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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCCI)

Encruzilhada do Sul, 26 de novembro de 2040

Até cerca dos anos trinta, o vosso avô colecionava recortes de jornal, que davam conta de uma crise social sem precedentes. Eram evidentes os sinais do fim de uma era. As notícias do novembro de há vinte anos eram como que o anúncio do fim do século XX, pois desocultavam os limites do desenvolvimento tecnológico concebido nesse século.

No hemisfério sul, no dia do equinócio de outono, o Sol iria nascer à frente da constelação de Aquário. E os sistemas político, econômico e educacional teriam novos contornos. Na introdução a um espetáculo da Bethânia, se apelava a novas ideias, algo que precisava ser refeito. A mudança poderia ser mínima, ou radical, mas necessária, imperativa, diária. Mudar, para a Bethânia era como respirar, viver. E ela dizia que “os erros precisavam ser… nobres”.

O Brasil vivia um período de negacionismo histórico e científico. Indiferentes aos trágicos efeitos de uma pandemia, torcidas se aglomeravam no exterior dos estádios de futebol. Havia uma sensação do “liberou geral”, relatos de multidões reunidas em churrascos, casamentos, escolas, praias. O humano estava em crise. Por cada casamento, uma dúzia de mortes. As aglomerações refletiam egoísmo, desprezo pela vida.

A irresponsabilidade dava origem à segunda onda da pandemia e acendia um alerta médico para festas de fim de ano. Os meus recortes de jornal dão notícia desse descalabro. O Brasil voltava a registrar aumento nas taxas de transmissão do coronavírus, continuava no podium de uma tragédia anunciada: era o segundo do mundo com maior número de mortes na pandemia do coronavírus, apenas atrás dos Estados Unidos. E a OMS declarava que a “opção mais segura” seria renunciar às festas de Natal e Ano Novo.

A Internet era pródiga em notificar o desperdício. Eu não queira acreditar, mas era verdade: próximos da validade e nunca distribuídos para a rede pública de saúde, havia mais exames RT-PCR em depósito do que tudo o que fora utilizado pelo SUS desde o início da pandemia. O Governo federal poderia ter de jogar fora quase sete milhões de testes de covid-19.

Estávamos no novembro dos idos e vinte. Vivíamos uma situação de dinheiro público mal gasto e da via sacra das pessoas sem dinheiro para o pão. O desperdício não era apenas material, era um desperdício de vidas, sobretudo de vidas negras.

Mulheres negras tinham muito maior risco de serem assassinadas do que mulheres brancas. E a desigualdade racial começava no útero, como dizia a Lélia: “A gente não nasce negro, a gente se torna negro”.

Ser pessoa negra era uma conquista árdua. O racismo estrutural tirava, em média, dois anos de aprendizagem às crianças pretas, as mais reativas à poluição mental e moral operada por um hegemônico modelo educacional. Como observava a Natália, “o racismo nos cerca como poluição”.

Eram inúmeras as denúncias diárias, devido a ofensas em razão da cor da pele, crime caracterizado como injúria racial. E um recorte de um jornal do “Dia da Consciência Negra” dava notícia de que, na véspera, um homem negro fora espancado até à morte por seguranças de um supermercado, enquanto uma funcionária filmava a ação. E ainda havia quem afirmasse não haver racismo no Brasil.

Nas redes sociais circulava o comentário de um conhecido ator negro:

“O dia em que pararem de pensar em consciência negra, branca, ou amarela e começarem a rachar cabeça de racista com marretada, aí, o racismo acaba”.

Bem radical era o Morgan, mas violência não deveria ser combatida com violência. Se alguma “marretada” tivesse que ser dada num racista, ela seria… educacional.

Por: José Pacheco
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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCC)

Bagé, 25 de novembro de 2040

Atento à importância de que se revestia a seleção de manuais escolares e consciente da diversidade e quantidade de critérios a considerar na sua análise, o professor embrenhou-se na leitura atenta dos manuais que as editoras, generosa e prodigamente, haviam feito chegar à sua escola.

Numa espécie de viagem ao passado, sentiu-se transportado até aos anos cinquenta, criança de tenra idade, enfileirada com outras crianças, sentadas em velhas carteiras, dedo apontado para o “livro de leitura”, entoando em coro melopeias sem sentido,

“A de águia, e de égua, i de igreja, o de ovos, u de uvas…”

Concluída a análise dos “manuais aprovados” para o primeiro ano, extraiu algumas frases de elevado gabarito intelectual, que as suas criancinhas deveriam repetir até à exaustão. “A tia tapa o pote” era a frase campeã das citações, quase a par com a célebre “a vaca dá leite”. Sentiu-se regressado ao país rural da sua salazarista infância perante frases como: “o Vilela leva a vaca à vila”, “o Vilela veio da vila a cavalo”, “o avô vai à vila a pé”, “o vovô viu a uva”.

