sua residência. Uma iniciativa louvável, reconheci. Mas, se a dedicada professora assumira que “os alunos eram todos diferentes”, por que produzira materiais iguais para todos? Cadê o respeito pela “diversidade”, pelo “ritmo de aprendizagem”?

Soube que a abnegada professora morava a meio caminho entre o bairro e o prédio da escola. Então, se os alunos podiam ser “instruídos” sem sair do seu bairro, por que razão viajavam dezenas de quilômetros diários, para entrar num prédio da escola? O Mestre Anísio dizia não ser necessário transporte escolar. E o que iriam aprender dentro do prédio, que não pudessem aprender sem sair do seu bairro? Nada!

Mas tem mais… Perto da casa da devotada professora moravam cerca de trinta alunos da sua escola. Cabia perguntar: se eles moravam junto à casa da professora, se o acolhimento e o acompanhamento estavam assegurados por ela, por que teriam de ser transportados para o prédio da escola?

O vulgar cidadão perguntava: “Mas, mas onde estudariam?”

E eu respondia: Na Internet, na praça, na biblioteca pública, no centro cultural, na Natureza, na igreja, nas pessoas e até no prédio da escola, desde que agissem como sujeitos de aprendizagem, autônomos, responsáveis, solidários e um tutor com eles construísse projetos e planejamentos. Desde que soubessem pesquisar, selecionar informação pertinente, analisar criticamente a informação, comparar diferentes fontes de informação, avaliar e sintetizar informação, produzir conhecimento.

Sabendo comunicar, partilhar, aplicar conhecimento, sob a forma de “evidência de aprendizagem” (avaliação), o aprendiz transformava o saber construído em ação (competência).

Nenhum desses processos complexos de pensamento se aprendia no adestramento cognitivo dos processos de ensinagem. O instrucionismo produzia, exatamente, o contrário: uma irresponsável dependência intelectual e moral, heteronímia, competitividade negativa.

A escola da aula desenvolvia aquilo a que chamavam “currículo oculto”, ensinava corrupção. Não surpreendia, por exemplo, que o Ministério Público pedisse a prisão de prefeito e secretária de saúde de Manaus, por ‘fura-fila’ da vacina. O oportunismo egoísta era apenas a ponta de um “iceberg” da desmoralização que alastrava na sociedade doente dos idos de vinte.

João dos Santos escreveu um livro a que deu o título “Se não sabe por que é que pergunta?” Ele sabia que só fazia perguntas pertinentes quem tinha uma hipótese de resposta. É evidente que eu sabia respostas às perguntas formuladas e as fiz publicar. Esperava que “alguém” das secretarias e escolas respondesse. Ninguém, respondeu. Talvez ninguém soubesse responder.

À margem do absurdo, surgiam saudáveis alternativas, como a dos protótipos de comunidade de aprendizagem. Na prática de um conetivismo humanizador, se produzia conhecimento, presencialmente e à distância. O instrucionismo não tardaria a desaparecer.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXXXI)

Algures, em 3 de fevereiro de 2041

Cada círculo de vizinhança estava inserido num território com características próprias, específico, sem formato único. Organizavam-se em comunidades de aprendizagem. O prédio da escola de referência não sofria implosão. Nele se estabelecia um espaço de acompanhamento remoto, por via de uma plataforma digital de aprendizagem. Nele eram acolhidos círculos de proximidade. E, sempre que necessário, o prédio se transformava numa ágora, onde se encontravam agentes educativos das comunidades.

As aprendizagens aconteciam em “territórios educativos” físicos, em encontros presenciais, em pequenas aglomerações. E, sempre que necessário, com recurso à via remota. O espaço de aprender era todo o ambiente físico e social. Nele interagiam sujeitos de aprendizagem, refazendo as suas histórias de vida.

Nos círculos de vizinhança, não havia professores, nem alunos. Havia o que o Augusto chamava “agentes comunitários de educação”, tutores e sujeitos de aprendizagem. O currículo era tridimensional, tendo por referência a base nacional. Partia-se da definição de aprendizagens essenciais, a que se juntavam saberes populares. E se aprendia – todos aprendiam bem melhor e mais rapidamente! – uns com os outros, freirianamente mediatizados pelo mundo.

