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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLXXX)

Divinópolis, 6 de novembro de 2040

Dizia-me a Maria, numa cartinha dos idos de oitenta:

“Os tempos são outros, a ideia de que a escola deve ser apenas brincadeira já provocou ignorantes a mais”.

“Pois é, Maria!! – respondi – “Os tempos são outros, mas as práticas são as mesmas e de recuados tempos. Eu sei, porque também fui professor “transmissor”. Foi isso que me ensinaram, desde a carteira da escola primária até à universidade É isso o que, ainda hoje, se ensina.”

Durante algum tempo da minha vida de professor, dei aula, acreditei (santa ingenuidade!) ser possível transmitir conhecimento. Até que descobri algo que qualquer professor sem síndrome de pensamento único poderia descobrir: que havia outros modos de ser professor.

Quarenta anos depois da cartinha da Maria, aquilo que a maioria dos professores tentava fazer não era transmitir conhecimento, mas informação. Mas nem essa conseguiam transmitir, devido a múltiplos “ruídos”, que interferiam na comunicação. Essa prática fora hegemônica, durante séculos. Raras foram as excepções. E a instrucionista “transmissão” “provocou ignorantes a mais”, como bem referiu a Maria.

Mas, naquele tempo, eu confiaria mais no trabalho de um professor “tradicional” do que num aventureiro pseudo-inovador, que considerasse que “a escola deveria ser apenas brincadeira”. Embora ambos estivessem errados, porque o primeiro insistia num modelo fóssil e o segundo praticava uma pedagogia fóssil.

Muitos daqueles que defendiam o “ensino transmissivo” abominavam aquilo que designavam por “novas pedagogias”. Presumo que usassem tal adjetivo por ignorância, pois as “novas pedagogias” que eles criticavam eram velhas. Piaget publicara teoria em meados do século XX e as matrizes construtivistas tinham sido elaboradas há mais de um século! Cadê a “novidade”?

Queridos netos, aceitaríeis ser tratados por um médico que se orientasse por ciência produzida séculos atrás? Ninguém, em seu perfeito juízo, o faria. Mas havia quem entregasse os seus filhos ao cuidado de quem nem sequer um Piaget assimilara, para responsavelmente elaborar teoria pessoal e a utilizar numa práxis coerente.

Muitos daqueles que influenciaram sucessivos elencos ministeriais conduziram a política educativa ao desastre, evocando as ciências fósseis da educação. Com elas enfeitaram preâmbulos de decretos. Fazendo teorização de teorias mal digeridas e jamais praticadas, alguns “especialistas” contribuíram para lançar um estigma sobre a psicologia da educação, quando, em nome dela, apoiaram e legitimaram políticas desastrosas. E muitos professores sentiram os efeitos de “reformas” assentes em “construtivismos” mal assimilados.

Dizia a Maria na sua cartinha: “Os tempos são outros”.

Sê-lo-iam? Não consegui disfarçar a minha perplexidade, quando, em 2020, escutei este diálogo, numa sala de professores:

“Não me sinto preparada. Tenho medo!”.

“Medo de quê, colega? Só tem que passar o conteúdo. Vai ver que é fácil! É só escrever na lousa e eles copiam”.

Há muitos anos, a Pedagogia foi proscrita, afastada das universidades. Em Portugal, os cursos de Pedagogia foram extintos. Quando já se deveria falar de Antropogogia, a Pedagogia parecia ser palavra maldita. O resultado estava à vista: o debate sobre Educação era paupérrimo, expunha-se ao alvitre de qualquer um e à opinião de todos, transformara-se numa terra de ninguém. E, nas faculdades de pedagogia – seriam mais de… paleontologia – professáurios diziam aos futuros professores que o centro era o aluno, enquanto davam aula centrada… no professor.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLXX)

Congonhas, 5 de novembro de 2040

Na década de 1990, integrei uma comissão do Conselho Nacional de Educação encarregada de emitir um Parecer sobre uma proposta de base curricular. O documento sublinhava a necessidade de instituir práticas coerentes com o discurso teórico do preâmbulo da proposta de lei. As recomendações foram ignoradas. A lei foi aprovada. Visava-se a melhoria da qualidade da educação, mas a educação de Portugal não melhorou.