Através dos manuais didáticos, ficou também a conhecer o que preenche o quotidiano dos alunos das outras escolas:

“É dia de aula e a Adélia pula”.

O texto não informava se a Adélia pulava durante a aula de educação físico-motora, ou se o pulo teria sido dado no recreio, durante o intervalo. Mais clara e menos omissa era a frase “Na aula, a Sónia acabou tudo: a soma, a cópia e o ditado. Tocou a sineta. A Sónia saiu da aula”, pois parecia refletir uma notória assunção de “novas pedagogias”.

Outras frases confirmavam a existência de músicos precoces entre os alunos da “primeira classe”: “O Paulo lê a pauta”, enquanto “a avó toca violino”, “o avô toca viola” e “a tia toca corneta”. Por que se preocupavam os teóricos com a educação musical, se em cada família havia um potencial Mozart?

Os manuais também sugeriam técnicas avançadas, que deveriam ser estudadas pelos bombeiros:

“Caiu uma gota de água na mata e apagou o lume”.

E num esforço de proteção da língua materna relativamente à invasão de estrangeirismos, os manuais diziam-nos, no mais puro português, que:

“O xerife comeu muito xuxu, tau, tau, tau, toca o teu berimbau”, “a Pepa papou”, “papa tu do Dadá”, “o Jugu não viu o zebú.”.

Por sua vez, os personagens que atravessavam estas surrealistas narrativas foram batizados com nomes usuais em qualquer conservatória do registo civil: “Ucha, Tutu, Zuzu, Dídio, Lalá, Nídia, Ulema, Dálio, Dedé, Xodó”, etc.

Reunindo textos tão claros como rigorosos, os manuais davam notícia de prodigiosas acrobacias:

“A bola pula e o Lito papa a lula”, “o Paulo pula da mota”, “a Lili papa a lua”, “o Óscar viu os ovos e abriu os olhos”, “eu pulo e leio”.

Os manuais também traduziam preocupação com o desenvolvimento cognitivo, não descurando o desenvolvimento atitudinal. Selecionei alguns exemplos de transmissão de modelos de respeito e amor ao próximo:

“O miau é mau” e “o mémé é tão mau”, “o Catita deu uma patada ao cão”, “o Pepe bateu com o pé no pé do pipi”, e “a Belita bateu à tia”.

Perante sublimes manifestações de pacifismo militante, os professores achavam estranho que os alunos continuassem a agredir-se.

Nesse tempo, o “método fônico” era hegemônico. Embora vos seja difícil acreditar, era assim que se “aprendia a ler”, no princípio deste século. Alguém, que não professores calejados no uso dos manuais, se recusaria acreditar que milhares de crianças fossem forçadas a decorar frases a roçar a imbecilidade. Face a essas pérolas da literatura, o Saramago agitava-se no túmulo, roído de inveja.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXCIX)

Júlio de Castilhos, 24 de novembro de 2040

Em meados de novembro de 2020, uma escola francesa “viralizou” nas redes sociais, após fazer um pedido inusitado aos pais: que não arremessassem os filhos pelo portão.

A diretora da escola queixava-se de que havia pais que chegavam depois do sinal e literalmente “jogavam os filhos” por cima do portão. E a escola optou por fazer o alerta, afixar cartazes, como aquele que vos envio junto desta cartinha. O aviso lembrava que a entrada nas dependências do colégio ia das dez às quinze horas.

Poder-se-ia pôr em causa a existência de horário de entrada. Poder-se-ia questionar os atrasos e apelar à pontualidade dos pais das crianças, até mesmo se poderia perguntar por que existia um… portão. Seriam perguntas inúteis, porque se convencionara que uma escola deveria ter muros, portão e horário de recolher. A escola era um redil, onde as famílias depositavam crianças, durante o tempo de trabalho.

Quando li essa notícia, lembrei-me do filme “Brutti, sporchi e cattivi” dirigido por Ettore Scola, vencedor do Festival de Cannes. O filme mostrava o quotidiano de uma favela de Roma dos anos sessenta, onde morava uma família com dez filhos e outros parentes, num barraco de apenas três cômodos. O filme terminava com uma cena protagonizada por uma jovem grávida, vítima de incesto, metendo crianças dentro de uma cerca fechada a cadeado. A escola era considerada um depósito de crianças, um antro de adestramento, ou o “serviço militar obrigatório aos seis anos”, como diria o amigo Tião. Naquela escola francesa, como em todas as escolas instrucionistas, jogar um filho sobre o portão era livrar-se de um estorvo.