Durante a pandemia, diretores de escola diziam-se pressionadas pela secretaria e ameaçavam de reprovação os alunos que não assistissem às aulas online, ou não fizessem as “atividades”. Não importava que as crianças não dispusessem de computador, ou de acesso à Internet. Nem que as mães faxineiras só disponibilizassem o celular no final do dia, que o celular não suportasse os ficheiros recebidos da escola, ou que não houvesse sequer dinheiro para pagar a recarga do celular. Acresce que muitos dos “alcançados” desligavam o computador, quando as aulas online se tornavam insuportáveis.

Enquanto a sua escola enviava inúteis “atividades” para alunos “alcançados”, a Kátia criou potenciais “círculos de vizinhança”, nos quais todas as crianças aprenderam tudo o que teriam de aprender, sem aula, sem “atividades”. No final desse ano letivo, enviou-me um WhatsApp com esta introdução: “Recebi de uma mãe e compartilho com você porque não é invejoso”. Transcrevo a mensagem, tal como chegou:

“Queria te agradecer de coração por toda sua dedicação com nossas crianças durante esse ano. Seu empenho para com eles foi muito além do que nós como mães e pais poderíamos imaginar. Vc ultrapassou as barreiras pedagógicas dando aos nossos filhos uma dedicação de amor e confiança.

Hoje tenho certeza de que nossas crianças saíram dessa “etapa” tão difícil com muito mais força e determinação para sempre olhar adiante. Vc despertou em cada uma das nossas crianças o sentimento de luta e companheirismo.

Só tenho a te agradecer por vc ser a profissional e acima de tudo a pessoa maravilhosa e humana que vc é. Perguntei para Lucas esses dias qual a palavra que te definiria e ele me respondeu “Mamãe, a prof. é MINHA AMIGA FANTÁSTICA!” E ele está correto, vc foi simplesmente fantástica. As crianças até poderão se esquecer um dia do conteúdo que aprenderam esse ano, mas JAMAIS SE ESQUECERÃO DE VC. Tenha certeza de que nós pais e mães tbm te levaremos nos nossos ❤. Te desejamos tudo de bom e que Deus te abençoe sempre. Não esqueça das nossas crianças. Um abraço com todo nosso carinho e admiração”.

A Kátia não estava sozinha. No fevereiro de 2021, despontavam turmas-piloto, germens de comunidades de aprendizagem, onde quer que houvesse educadores amorosos, éticos, como a Kátia.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXXX)

Algures, 1 de fevereiro de 2041

Estávamos no mês de março de 2010. Convidaram-me para participar em dois painéis da Conferência Internacional de Cidades Inovadoras. Apresentavam-me como “um especialista em educação, que defende formação que permite ao jovem gerar sociedade ideal” (sic). Digamos que era exagerada a expectativa. que me senti em dificuldade para corresponder. Mas, tive ensejo de repensar conceitos de “formação” e de “sociedade ideal”.

No decurso do evento, dispus do privilégio de estar numa mesa, ao lado de alguém que muito admiro: o Augusto Franco. E de, na Sala VIP, conversar com gente como Fritjof Capra. Muito aprendi nesses dias!

Para a Mesa “Comunidades de Aprendizagem em Redes – Arranjos Educativos Locais”, preparei um “guião de conversa”. Eu não deitaria discurso, perguntaria ao público o que queria saber, mas planejava as minhas intervenções. Sem me aperceber, enquanto rascunhava um texto, esboçava um novo conceito: o de “círculo de vizinhança”.

Isso aconteceu há trinta anos e os vídeos postos na Internet, contendo o essencial das intervenções, já desapareceram. Por isso me vejo na necessidade de vos falar do conceito e da sua operacionalização. Antes, transcrevo excertos de notícias sobre a Conferência. Citavam partes da minha intervenção:

“Nosso modelo (o da Ponte) é baseado em três grandes valores: a liberdade, a responsabilidade e a solidariedade. Temos que ensinar valores e dar uma formação que permita às crianças e jovens serem eles próprios geradores de um outro tipo de sociedade, mais solidária”.

Mas, uma das notícias acrescentava que eu dissera que:

“As crianças têm que estar preparadas para competir, para se enquadrar no contexto da sociedade atual, que é imperfeita, competitiva e desumana. Não podemos criar cidadãos desajustados em relação às regras do mercado e de convivência social”. 

Não me recordo de ter dito tal coisa, pelo menos, desse modo. Mas, esse era interpretação, um mal menor. Mais grave era a apropriação indevida de conceitos e práticas alheias. Assistíamos, por exemplo, à comercialização de dispositivos criados na Escola da Ponte, sem que a escola os tivesse cedido, ou autorizado a sua utilização. A propriedade intelectual era desrespeitada, quando empresas do digital vendiam “comunidades de aprendizagem”, que de comunidade nada tinham. E o mesmo aconteceu com o “círculo de vizinhança”.