Vinte anos depois, acompanhei a elaboração da Base Nacional Curricular Comum brasileira. Nela se recorria ao discurso contemporâneo das ciências da educação. Estava repleta de termos como: “habilidades, direitos de aprendizagem, educação integral, competências”. Mas, em tempos de pós-verdade e de crise ética, a proposta de BNCC era um documento híbrido, sem lógica interna, que revelava incoerência entre o preâmbulo e o texto restante. Caminho aberto para que uma administração burocrática e controladora, aliada a lideranças tóxicas anularam iniciativas de mudança.

A BNCC constituiu-se numa réplica da base curricular portuguesa, dado ter incorrido em omissões e manifestar idêntica incoerência. Portugal e Brasil estavam irmanados numa deriva educacional de séculos, num tempo em que a educação não prosperava nos bastidores de uma administração educacional burocratizada.

Nas audiências públicas, foi repetidamente afirmado pelos autores da base que a BNCC era mera referência, juntando-se o falso argumento de que as escolas, no exercício da sua autonomia, dela fariam adaptações. Efetivamente, o termo “autonomia” era referido 57 vezes na proposta de base curricular. Porém, omitia-se o fato de, ao cabo de 20 anos da aprovação da LDBEN, o seu artigo 15º continuar sem efeitos práticos. Também não se referia que a administração educacional não havia cumprido a meta 19 do Plano Nacional de Educação.

Gestores escolares continuavam a assumir cargos por indicação de políticos, o “dever de obediência hierárquica” negava às escolas o direito à autonomia. E só quem não conhecesse a realidade do chão das escolas poderia crer que nelas era cumprido o artigo 12º da LDBEN, pois as escolas não cumpriam a sua proposta pedagógica. Aliás, o modelo instrucionista imposto às escolas pela administração educacional impedia o cumprimento de muitos outros artigos da Constituição e da LDBEN. Urgia, por isso, outorgar autonomia às escolas e erradicar o modelo educacional vigente, para que as escolas pudessem cumprir a lei.

Quando assumi cargos como o de diretor, apercebi-me de que os projetos políticos-pedagógicos das escolas não eram políticos, nem pedagógicos. Que, na sua elaboração, a polis não era escutada, não se contemplava necessidades, problemas e sonhos das comunidades. Em pleno século XXI, apesar de travestido de digital, prevalecia a prática da datilografia pedagógica. Não se recriava processos, praticava-se um currículo de mimeógrafo.

Currículo é um conjunto de experiências, vivências, que convergem para objetivos educacionais. Se o currículo é a totalidade das experiências de aprendizagem, conviria saber que tipo de experiências seriam proporcionadas aos alunos, qual o modelo epistemológico subjacente à proposta de base curricular.

A resposta estava à vista: “aula” era a palavra mais frequente no texto da base (contei-a 75 vezes). Talvez os seus autores vivessem na ingênua presunção de que no contexto do instrucionismo pudesse acontecer inovação, ou que as intenções da introdução da base se pudessem concretizar… em sala de aula.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLXIX)

São João da Ponte, 4 de novembro de 2040

Entre o aparecimento da lousa de ardósia e o da lousa digital distam séculos. Nesse longo hiato, a escola, pouco, ou mesmo nada mudou. Apenas terá mudado o tipo de material utilizado na fabricação da lousa.

No final do século XX, jovens internautas comunicavam com outros, pediam e prestavam ajuda, em chats, emails, e múltiplas plataformas digitais. Nesse tempo, importavava mais que fosse o aluno a esforçar-se, para descobrir e recriar realidades, do que uma “realidade” ser comunicada por um professor. E quantos jovens comunicavam com os professores, através da internet?

Num tempo em que a prática da escrita da letra cursiva ia perdendo sentido, muitos docentes ainda obrigavam os seus alunos a um gasto significativo do tempo escolar no exercitar da letra cursiva, para que – segundo afirmavam – os seus alunos tivessem “uma caligrafia perfeita”. Talvez se inspirassem em Steve Jobs, que, quando passou pela universidade, apenas quis aprender… caligrafia.