Podereis considerar que estou a ser excessivo no comentário. Talvez. A verdade é que a escola desse tempo tinha nascido cárcere, inspirada nas linhas de produção em “série” da Primeira Revolução Industrial. Impunha horário-padrão, ritmos uniformes e intervalos para fazer xixi. Quem fosse jogado por cima do portão, ou jogado no redil ainda com o portão aberto, se, nos mínimos gestos, reagisse ao controle do corpo, era rotulado de indisciplinado. Mas, havia quem não se deixasse cronometrar, quem se evadisse e nunca mais voltasse. Também havia quem se evadisse, dentro da sala de aula, “desligado da lição”, com ou sem fones nos ouvidos.

Quem tivesse conhecimento profundo de História da Educação – o que não era o caso de ministros, nem de agentes da administração educacional – saberia que a escola instrucionista teve por modelos: a usina inglesa da Primeira Revolução Industrial, o convento francês, o exército da Prússia, as casernas e as prisões do século XIX. Os edifícios-prisões destinados à instrução dos jovens eram rodeados de muros altos, pesados portões e grossas grades.

Dentro desses bunkers, diretores bovinamente obedientes a “superiores hierárquicos”, faziam cumprir “regulamentos disciplinares” e nas absurdas escolas cívico militares, até havia “ordem unida” e “continência”. Quando foram banidos os castigos corporais, manteve-se o exercício de violência simbólica. Com maior ou menor suavidade, três estados-nação europeus enclausuraram, uniformizaram, “disciplinaram” milhões de jovens.

O autoritarismo da administração educacional teve trágicas consequências. Até à década de trinta, a sua criminosa teimosia apenas gerou adestramento e propagou ignorância. Na escola da instrução, não acontecia democratização. Através de regras impostas, não se promoveu cidadania. Nas escolas dos idos de vinte instalou-se o autoritarismo e a libertinagem.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXCVIII)

Pelotas, 23 de novembro de 2040

Alice querida, pelos teus dois anos de idade, te lançaste na senda das descobertas do linguarejar. E eu, avô babado não me cansava de te espevitar. Espantava-me e divertia-me com as tuas generalizações. Encorajava-te, incitando-te ao diálogo, desafiava a tua criatividade com socráticas subtilezas:

“A Alice é a netinha do vovô? Sabes quem é a netinha do vovô?”

“Sabo!”

Talvez por te reveres num outro lado de um freudiano espelho – eu sei lá! – o certo é que tu me retorquias numa lógica implacável e zurzidora de ortodoxias gramaticais.

“O que é isto?” – te perguntava, apontando as mãozinhas do Marcos.

“Ito é a mões do minino!”

Compassivamente e incondicionalmente te escutando, identifiquei lógicas, criativas generalizações, aprendi a gramática do bom senso. E reaprendi com os teus sábios arabescos linguísticos muito daquilo que eu tive de desaprender quando, um dia, quis ser professor. Acudiram à memória episódios, que ouvi contar, quando ainda exercia a profissão.

Parece que foi ontem e já lá vão tantos anos! Era no tempo do hegemónico método fónico, em que o “p” e o “t” eram aprendidos através da repetição soletrada de frases de alto gabarito intelectual, do género: “a tia tapa o pote”, “a tia é tua”, “é a tua pua” – os professores não sabiam o que era uma pua, mas estava escrito no livro de leitura.

Nesse tempo, algum pai em seu perfeito juízo se lembraria de repreender o filho, quando este balbuciasse a primeira palavra? Estou a ver o pequeno a exclamar “papai!” e o zeloso progenitor a corrigi-lo, de imediato:

“Não se diz papai! Diz comigo: “um pê e um a… pa; mais um pê e um ai”. E, agora, diz tudo junto: “papai”. Assim é que está bem!”

Queridos netos, podereis considerar ridícula tal descrição, mas era assim que se aprendia a ler – ou não se aprendia – nas escolas daquele tempo. Tudo passava pela soletração, apesar de alguns episódios terem propiciado suficientes pretextos para interpelar absurdos e efetivar revisões metodológicas. Recordemos o protagonizado por uma professora que, pretendendo ensinar o ditongo nasal “ão” e o seu plural “ões”, exibiu uma gravura, a apontou e disse para a turma:

“Ora vamos lá! Quero todo mundo a ler esta palavra!”

E toda a turma, num coro estridente, soletrou:

“Por…co!!!”

“Não é porco! É leitão!” – gritou a mestra – “Vá lá, menina! Ora lê!”