Elaborei a proposta a partir da minha dissertação sobre o conceito e a prática de “círculo de estudos”. Quando uma universidade norte-americana quis fazer a tradução para inglês, apercebi-me de que essa fora a primeira publicação sobre o assunto. A proposta de “Arranjos Educativos Locais (AEL)“, do meu amigo Augusto, foi outra fonte de inspiração, para a construção do conceito. Assim ele definia os AEL:

“São conjuntos constituídos por pessoas, que se agrupam criando ambientes favoráveis às interações educativas, para o desenvolvimento local – tanto do território, quanto dos sujeitos que nele habitam”.

O amigo Augusto dizia que não queria falar de Escola, mas era de Escola que ele falava:

“Num AEL, não há um currículo único e pré-determinado, mas sim agendas de aprendizagem, que são construídas coletivamente (…) implica considerar as características próprias de cada território, as redes sociais, aproveitando as oportunidades educativas e respeitando as dificuldades que nele se apresentam”.

O Augusto estava muito à frente do seu tempo. e sofreu as consequências do seu pioneirismo. Disso e dos “círculos de vizinhança” vos falarei em próxima cartinha.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXXIX)

Algures, no dia 4 de fevereiro de 2041

Há muitos anos, quando ouvia alguém referir-se com desdém a uma qualquer escola ou a classificar um qualquer professor de “lírico” ou de “lunático” (só para referir as mais gentis e eufemísticas classificações), eu inquiria, discretamente e sem manifestar excessiva curiosidade (para não levantar suspeitas), de que escola ou professor se tratava. Recolhida a informação, logo preparava a viagem.

Ávido de prodígios, pesquisador de almas inquietas, fui em demanda da professora Lúcia e da sua tão criticada escola, escondida num vale. Depois de muitas voltas por estreitas estradas de terra, estava quase decidido a voltar para trás, quando deparei com uma placa indicando a proximidade da aldeia. Segui por um caminho onde mal passava um carro. O receio de encontrar alguma viatura em sentido contrário foi-se esvaindo à medida que me aproximava da aldeia e talvez por efeito do sossegado silêncio entre montanhas, pontuado pelo chilrear dos pássaros. Ia tão distraído que, no desfazer de uma curva, por pouco não fui de encontro a um par de cornos fora de mão.

“Ei! Ei, Bonita! Arreda!” – gritou uma velhinha, de aguilhão em punho, empurrando a vaca para o rego de água que bordejava o caminho.

Pedi desculpa pela perturbação gerada e perguntei à senhora se conhecia a escola e se ainda ficava longe dali.

“Não, meu senhor, é mesmo aqui pertinho. Não tem nada que enganar. O senhor vai por aqui, sempre neste correr. Quando der com a casa do meu filho, meta a descer para o lado esquerdo. A escola é logo ali à beirinha”.

Retomei a marcha com o mesmo pressentimento de me haver perdido. Mas a desconfiança desvaneceu-se ao deparar com “a casa do filho”. Era a única, ao fundo do caminho. E lá estava a azinhaga, envolta numa latada, uma espécie de túnel, ao fundo do qual vi “a luz”.

A singela construção iluminava-se com o riso das crianças. A gélida sala de aula amornava-se com o calor de gestos sábios e transbordava de doce ternura. Havia mais pedagogia naquele lugar ermo do que em todos os compêndios que eu já tinha lido. Em escassas horas, aprendi mais de crianças e de professores do que nos cursos de formação.

Voltei para a Ponte com mais alento e vontade de não desistir. Voltei mais consciente do muito que teria de me melhorar e do quanto teria de aperfeiçoar a minha prática. Voltei com uma “fé pedagógica” fortalecida. Porque, à semelhança dos magos que se deixaram guiar por uma estrela até uma claridade que rompia as trevas de uma gruta ou casebre, eu mantivera a crença de encontrar a casa de um filho de uma velhinha, marco de referência de uma escola que irradiava uma luz perturbadora das trevas em que todo um sistema estava imerso.

Decorridos alguns anos, voltei à aldeia. Nada restava do projeto da Lúcia. A administração educacional soube que a Lúcia “não dava aula”. A Lúcia não se amedrontou com as ameaças. Foi punida e transferia para outra escola. Juntou-se ao rol de outros “utópicos” depreciados, caluniados, perseguidos, ou ignorados e remetidos para uma solidão compulsiva.