E, nos jardins de infância, precocemente se escolarizava a infância, instituindo rotinas, nas quais todas as crianças deveriam começar a dormir ao mesmo tempo, ainda que não tivessem sono. No último reduto da transmissão de informação, os professores arriscavam-se a ser uma espécie em vias de extinção.

”A carreira dos professores “conteudistas” está por um fio! – disse-me a Ely. Contou-me que o “professor Google” lhe ensinava quase tudo. Nos seus sessenta e muitos anos, a aposentada Ely continuava a aprender. Achou um site em inglês com uma animação interativa do efeito do sal nas moléculas de água. Interessou-se pelo assunto. O “professor Google” traduziu o texto, com perfeição, do inglês para o português. E a Ely pode experienciar como era a reação da água ao sal, nas temperaturas que colocava no site. Entendeu uma das complexas propriedades coligativas da química. Mas continuou sem compreender por que razão teve de ouvir aula sobre raíz quadrada, se, ao logo da sua vida ( e da dos outros), jamais precisou de usar tal raíz.

Encontrei um princípio de resposta, quando, no chão de uma escola particular e no dealbar deste século, deparei com a prática da chamada webquest. Um professor universitário estadunidense havia criado uma proposta metodológica, “para usar a internet de maneira investigativa e criativa” (sic)Nos primeiros dias da World Wide Web, esse especialista em Design e Tecnologia desenvolveu uma estrutura, “para envolver os alunos com material baseado na web”. Muitas décadas atrás, mais ou menos, nestes termos a “invenção” se definia:

“Grandes cursos mistos visam identificar alunos que estão ficando para trás e desenvolver intervenções que os trarão de volta aos trilhos (…) convertendo seus cursos para entrega online”.

Embora fosse, pedagógica e antropogogicamente, uma iniciativa ingênua, a webquest era uma meritória tentativa de melhoria das aprendizagens. Nunca duvidei da boa-vontade e honestidade intelectual do criador, mas a criatura constituiu-se num modelo precursor da passagem da aula presencial para a aula dada na Internet, disfarçada de “aprendizagem”.

Essa “inovação” não contribuiu para o “canto do cisne” da escola da aula – foi o anúncio de uma nova praga educacional. Em 2020, muitas escolas particulares faliram e a administração escolar incorria no crime de abandono intelectual de muitos alunos da escola “pública”. A Internet foi inundada de produtos sucedâneos da webquest e a pandemia abriu caminho para áulicos e marqueteiros enriquecerem num making money online”.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLXVIII)

Itabira, 3 de novembro de 2040

Ao longo de meio século de professor de chão de escola, raramente encontrei estudos que não partissem do pressuposto de que o tempo de aprender era o tempo passado em sala de aula. Exemplo típico desse equívoco foi a conclusão do estudo de um antropólogo, que demonstrava a necessidade de a sociedade compreender as peculiaridades da percepção e uso do tempo no ambiente escolar. Ele dizia ser muito importante que as “aulas” de matemática fossem administradas pela manhã. Supostamente, porque o aluno teria maior capacidade de “absorver” o conhecimento.

Se afirmações desse gênero, provindas de “especialistas” não fossem graves, seriam ridículas. Um dos pontos fortes do debate dos idos de vinte era “o tempo de duração de uma aula”. No decurso de um congresso, alguém perguntou se eu estava de acordo com a carga horária em vigor. Respondi que “carga” era coisa de jegue, com o devido respeito pelo colega e pelo jegue.

O colega voltou à carga. Perguntou-me se aprovava a alteração do tempo de aula de cinquenta para noventa minutos. Respondi, perguntando:

“Cinquenta minutos? Noventa minutos? Para qual aluno?” 

Ficou arrumada a questão, ainda que eu acrescentasse (e ele já não escutasse) que foi há cerca de cem anos que alguns pesquisadores chegaram à conclusão de que o “aluno médio” teria, “em média”, uma capacidade de atenção seguida de cerca de cinquenta minutos. Finalizei, afirmando que a duração da aula é uma falsa questão. Que teríamos de ultrapassar um discurso semeado de abstrações: “aluno médio, carga horária, ano letivo, semestre, trimestre… bimestre”.