A aluna fitou demoradamente o desenho. Depois, voltou o olhar para a impaciente mestra.

“Estás espera de quê? Levanta-te e lê!”

A pequena levantou-se, mas deitou os olhos ao chão.

“Ó minha grandessíssima burra! Tu não sabes que estamos a dar o “l”? Vê-se logo que não estudaste a lição em casa!”

Abra-se um justo parêntesis para referir que, no século passado, expressões como “ó minha burra”, eram ternamente utilizadas por alguns professores, como recurso pedagógico, à míngua de conhecimento de elementares conceitos como o de “reforço positivo”, que tinham ficado confinados aos testes de Psicologia da Educação parcimoniosamente copiados e esquecidos. Testes, provas e outros instrumentos de duvidosa eficácia eram coisas de um passado remoto da formação de professores.

Outro instrumento instrucionista era o chamado “plano da aula”, inútil apetrecho usado nas escolas do século passado. No planejamento, a professora havia destinado cinco minutos para a “motivação” e outros cinco para a “introdução da letra lê”.

Em 2040, compreendo que considereis inverosímil o uso desse e de outros instrumentos da proto-história da escola. A ensinagem era fértil em absurdos. Perdoai, pois, que dê por finda a explicação de absurdos e esta cartinha.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXCVII)

Frederico Westphalen, 22 de novembro de 2040

Naquele tempo, família, escola e sociedade andavam de costas voltadas. A família terceirizava na escola a formação dos seus infantes. Por sua vez, a escola, instalava muros e grades, catracas e câmeras de segurança, para se proteger da… comunidade. Quanto muito, a escola arriscava uma visita à comunidade, no pressuposto de que não era parte integrante da… comunidade.

Nos idos de setenta, a trinta anos da celebração do primeiro contrato de autonomia entre uma escola e um ministério da educação, a Ponte já não tinha diretor. Desde os primórdios do projeto, se foi intensificando a participação comunitária, que culminou com uma maioria de pais no Conselho de Direção. Era a comunidade a dirigir uma escola. Mas, nem sempre foi assim…

Ao longo de trinta anos, muito tempo foi gasto em encontros de sábado à tarde. Muita paciência tivemos, para explicar em linguagem de gente o que fazíamos e por que fazíamos desse modo. Aqui vos deixo alguns questionamentos, que foram ponto de partida para a reflexão e colaboração.

“Quando um aluno não quer estudar, os professores dizem que o aluno está doente, ou está doente a escola. Partindo destes pontos, não é certo dizer que a família não foi parceira da escola e ausente com seu filho? Será que a falta de motivação e desconhecimento da autonomia, não surgiu pelo modo que é tratado pela família? Será que pelo método de parceira escola-família, que a Ponte tem, não transforma o relacionamento familiar?

Resposta de um professor da Ponte:

“Há famílias que, por diversos motivos, não possuem as condições mais elementares para ajudar convenientemente os seus membros. Tive um atendimento com a mãe de um aluno, cujo pai lhe disse diretamente que nunca mais o queria ver e que já não o vê há quatro ou cinco anos. A mãe, por outro lado, tem um emprego com horários muito estranhos, o que leva a que o filho fique entregue, quase em exclusividade, ao avô. É óbvio que a família não está bem e que é necessário que a escola faça o seu papel para tentar “equilibrar” um pouco as coisas. É necessário tentar ajudar o aluno a encontrar-se como pessoa e a lidar com tudo isto, para, depois, encontrar o seu lugar no contexto familiar e social.

Tudo está interligado, o que se passa em casa afeta a escola, mas o que se passa na escola também afeta o que se passa no contexto familiar. Penso que é importante este relacionamento, que tentamos que seja tão profundo quanto possível, mas é preciso ter algum cuidado para não julgar a família e pedir-lhe o que ela não pode dar. Tem de acontecer uma parceria, onde todos compreendem o seu papel e os objetivos comuns. Há situações limites, em que a família, sozinha, não consegue cumprir a sua missão. Por isso, repartimos com os pais todas as decisões. Por exemplo, teremos uma reunião, para decidir sobre futuras instalações para albergar o nosso projeto. Serão os pais a decidir se a proposta do governo serve os interesses de seus filhos.”

Não foi uma, foram três reuniões. Perante os riscos de desenraizamento do projeto, os pais decidiram não aceitar a imposição do ministério. Porém, pela primeira vez na história da Ponte, a decisão dos pais não foi acatada. Pela primeira vez, numa história de quase quatro décadas, a escola acatou ordens “superiores”, permitiu que o ministério fizesse vista grossa do contrato de autonomia. O projeto sofreu um profundo desgaste, perdeu significativa parte do apoio das famílias, cristalizou.