Quase nonagenário insisto numa busca que não cessa, por ter sido nessa busca que me encontrei e encontrei razões para me manter professor. A esses “utópicos” devo quase tudo o que sou como professor.

Quando rumei ao Brasil, encontrei educadores como a Lúcia e vi repetir-se a destruição de projetos. Até que chegou a hora de colocar um ponto final na saga destrutiva. Contar-vos-ei o que aconteceu no Distrito Federal dos idos de vinte, depois que dois extraordinários secretários de educação – o Júlio e o Rafael – decidiram criar comunidades de aprendizagem.

Por: José Pacheco
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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXXVIII)

Algures, em 2 de fevereiro de 2041

Amados netos,

Andarilho de muitas andanças, voltei “à estrada”. Algures me reencontro, andarilhando. Há muito, muito tempo, soube que há gente que nasce longe de casa e que consome a vida na busca de outras origens. E andarilhando, me lembrei de uma situação outrora vivida.

Nos idos de vinte, o pensamento de quem pensava a educação estava preso ao passado. Seria preciso silenciar o pensamento, para não estar doente dos sentidos, para que fosse possível desenhar novas rotas em velhos mapas mentais. Essa era tarefa de quem nascia longe de casa.

Num aeroporto afetado pela “crise”, eu deveria efetuar um voo de conexão e tentava explicar o óbvio:

“Minha senhora, repare que eu já tenho cartão de embarque, não preciso de vir para esta fila”.

“Se lhe disseram para vir para esta fila, é porque tem de vir”.

Nesse diálogo de surdos, a funcionária voltou-me as costas, sem me dar tempo de replicar. Meia hora decorrida e muita impaciência acumulada, cheguei ao balcão. Mostrei o cartão de embarque:

“O senhor não precisava de vir aqui para esta fila. E, agora, já fechou o check in do seu voo” – disse-me, sem me olhar. Telefonou, teclou, entregou-me um novo cartão de embarque para um voo que partiria três horas depois. Cabisbaixa, disse-me:

“Foi o máximo que pude fazer”.

Em silêncio, afastei-me. Enquanto aguardei o tardio voo, observei os passos em volta: gente cochilando, gente reclamando, gente apática, ou resignada, tal como eu.

Dispus de tempo suficiente para silenciar o pensamento, transgredindo a ordem do superficial. Concluí que, nos grandes aglomerados humanos, as pessoas se submetem a uma forçada convivência, toleram o outro sem o aceitar, suportam um “aturai-vos uns aos outros” num incómodo mal disfarçado.

La Rochelle disse que “a cidade não é a solidão porque a cidade aniquila tudo quanto povoa a solidão – a cidade é o vazio”. Isso mesmo: um vazio com raízes que eu busco esclarecer.

Inevitavelmente, a minha cultura profissional isolou as raízes de uma instituição geradora de vazios: chamou uma escola à colação. Mas, as escolas onde as funcionárias do aeroporto e os seus clientes se formaram permaneceram arquipélagos de solidões povoados por rituais vazios de significado.

Educar é assumir responsabilidade social, solidarizar-se eticamente. Somos marcados pela incompletude, geneticamente sociais e geneticamente históricos, porque, como diria Freire, criamos vínculos. A arte de conviver (viver com) exige uma atitude de abertura, o reconhecimento do outro e o respeito pela pessoa do outro. Mas onde se poderá aprender essa arte? Na Escola? Na Família? Na televisão? Na internet?

O Sartre estava certo de que, se não somos responsáveis pelo que fizeram de nós, somos responsáveis por aquilo que fizermos com aquilo que fizeram de nós. E eu recordar os professores que, nos idos de vinte, amorosa e corajosamente, criavam fraternas “turmas-piloto”, trocando uma profissão solitária por uma profissão solidária.

Não se tratava de uma mera troca de uma consoante por outra consoante. Ocorria uma profunda mudança cultural. O primeiro passo dessa reconversão consistia em os professores se sentarem à volta de uma mesa, ou na grama de um parque, para se transformarem numa equipe. Um projeto faz-se com pessoas conciliadas consigo e com os seus pares.

Com esta reconfortante reflexão, me aquietei. E o tempo de espera pelo voo ficou mais suportável, embora soubesse que ainda havia muita gente distante de si própria!

Como diria a Maria, “às vezes, há gente que nasce longe de casa”. A Maria era filósofa e não sabia.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXXVII)

Ermesinde, 31 de janeiro de 2041

Houve um tempo em que a Finlândia esteve na moda. Depois, foi a vez da Coreia, de Singapura, da Catalunha e de outros ilusórios paraísos pedagógicos, em ciclos de turismo educacional.