A duração da aula decretada variou ao longo do tempo. Em 1986, a lei de bases portuguesa instituiu um mínimo obrigatório de 200 dias letivos anuais, derrubando os 180 dias letivos anteriores, “para que os alunos dispusessem de mais tempo para aprender” (sic). Mas, qual era o tempo de aprender? Um tempo decretado, ou um tempo ajustado a cada qual, alinhado com uma efetiva produção de conhecimento? Por que se padronizava o tempo de ensinar, sem deixar tempo para aprender? Onde estaria a capacidade de reinventar a gestão do tempo, no respeito pelo ritmo e necessidades concretas de cada ser humano?

Naquele tempo, a escola do tempo da aula produzia e reproduzia insucesso, porque as pessoas produziam organizações e por elas eram reproduzidas. Nunca alguém me conseguiu explicar por que razão havia ano letivo, ou porque as escolas fechavam para férias. Os hospitais e as igrejas também fechariam para férias?

Imaginai o vosso filho com uma crise de apendicite aguda. Chegados ao hospital, depararíeis com este aviso: “Estamos de férias. Deixe a sua inscrição no atendente e volte dentro de um mês”. É evidente que o apêndice se romperia e o vosso filho morreria. Imaginai outro, afixado na porta de uma igreja: “Volte em fevereiro, porque o pastor, o padre, Deus e os santos estão de férias”.

Alguém imaginaria contemplar dísticos deste tipo? Só na escola, que não sabia que a aprendizagem acontecia nos 365 dias de cada ano e nas 24 horas de cada dia. À revelia das descobertas da cronobiologia, as escolas mantinham rituais de horário fixo, como a hora de entrar e de sair, ou os cinquenta minutos de uma aula, que ninguém sabia explicar por que eram cinquenta. Ao mesmo tempo, todos deveriam estar olhando a nuca do colega da frente. E, entre dois toques de sirene, se anunciava o recreio.

Eu suspeitava de que existia alguma analogia entre o banho de sol dos presidiários e o recreio dos alunos, pois todos deveriam merendar, fazer xixi e defecar ao mesmo tempo, vigiados.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLXVII)

Pedra do Indaiá, 2 de novembro de 2040

Um fundamentalista atacou fiéis, que rezavam na basílica Notre-Dame de Nice. E uma Simone, nascida na Bahia, foi morrer na França.

“Ela estava lá rezando, entrou esse cara que detesta cristãos. A gente fala em ‘cristofobia’. Ele esfaqueou essa senhora lá dentro. Ela atravessou a rua, coberta de sangue. Ainda conseguia falar…”

Simone ficou gravemente ferida, mas conseguiu fugir para um restaurante, ao lado da igreja. E, ali, se despediu dos filhos e da vida:

‘Digam a meus filhos que amo eles’.

No final do insano mês de outubro de 2020, um padre ortodoxo foi baleado na porta de uma igreja. No Brasil, um cadeirante de 42 anos morreu, após ser jogado de um viaduto. E um homem matou o sobrinho de 4 anos de idade, a facadas.

A violência globalizada juntava-se à covid-19, para fustigar uma sociedade doente. Os EUA superavam os 90.000 casos de covid-19, em 24 horas. A Malásia punha em quarentena mais de 10 mil polícias O primeiro-ministro inglês anunciava novo lockdown, após o seu país ultrapassar um milhão de casos de Covid-19. Face à segunda onda da pandemia, países europeus anunciavam novas medidas. O Estado de Emergência estava a caminho…

Em Portugal, o Governo tomou medidas, mas as escolas iriam continuar abertas. O maior foco de disseminação do vírus continuaria… “aberto”. O ministério acusava de “alarmismo” a notícia de que mais de quinhentas escolas tinham casos de covid confirmados. Crianças a partir dos seis anos eram obrigadas a usar máscara e uma menina autista de nove anos de idade era algemada pela polícia, durante crise em escola.