A história da Ponte foi feita de coragem, sofrimento e resiliência. Mas, houve momentos de fatais hesitações.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXCVI)

Santa Rosa, 21 de novembro de 2040

Hoje, trago-vos notícia de uma funesta sequência de acontecimentos, que começou com momentos de espanto.

Quando vasculhava as estantes de um sebo, deparei com um título comum de um livro, que nada tinha de vulgar: “A Escola Secundária Moderna”. O mestre Lauro tinha escrito um tratado, onde vertera um pouco da sua sabedoria. Procurei outros títulos do autor e apenas encontrei “A Escola para a Comunidade”.

Europeu etnocêntrico, eu cria que tivessem sido os anglo-saxônicos e os catalães os primeiros a escrever sobre comunidades de aprendizagem. Puro engano! No sul da América, trinta anos antes da construção teórica do Ramon, Lauro apontava caminhos para a transformação da escola num nodo de comunidade de aprendizagem: “A expressão escola de comunidade procura significar o desenquistamento isolacionista da escola tradicional. Escola, no futuro, será um centro comunitário. Não se reduzirá a um lugar fixo murado”.

Eu estava num encontro de formação, no dia do feliz encontro com a obra do Mestre. Perguntei a mais de uma centena de professores, ali presente, se alguém sabia do paradeiro do Lauro. Ninguém sabia. Nem sequer tinham ouvido falar de tal nome.

O Mestre havia nascido no Ceará, mas morava no Rio, onde decorria o encontro. No final da tarde, a senhora que varria o salão aproximou-se e perguntou:

“O senhor quer saber onde mora o senhor Lauro?”

Seria mesmo o Lauro, o autor dos livros? Aquela senhora o conhecia e indicou-me o endereço de uma casa, no Recreio dos Bandeirantes. No dia seguinte, me apresentei como visita e mantive com o Mestre uma saborosa manhã de conversa.

Dali fomos para a “Chave do Tamanho”, onde conheci a Beta, sua filha, e reconheci Piaget, nos mínimos detalhes da vida daquela escola. O bate-papo a três se estendeu por toda a tarde. E o amigo Lauro reiterava a crítica da escola da aula:

Encontramos escolas como verdadeiros quistos sociais, sem nenhuma relação real com o meio; estas escolas fechadas são elementos perniciosos para o meio. Museus, bibliotecas etc., estando à disposição de todos, deve a escola ensinar o povo a utilizar-se desses instrumentos de cultura (…)  aí se inicia uma escola; todos os serviços escolares, toda a estrutura administrativa, toda a legislação escolar, toda a burocracia resultam à posteriori deste fenômeno primário; cada membro da comunidade, para além da responsabilidade pessoal e social, tem compromisso com as novas gerações.

Em 2012, a Escola do Projeto Âncora quis homenagear um dos maiores educadores vivos. O Lauro estava muito doente, sem condições de se deslocar do Rio até Cotia. A Beta, sua filha o representou, numa festa organizada pelas crianças. No final, os alunos do Âncora entregaram à Beta umas “cartinhas para o amigo Lauro”.

Recordo uma manhã de trabalho no Âncora, em janeiro de 2013, quando a Internet nos trouxe a notícia do falecimento do Mestre. Voltei ao Rio e à escola do Lauro, para saber como poderia ajudar a Beta a continuar a obra do seu pai. Era grande a consternação. E era imensa a minha indignação, por saber de uma morte anônima. Nem uma notícia de jornal, nem uma homenagem póstuma a um dos maiores educadores do século XX!

Em junho de 2020, quando ajudava os pais dos seus alunos a entender como se pode aprender em tempo de pandemia, a Professora Beta morreuA equipe da “Chave do Tamanho” assim publicava a fatídica notícia:

“Sua força, coragem e sabedoria irão indicar os caminhos. Continuaremos a trabalhar por essa bandeira da educação no Brasil”.

Em maio de 2020, recebi a notícia de que a “Chave do Tamanho” iria ser vendida.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXCIV)

Carazinho, 20 de novembro de 2040

No ano que nunca existiu, a Microsoft apelava para que os países democráticos reagissem aos “ciberataques de agentes malignos”, porque empresas que desenvolviam vacinas para a covid-19 foram alvos de ataques cibernéticos. Na Europa do novembro do ano que nunca existiu, era decretado o recolher obrigatório, nos fins de semana. Na China, drones registravam efeitos de mudanças climáticas: geleiras derretiam a uma velocidade nunca vista. O mundo chegava a onze mil mortes diárias, pela primeira vez desde o início da pandemia.