Quando um político falava de “qualidade na educação”, inevitavelmente referia a Finlândia como exemplo, por ser o país que ocupava a primeira posição no PISA. Aquilo que os políticos não diziam era que a Finlândia esteve à beira do colapso económico e se salvou porque instituiu uma escola realmente “pública”.

Nesse país, a educação foi tornada prioridade e não mero enfeite de discurso político.

As escolas eram verdadeiramente autónomas, não dependiam de secretarias, nem de ministérios. Por aqui, as escolas sobreviviam dependentes de uma gestão hierárquica, burocratizada. Um estudo da época dizia-nos que noventa por cento dos diretores de escola gastavam mais tempo a gerir a merenda escolar do que a tratar de assuntos de natureza pedagógica.

Na Finlândia, apenas existia um exame, no final dos estudos. Aqui, aumentava o número de exames, como se a preocupação com o termômetro fizesse baixar a temperatura. Se fosse feito o cálculo dos gastos na elaboração, na distribuição e correção de provas, dos milhões de reais gastos em policiamentos, teríamos noção da dimensão do desperdício.

Os alunos finlandeses tinham liberdade de escolher aquilo que queriam aprender:

“Quando estudamos aquilo de que gostamos, os resultados são melhores. Aqui, os alunos são sujeitos, não são objetos. Cada qual estabelece o seu plano individual de estudos”.

Enquanto isso, no Brasil, havia quem propusesse aumentar a carga horária e o número de dias letivos.

Na Finlândia, os professores tinham como habilitação mínima o mestrado e fora criada a figura do tutor. Por cá, a formação de professores era precária, o estatuto social da profissão estava depreciado, o professor mantinha-se solitariamente exposto a humilhações, à espera da aposentadoria.

Tínhamos muitas “finlândias” cá dentro. Só a administração não via. Algumas escolas tentavam introduzir mudanças que, se concretizadas, colocariam o Brasil muito acima do 52º lugar que ocupava no PISA de 57 países. Este tropical país dispunha dos melhores teóricos da educação, dispunha de excelentes professores e, ao contrário do que se dizia, não faltavam recursos.

O contraste nem deveria ser estabelecido num claro-escuro. O Brasil estava mergulhado na obscuridade da crença num modelo epistemológico falido. E sucessivas gerações de talentos, sonhos e vidas foram desperdiçados. O sistema educativo brasileiro era uma usina produtora de desperdício. Como diria o poeta, o sistema “engolia gente e vomitava bagaço”.

O conservadorismo mantinha o sistema num rumo suicida. Os analfabetos funcionais eram muitos milhões. Os índices de evasão e exclusão continuavam assustadores. O sistema de ensinagem desperdiçava bilhões de reais em corrupções e burocracias. E os responsáveis pela gestão do sistema pareciam ficar contentes com um mísero 5, ou 6, na escala do IDEB.

Secretários de educação sonhavam com “qualidades totais” e “resultados para quatro anos”. Políticos ignorantes do que fosse a pedagogia pariam decisões de política educacional tão inúteis quanto nefastas. Amedrontados, muitos “professores” eram coniventes com tais atitudes.

Mas, eu não deixava de ser esperançoso. Queria acreditar que o bom senso e a competência prevalecessem. Queria crer que toda essa gente agisse por ingenuidade. Não queria acreditar que tivessem consciência dos crimes que praticavam.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXXVI)

Matosinhos, 30 de janeiro de 2041

Até há cerca de uns vinte anos, o instrucionismo ainda resistia à extinção, apoiado num “achismo” secular. As famílias “achavam” que deveria haver aula e “quadros cheios de conteúdos, para copiar”. E a opinião publica “achava” que deveria haver “provas” e “tarefas para casa.”

Os ditos especialistas em ciências da educação fechavam os olhos ao genocídio educacional perpetrado pelo achismo instrucionista. Lucravam os mercadores e os burocratas da educação que, para obter lucros chorudos, ou para se manterem no poder, faziam constar que “sempre foi assim”. E alguém perguntaria se teria sido sempre assim?

Os professores tinham deixado de perguntar. Apenas alguns ousaram buscar respostas a perguntas, que não tinham sido feitas numa formação de professores formatadora.

Desde o século XVIII, não existia sequer uma teoria sequer, que sustentasse o modelo de escola ainda hegemônico, no início da década de vinte. A escola herdeira do Iluminismo, a da afirmação da Modernidade, já não existia, vegetava.