Raras notícias me chegavam de interpelação da insanidade geral. Apenas educadores como o André e a Juliana me ajudavam a suportar o peso dos dias sombrios. Transcrevo mensagens, que não carecem de comentário:

“Neste momento há escolas trabalhando com aulas virtuais. Professores preparam aulas, tais como aquelas que eram dadas antes do isolamento, e as ministram a grupos de 10, 20, 30 alunos que se enxergam através de webcams. Há escolas exigindo que alunos compareçam às aulas nos finais de semana. Há escolas exigindo que os alunos estejam uniformizados durante as aulas virtuais. Não me espanto. Se a sociedade já estava doente antes, não é de espantar que ideias bizarras surjam neste momento.

Há escolas se preparando para aplicar PROVAS. Vamos imaginar como seria cômica essa situação?

– Boa tarde, alunos! Hoje vocês farão uma prova virtual – diz o professor.

Alunos observam atentos o professor na sala virtual.

– Por favor, cliquem no link que eu vou mandar e respondam às perguntas.

O professor percebe que um aluno desliga a câmera.

– Marcos, por que você desligou a câmera? Tem alguém aí com você te ajudando a fazer a prova?

Tudo patético! Por aqui já gerou um trauma, desinteresse acentuado, queda de rendimento, pane emocional e insônia infantil. E ainda tem professores “seguindo o baile”, insistindo no expositivo virtual, como se eles estivessem super absorvendo em uma pós graduação à distância. Competição de quem mais participa com a câmera ligada, quando falam demais são interrompidos, de menos, cobrados e comparados…uma tragédia.

Meu sonho para 2021 seria algo como a Ponte ou o Âncora. Estou sendo uma mãe autodidata para conseguir salvar a aprendizagem sem traumas. Vejo a escola particular sem plano B, sem noção e sensibilidade, a tentar salvar-se da falência. Falidos todos já são…uns tolos.”

Nesse insano outubro, um homem lúcido nos avisava de que o povo não sabia o que estava acontecendo. E nem sequer sabia que não sabia.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLXVI)

Ribeirão das Neves, 1 de novembro de 2040

No início de novembro de há vinte anos, um novo capítulo se abria na saga da recriação da escola. Uma nova construção social de educação nascia no sul e tomava forma por mediação de educadores éticos, confirmando a existência de seres que o Brecht diria serem indispensáveis.

Educadores brasileiros libertavam-se da síndrome do vira-lata. Só faltava libertar do ostracismo a obra de pedagogos brasileiros de nomeada. Era escasso o conhecimento da extraordinária obra de Lauro Lima, que, na década de 1960, fez a reinterpretação brasileira do pensamento de Piaget. Urgia redescobrir Anísio Teixeira, que, já nos anos trinta, defendia a necessidade de mudar a escola, para que esta se tornasse um instrumento de mudança social. Faltava rever as teses de Agostinho da Silva, companheiro de utopias de Darcy Ribeiro. Era preciso recuperar a obra, na prática, a obra de Paulo Freire, tão injustamente maltratado em tempos sombrios.

Uma nova geração de educadores surgia, uma ruptura paradigmática se anunciava, que não poderia prescindir do património que ignorados pedagogos nos legaram. Mas, se os professores eram formados em métodos passivos, poder-se-ia esperar que desenvolvessem métodos ativos? Se foram formatados numa inútil acumulação cognitiva, iriam adoptar o modelo transmissivo, perpetuar um modelo epistemológico falido.

Nas minhas deambulações pelo Brasil das escolas, encontrava muitos anónimos educadores, que não desistiam do sonho das suas vidas e teciam uma rede de fraternidade, fonte de esperança, num Brasil condenado a acreditar que, pela Educação, iria chegar ao exercício de uma cidadania plena. Com eles aprendi a amar este país e a respeitar e ajudar os educadores que o refaziam. Eles me instigavam a penetrar mais fundo em contraditórias realidades.

Poderia citar uma lista interminável de escolas onde a reelaboração cultural acontecia, onde as concepções e práticas educacionais, discretamente, evoluíam. Porém, em muitos outros lugares onde se deveria aprender, os vícios instrucionistas condenavam milhões de alunos à evasão, ao abandono intelectual… ao suicídio.