A Humanidade já habitava um tempo de sociedade em rede, mas permanecia cativa de raciocínios lineares.

Até à Terceira Revolução Industrial, dispúnhamos de sequências lógicas. Depois, o simultâneo, a sobreposição. Na era da pós-verdade, as redes sociais operavam um sutil processo de desumanização. Pejadas de comentários abjetos, acentuavam a degradação moral e ética. Dispúnhamos de inúmeros instrumentos de comunicação e nunca tão solitários nos sentíamos.

No Brasil, em apenas dez anos, o suicídio infantil e juvenil aumentara 40%. O suicídio já era a segunda razão de morte de jovens. A automutilação era o segundo maior termo de busca dos jovens, na Internet. Os adultos encharcavam-se de medicamentos, as crianças se enchiam de Ritalina.

O meu amigo Rui Canário dizia que, quando assistíamos à degradação do ambiente natural e das relações humanas, raramente nos apercebíamos de que tais fenômenos eram consequências de uma determinada visão de mundo e da escolarização da sociedade. Mudanças operadas no tecido social refletiam uma profunda inversão de valores, a perversão das práticas sociais. Há muto tempo já, se reconhecia a necessidade de conceber uma nova escola para um novo mundo,

Desde a década de 1990, nenhuma inovação surgira no domínio das ciências da educação. Em pseudo-inovações, hipotecávamos destinos. Entre os “cursinhos” e a propaganda enganosa de híbridos sistemas de ensino, pessoas eram transformadas em bonsais humanos. E, no final de palestras proferidas por doutores ignorantes de prática, se comentava:

“É tudo teoria. Vê-se bem que o palestrante nunca deve ter posto os pés no chão de uma escola”.

Aprendizes de feiticeiro – gurus do digital, empresários e outros debutantes da educação – se apropriaram da palavra “inovação” e a deturparam. Adulterado o conceito, converteram-no em slogan para fins mercantis, curandeirismo, espécie de magia branca, capaz de impressionar as massas, nas palavras de Lauro Lima, que profetizou um tempo em que abundavam as caricaturas de inovação Acrescentava o insigne Mestre que a escola se formalizara através dos tempos, artificializando-se, até chegar a ser “um mostrengo repulsivo para a juventude, caixotes de alvenaria em que crianças eram encerradas como sardinha em lata”.

A Diretoria de Assistência a Programas Especiais do MEC reconhecia que mudar o paradigma de funcionamento das escolas passaria a ser a nova agenda dos sistemas educacionais:

“Mudanças estão longe de serem obtidas no curto prazo, mas é inegável que um conjunto de medidas pode e deve ser tomado para se reverter o quadro de ineficiência e de baixa qualidade do ensino”. 

Em outras palavras e como referia o documento-base da “Terceira Conferência Internacional sobre Educação Futura – Perspectivas Latino-Americanas:

“Apresenta-se com caráter de urgência a necessidade de desenvolver práticas coerentes com um novo paradigma educacional”.

Nos idos de vinte, se repetia um jargão centenário: era preciso… inovar.

Por: José Pacheco
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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXCIII)

Tupanciretã, 19 de novembro de 2040

De volta ao tema “avaliação”, escutemos o Mestre Lauro, que assim se manifestava acerca da pseudo-avaliação, que nesse tempo (e ainda nos idos de vinte) se fazia:

“O atual processo de verificação de rendimento, se por um lado é instrumento precário e anticientífico de avaliação, por outro favorece a criação de perigosos hábitos e atitudes de desonestidade, fraude, de confiança no “fator sorte” e de memorização, desorganizando a vida intelectual do aluno e preparando-o para estender à vida de cidadão e de profissional os processos corrompidos aprendidos nos bancos escolares. Seria melhor que nada se verificasse a possibilitar a aprendizagem de atitudes desonestas ou deformadoras, como atualmente acontece nas escolas.

As provas e exames dificilmente permitem verificar o comportamento do indivíduo numa “situação de vida”.  Não nos devemos basear em “conhecimentos atuais” apurados numa emergência (por exemplo, nos vestibulares). Exame de admissão é resquício de escola aristocrática. Para onde irão os eliminados pelo sistema de seleção? Usar provas e exames como recurso de coação para promover o estudo, não só demonstra a incapacidade do professor, como cria tensões psicológicas altamente prejudiciais à formação de uma personalidade tranquila e ajustada.

Não deve haver horas especiais de verificação. Todo o momento é ocasião de apreciar o rendimento escolar. O sistema de verificação que consiste em comparar os alunos entre si não só é profundamente injusto, como provoca hostilidades, quebrando a desejável solidariedade que deve ser cultivada na juventude.