Claude Lévi-Strauss não gostou da baía da Guanabara, mas acertou, quando escreveu que sábio não é aquele que fornece as verdadeiras respostas, é aquele que faz as verdadeiras perguntas. Aqueles que, interrogando-se, se libertavam de preconceitos e soluções convencionais conseguiam compreender que a escola dita tradicional deveria ser demolida, e que, com o material da demolição se poderia construir uma nova educação. Sem esquecer que, quando se alcançasse um determinado objetivo, o mundo já havia mudado, novamente, e que todos os projetos humanos estavam em permanente fase instituinte.

Recordo algo que qualquer manual de história ou de sociologia de educação explicaria. A escola – tal qual a conhecemos enquanto formação experiencial de alunos e professores – era herdeira de necessidades sociais do século XIX, ainda que as suas raízes fossem mais fundas, adentrando os séculos anteriores. O modelo “tradicional” de escola adotou formas e procedimentos característicos das instituições mais respeitadas na época em que foi implementado – aplicou modos de organização dos espaços e métodos utilizados em casernas, mosteiros e prisões.

Nos primórdios da instrução pública, foram construídos edifícios dotados de pátios internos e rodeados de muros altos, réplicas das praças de instrução militar, destinados à instrução dos jovens. As escolas foram divididas em salas (celas dos mosteiros e prisões) de janelas estreitas e abertas bem acima da estatura dos alunos. Estes eram instalados em filas, separados em grupos etários uniformes e distribuídos por graus de ensino. Foram instituídos programas iguais para todos e criados dispositivos de controle total das escolas.

O toque de uma sineta passou a marcar a cadência de horários de aula iguais para todos, visando a uniformização e o conformismo consentâneos com as necessidades de uma revolução industrial emergente.

Os livros delimitavam o conteúdo, a avaliação era confundida com a aplicação de provas-padrão, visando a comparação e a competição entre alunos. Cargos diferenciados reforçavam a hierarquização subentendida na relação professor-aluno. A disciplinarização física e psíquica era mantida através da imposição de inquestionáveis regras, e eram frequentes as premiações e os castigos.

A educação do século XIX agonizou no compasso de mentalidades retrógradas, até ao momento em que educadores éticos ousaram partir para práticas do século XXI. Disso vos falarei, se quiserdes que fale, se quiserdes… perguntar.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXXV)

Caminha, 29 de janeiro de 2041

Já se vai fazendo tempo de voltar à minha mátria, ao meu país tropical. Mas, antes de partir, não quis deixar de vir à foz do Rio Minho, contemplar o pôr do sol. A Natureza se exibe de modo inigualável, mesmo em pleno Inverno. Foi aqui que, há, mais ou menos uns quarenta anos, recebi um certo convite. A memória de um velho recua décadas em escassos segundos, e não resisto a contar-vos mais uma estória.

Recebi convite para realizar uma palestra, acompanhado do pedido do “texto da comunicação”. Respondi que aceitaria o convite, mas que não poderia enviar o tal “texto da comunicação”. Expliquei que estabelecia o diálogo e que, somente após escutar perguntas, eu poderia ensaiar respostas. Não poderia adivinhá-las e escrevê-las.

Não me fiz entender. Eis a resposta:

“Todos os palestrantes enviam as suas comunicações”.

Compreendi que não poderia constituir exceção e enviei esta mensagem:

“Junto envio um texto. Se apenas pretendeis que eu suba num palco, para ler um texto, peço que alguém com boa dicção, o leia. Podereis pagar ao leitor os honorários que, eventualmente, me destinásseis. Assim, evitarei fazer duas cansativas viagens de dez horas cada e vós evitareis a despesa com reserva de hotel e dos voos”. 

Não obtive retorno.

Muito tempo atrás, compreendi que não deveria continuar a reproduzir o modo como se adestrava professores, em cursos e palestras. O instrucionismo anulava a possibilidade de interrogar e de dialogar. Produzia condicionantes socioculturais impeditivas da plena realização do ser humano.

Nesses recuados tempos, os palestrantes estabeleciam a sequência e o ritmo da preleção. Papagueavam teoria requentada, que qualquer pessoa poderia ler num livro, ou na Internet. Não aproveitavam oportunidades de fazer mediação entre o saber constituído e as preocupações daqueles que os procuravam.

Cansei-me de assistir a parlações, que não se encaixavam no hic et nunc da minha prática. Talvez porque nenhum dos palradores tivesse posto em prática as “boas práticas”, que recomendavam aos professores. Nas preleções, divulgavam as suas teses, repositórios de citações de citações. Reproduziam o conteúdo de livros, que tinham publicado, e até aproveitavam para os vender e autografar.

Nos idos de setenta, já era bem conhecido o meu hábito de erguer o braço e perguntar, interrompendo entediantes palestradores. No início de uma fala, o orador de serviço perguntou:

“Está aqui um professor chamado Pacheco?”

Ergui o braço.

“José Pacheco?” – confirmou.

“Sim” – confirmei.

“Pode sair” – e apontou para a porta.

“Por que não poderei participar?” – questionei.

“Porque me avisaram de que o senhor faz perguntas” – retrocou.

“Mas, não é isso que os palestrantes recomendam? Não falam do “sujeito de aprendizagem”, de “aprendizagem dialógica”? Então…?”

“Então, o quê?” – contestou o palestrante, visivelmente irritado.

“Então, não saio!” – concluí.

Após a segunda pergunta sem resposta – o palestrante me ignorava – interrompi aquele erudito papaguear com uma pergunta sobre a obra de Giroux. Respondeu que, naquela palestra, só falaria sobre Bordieu. E continuou a leitura do power point. Por respeito ao “papagaio” e aos seus passivos ouvintes, fui embora.

Nas minhas conversas com professores – a que também chamavam “palestra” – perante perguntas, cuja resposta constava dos meus livros, remetia para a sua leitura. Não fazia sentido que eu desperdiçasse tempo a papaguear aquilo que escrevi e publiquei. Se os publiquei, foi para me dispensar de repetir respostas, foi para que os lessem… e os questionassem.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXXIV)

Esposende, 28 de janeiro de 2041

Voltemos à Ponte…

No início deste século, quando o projeto já contava vinte e cinco aninhos, o meu amigo Fernando Ilídio publicou um artigo, de que extraí algumas passagens. Vo-las dou a conhecer.

“Refiro aqui uma conversa recente com um casal jovem, que tem uma filha de seis anos, que acabou de entrar na escola. Como outros pais e mães, estes estão interessados na vida escolar dos filhos. Neste caso, pude aperceber-me que eles não estão apenas interessados, como já estão também bastante preocupados, apesar de a menina só ter entrado para a escola há duas ou três semanas. 

Contavam-me, receosos, que a professora lhes dissera que a filha estava atrasada no “i”. Poderíamos discutir amplamente o significado desta expressão, que é profundamente reveladora de concepções e práticas de ensino, mas o que provocou maior estranheza foi o facto de eu próprio ter verificado que a criança identificava e desenhava o “i” perfeitamente. Durante a conversa, pude perceber, no entanto, que não era isso que estava em causa. “Estar atrasada no “i” significava que a criança não escrevia tantas linhas de “iiiii” quantas a professora pretendia. 

Este episódio ilustra uma das características mais enraizadas da forma escolar tradicional – o trabalho desprovido de sentido, baseado na mera repetição – que sucessivas reformas não conseguiram alterar, apesar de tanta retórica e de tanta legislação produzidas. Têm-se desenvolvido, apesar de tudo, experiências que questionam profundamente a forma escolar tradicional e mostram que a escola da repetição não é uma fatalidade, e que é possível construir uma escola com sentido para os saberes e para as pessoas que os trabalham no contexto escolar. 

A Escola da Ponte é talvez o exemplo mais marcante de uma escola com sentido, com a qual temos muito a aprender. E é possível aprender com ela, não apenas nas suas dimensões endógenas, mas também sobre os mecanismos das reformas educativas e de outras decisões do ministério que frequentemente criam dificuldades, inviabilizam e até destroem projetos inovadores, tal como está a acontecer hoje em relação ao projeto educativo da Escola da Ponte. 

A lógica de reforma é mecanismo inibidor da transformação da escola. As reformas educativas são apresentadas como um desígnio nacional, com base no argumento de que o país tem pela frente o desafio da modernização. Porém, sob a aparência de liberdade criada pela retórica da flexibilidade e da autonomia, emergem novas formas de controlo, que impregnam as subjetividades dos professores e afetam as condições de trabalho e de vida nas escolas”.

À distância de quarenta anos, relativamente ao momento em que o ministério da educação fez mais uma tentativa (frustrada) de destruição do projeto da Ponte, recordo a destruição do Projeto Âncora. A corrupção instalada nos órgãos de poder logrou extinguir um projeto considerado por curadorias internacionais como uma escola-vanguarda da educação do século XXI.