A medida de cada aluno só pode ser ele mesmo. O professor não deve fazer “classificação de alunos”, não deve fazer da verificação uma espécie de “vômito intelectual”, nem fazer julgamentos milimétricos (em décimos e centésimos). Se o aluno não aprendeu, o professor não ensinou”.

E o Mestre ia ao fundo da questão:

“As escolas não são escolas seletivas. São escolas para todos. Como são obsoletos e anticientíficos os processos didáticos ainda utilizados nas escolas, quase todos baseados em técnicas expositivas e em processos não-ativos. A estrutura escolar baseada (como vem sendo) em pura “informação” está fadada ao mais completo fracasso. O professor jamais concorrerá, vitoriosamente, com os modernos meios de informação, mesmo que as escolas se equipassem com todos os recursos técnicos de transmissão de informações”.

Mais de meio século decorrido sobre a publicação desse texto, as escolas continuavam a ”usar provas e exames como recurso de coação para promover o estudo”. Os professores não sabiam avaliar, mas faziam “classificação de alunos”. Os ministros e secretários, certamente, não tinham lido as obras do Lauro. Acaso as tivessem lido, não tinham entendido a mensagem – não nos esqueçamos de que, nessa época, havia analfabetismo funcional na universidade.

Vai para trinta anos, na esteira das considerações tecidas pelo Mestre Lauro, o meu amigo Celso dizia que a avaliação era uma estratégia fundamental para a existência, considerando que não nascemos prontos, nem programados e que nos constituímos por nossa atividade. Escutemo-lo:

“A avaliação nos ajuda na tomada de consciência dos acertos, o que é decisivo para o fortalecimento da autoestima, propiciando condições para novas aprendizagens. A tomada de consciência dos erros, por sua vez, é importante para que possamos nos comprometer com sua superação, aprender com eles (…) A avaliação é, sem dúvida, uma conquista da espécie humana”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXCII)

São Borja, 18 de novembro de 2040

Queridos netos,

Em 2020, tentava ajudar amigos e companheiros de jornada a “matar o pai” (psicanaliticamente, é claro!). Estava prestes a completar setenta anos e apenas desejava que me libertassem do fardo da militância. Urgia que outros educadores tomassem nas suas mãos a… “missão”. Para tal, ajudei a criar uma rede de projetos de uma nova e melhor educação. Sentia ter chegado a hora de ir plantar árvores e olhar passarinhos

Sabemos que uma rede não tem centro e que, por isso, se expõe a inevitáveis “dinâmicas pessoais” e a manifestações de egos inflamados. Por isso, não foi fácil concretizar o meu voluntário afastamento. Tão logo anunciei esse propósito, recebi mensagens como esta:

“Como mãe e educadora do século XXI, cheguei a este momento mais certa de que as minhas crenças e visões em “chão de escola” estão corretas, dada a realidade deste novo século. A minha aproximação a esta rede prendeu-se com o fato de me poder sentir mais “aconchegada” no caminho solitário que é ser um agente de mudança e não o poder implementar com a liberdade desejada (como as crianças merecem) no meu dia-a-dia como docente,  seja pela resistência que cria nas pessoas que me rodeiam, porque ainda acreditam no “Papai Noel”. Aproximei-me com a esperança de renovar energias e abrir um caminho novo que alimentasse esta minha necessidade de aconchego.

Contudo, chego a este momento sentindo que as dinâmicas pessoais, que muitas vezes são impeditivas de que a transformação aconteça, existem também em grupos cuja missão é agir por uma educação unificadora e transformadora. Estar num grupo, cujas dinâmicas refletem o oposto da missão unificadora, é para mim desgastante. O “calor unificador” de que precisava, para seguir em frente neste momento, não existe, e a minha participação deixou de fazer sentido, quer a nível pessoal (falta de tempo e indisponibilidade horária para reunir a horas tardias), quer a nível das aspirações que sentia (na possibilidade de constituição de um novo núcleo que nutrisse as crianças da minha área de residência), assim como a nível profissional (como professora, que tenta irremediavelmente nas suas práticas diárias reconfigurar a educação, reinventando-a, reimaginando-a, inovando-a). Desta forma, me afasto.”