Em 2015, em sucessivas reuniões do GT da Inovação, eu insisti na necessidade de assegurar “sustentabilidade” aos 178 projetos reconhecidos como inovadores pelo MEC. A regulamentação instrucionista da lei geral não reconhecia a autonomia dos projetos, nem garantia a estabilidade das equipes. A mobilidade dos professores comprometeu a sua continuidade. A maioria dos projetos sofreu profundas descaraterizações.

Em 2021, poucos restavam. Apenas assumindo visibilidade pública, os projetos se expuseram à desastrosa gestão das secretarias de educação. E a inovação matou a inovação.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CDXXIII)

Viana do Castelo, 27 de janeiro de 2041

Até aos anos trinta, as modalidades de formação tradicionais – curso, módulo de curso, seminário, estágio – reproduziram o velho e obsoleto modelo instrucionista,

reforçaram dependências nada consentâneas com as metáforas tradicionalmente aceites no discurso contemporâneo das ciências da educação. Disso tomei consciência, quando umas amigas professoras me pediram que as ajudasse.

Era assunto urgente, disseram, e no fim de semana imediato, no meu carrinho em segunda mão, abalei para o Portugal mais profundo. Viagem longa, por estradas onde Cristo não passara, até chegar à aldeia onde me esperava uma sopinha de pedra e a simpatia das minhas colegas. Após o repasto, reunimos.

“Olha, Zé, estamos aflitas. Passou por aqui um inspetor, perguntou pelo nosso projeto. A gente sabe lá o que isso é! Tu, que andas lá pelo sindicato, poderás ajudar-nos? Tens isso, lá na Ponte? O homem disse que voltaria para o mês que vem e que quer ver o tal de projeto. O que é isso? Ele disse que saiu uma lei… ”

Sosseguei-as. Expliquei o que era “o tal de projeto” e me predispus a voltar. Entretanto, poderiam telefonar (naquele tempo só havia telefone fixo). Não telefonaram, mas eu liguei. E combinei voltar à aldeia.

Foi rápida a reunião e eu pude voltar a casa no mesmo dia. Uma professora foi lendo o “projeto”, enquanto as restantes faziam crochet, ou conversavam sobre a “Gabriela” (uma novela de TV). A certa altura, a leitora disse:

“Levaremos os nossos alunos à lota…”

As professoras pareciam estar alheias à fala da colega, mas estavam bem atentas e possuíam uma boa memória dicótica.

“Ora repete lá isso outra vez, ó Joaquina!”

A Joaquina repetiu. E a pergunta veio em coro:

“O que é isso de lota? Eu não sei”.

Interrompi, para informar que lota era um lugar onde se expunha o peixe, quando os barcos voltavam da pesca.

“Estais a ver?” – disse a Joaquina – “Fizemos mal em copiar o projeto das colegas da Póvoa”.

Póvoa era uma localidade junto ao mar. A aldeia ficava a mais de duzentos quilômetros do mar, mas a criatividade daquelas professoras era imensa. Logo uma delas sugeriu:

“Não faz mal. Apaga a lota e põe a horta”.

E assim ficou um projeto de que o senhor inspetor muito gostou. E que foi parar no fundo de uma gaveta.

Regresso a um assunto, em que me considero a pessoa menos indicada para o abordar. Fui formador de professores – inicial e continuada – formador de formadores, consultor e avaliador de formação, diretor de um centro de formação, autor de uma dissertação sobre formação. Enfim! O que aprendi em setenta anos de formativa labuta foi que formar professores é missão impossível. Mas que é possível ajudá-los a transformar-se.

A lógica administrativa invadia espaços formativos onde deveria predominar a pedagogia e a antropogogia. O academismo constituía-se num óbice ao efetivo desenvolvimento pessoal e profissional dos professores. E a herança reprodutora condicionava a autonomia dos projetos.

No planejamento da formação, era frequente a referência à metáfora do professor “profissional intelectual, autónomo, reflexivo, crítico da sua prática”, mas a hegemonia da modalidade curso (com ou sem esta designação), as metodologias e o tipo de avaliação utilizado, contrastavam com os pressupostos introdutórios dos planos de formação.

Sabemos, hoje, que  toda a formação é auto-formação. Mas, no contexto daquela que se fazia, o professor não era considerado sujeito de formação, mas mero cliente de produtos pré-confecionados. A metáfora do “professor autónomo, reflexivo” não passava de simples figura de retórica.

 

Por: José Pacheco

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