Atento a uma anunciada desagregação, optei por um derradeiro esforço. Com quem correspondeu a um “convite”, ajudei a organizar “turmas-piloto”, protótipos de comunidades de aprendizagem (se quiserdes saber do que tratava, dizei-me e vos explicarei o que isso era). E adentramos 2021 com algo agregador, concreto, no chão das escolas. Assim respondi à mensagem da Mariana:

“Querida amiga, é preciso não perder o sentido dos gestos transformadores e aceitar alguma desagregação. A “unificação” é idealizada. Façamos o que é possível fazer, o que estiver ao humano alcance: idealizar o real e realizar o ideal, aceitando a diversidade, acolhendo divergências. A unanimidade é perigosa, é prenúncio de autoritarismo. Acolhe o meu fraterno abraço.”

Seria preciso religar, realçar a interdependência entre indivíduo e grupo, bem como as transformações que impeliam a novas formas de pensamento e ação. Muitos anos antes, Morin evocava a unidade complexa. Se a necessidade de organização tendia a transformar a diversidade em unidade, não anularia a diversidade. Num mundo em que imperavam princípios de disjunção, de redução – o que Morin designava de “paradigma da simplificação” –, um pensamento simplificador impedia a conjunção do uno e do múltiplo, anulava a diversidade.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXCI)

Sarandi, 17 de novembro de 2040

Permiti, queridos netos, que vos fale mais um pouco sobre avaliação. Em particular, daquela que se fazia na Ponte. Quem a visitava transformava a estranheza em perguntas: “Existe um processo de avaliação? Como se dá esse processo? Que critérios são usados para avaliar os alunos? Como a criança se apropria dos seus avanços e dificuldades?”

Eis o que o pai de uma aluna respondeu:

“Ao ver como a avaliação acontece na Ponte, eu pergunto: será que existe um processo de avaliação nas escolas “tradicionais? Na Ponte, a avaliação acontece o tempo todo. Cada passo que a criança dá é avaliado, a começar por ela mesma. Vocês não imaginam como é difícil, para quem passou a vida inteira sendo avaliado por outros, esperando coisas como notas, graus, conceitos etc., se autoavaliar! Não estamos habituados e sentimos tanta dificuldade!

Agora, imagine uma criança da Ponte: dia após dia, mês após mês, ano após ano, pegando um objetivo de aprendizagem, fazendo atividades para atingir aquele objetivo, concluindo que se sente apta a procurar um professor, para que este confirme a autoavaliação.

Outra coisa: os objetivos de aprendizagem não são uma coisa “secreta”, oculta para os alunos, que somente o professor conhece. São o ponto-de-partida da aprendizagem. A coisa começa com a criança escolhendo. Tudo ganha sentido em função de objetivos a atingir”.

Sem que o soubesse, esse pai enunciava um dos princípios gerais da aprendizagem: o princípio da significação. Compreendia que a sua filha atribuía significado ao objeto de estudo, sabia por que pesquisava, por que aprendia. E, sobretudo, porque deveria partilhar o conhecimento construído.

Naquele tempo os estudantes de Pedagogia poderiam ter lido Vygotsky, estudado Brunner, para colocar decoreba numa prova. Mas o tinham feito sem sentido. Aqueles que se resignaram à ensinagem em sala de aula reproduziam aquilo que tinham experienciado. Em situação de sala de aula, não havia aprendizagem significativa. Uma prova quase nada provava. Uma nota nada significava.

Naquele tempo, quase não se fazia avaliação. Apenas se classificava, sequenciando alunos numa escala ordinal, imperfeita referência de acesso à universidade. Rankings e exames não eram avaliação, eram meros instrumentos de darwinismo social.

Voltemos à resposta dada pelo pai da aluna da Ponte. Na contramão do uso de inúteis e nefastos instrumentos, esse pai assim falava do “socioemocional”:

“A observação permite avaliar melhor os alunos em termos de valores e atitudes, para que os alunos sejam solidários, responsáveis e autônomos. No que diz respeito aos conhecimentos (é lógico que a separação entre todos estes fatores é artificial, mas torna mais simples a explicação), eles são avaliados de diferentes formas. A assembleia, os debates, as apresentações dos trabalhos constituem, também, excelentes momentos de avaliação”.

Por volta de 2020, um amigo brasileiro mostrou-me a “avaliação online”, que o professor do seu filho lhe enviara:

“O aluno é interessado, mas distrai-se com muita facilidade, o que pode comprometer os seus resultados escolares. Relembro que a assiduidade, a pontualidade, a atenção e a participação nas aulas online serão avaliadas”.

Esse pai entendeu a velada ameaça do professor. Também percebeu que o professor não sabia avaliar. E me confidenciou que, tão logo passasse a pandemia, iria para Portugal, para matricular o seu filho na Escola da Ponte. Disse-lhe que não precisaria de atravessar o Atlântico. No Brasil de 2020, já havia pontes para uma nova educação.

 

 

Por: José Pacheco

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