No último reduto da transmissão de informação, professores auleiros eram já uma espécie em vias de extinção. Por que resistiriam à mudança? Regressando a metáforas, vos direi porquê.

O sistema mais antigo de classificação de seres vivos que se conhece deve-se ao filósofo grego Aristóteles, que classificou e descreveu todos os organismos vivos, no seu tempo, conhecidos. Conta-se que Aristóteles deixou registrado ter a mosca doméstica oito patas.

Essa espécie era um dos insetos mais comuns, presença habitual nos mosteiros da Idade Média, onde, ao longo de muitos séculos, monges copistas reproduziram a aristotélica asserção. Até que alguém se atreveu a desafiar a autoridade científica de Aristóteles. Um copista suspendeu a cópia e foi procurar uma mosca. Apanhada a mosca, contou-lhe as patas. Aventou a hipótese de o animal ter sido amputado de duas patas. Quiçá, teria a mosca seis patas?

Seguindo regras básicas dos procedimentos que produzem o conhecimento científico, caçou mais dois insetos. E confirmou a hipótese levantada na captura da primeira mosca. Aristóteles se enganara. E o erro havia sido replicado por séculos de cópia do original. Voltou para a mesa, alterou a iluminura e escreveu: “a díptero braquícero  da família Muscidae tem seis patas”.

Quando chegará o tempo em que os protagonistas do absurdo modelo de escola instrucionista se decidirão a contar as patas de uma mosca?

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLXV)

Contagem, 31 de outubro de 2040

Decorria o ano de 2011. Eu estava em Belo Horizonte, ajudando educadores a melhorar a vida das crianças. Foi trabalho jogado no lixo da história. Os projetos da rede pública foram traídos por professores, que se venderam ao sistema. Saldo positivo: muitos amigos mineiros eu fiz!

Um dos projetos era de uma escola particular. O PP-P continha abundantes citações de autores da moda, num discurso feito de pedagogia pseudo-humanista e de caricaturas de construtivismo. Convidado pelo dono da escola, acreditei no seu propósito e, durante quatro anos de trabalho voluntário e gratuito, me envolvi no projeto.

As práticas eram a negação daquilo que estava escrito no PP-P. Com a minha ajuda, educadores – como a Claudia, a Maria, a Lilian – as revisaram e fizeram coerentes. Instalaram dispositivos, efetivaram mudanças. Excelentes resultados não demoraram a surgir. Logo também apareceram torpes reações.

A maioria dos “professores” (não sei se poderei conferir-lhes tão digno estatuto) dessa escola sabotaram o trabalho da equipe de projeto. E todo o esforço se perdeu entre os caprichos do dono da escola e a conivência de serviçais “professores”, que, para não perderem o emprego, perderam a dignidade.

Herdeiro de uma cultura autoritária, o dono da escola impôs os seus caprichos, apoiado na representação conservadora de famílias-clientes, de pais que ignoravam o conteúdo do projeto político-pedagógico, pois nunca o tinham lido.

À semelhança de outras “boas escolas” daquele tempo, aquela escola era uma fraude. Sentindo-se protegida pelo seu “chefe”, uma coordenadora ignorante tomou decisões carentes de fundamentação científica, que feriam os valores consagrados no projeto da instituição. Hierarquicamente, comunicou (melhor dizendo, impôs) o regresso a velhas e absurdas práticas. contando com a obediência bovina da maioria dos professores.

A desonestidade intelectual foi recompensada com tablets oferecidos por um chefe, que comprava consciências com dinheiro. E mais um projeto foi extinto. Palavras, que representavam valores – autonomia, democraticidade, diálogo, responsabilidade… ética – continuavam a enfeitar o projeto (escrito), enquanto os padrões de comportamento cotidiano refletiam uma herança civilizatória calcada no autoritarismo.

Os educadores, que ousaram não concordar com absurdas decisões, foram intimidados, ostracizados e, em alguns casos, despedidos. O trabalho sério de reflexão sobre as práticas, um acervo de rica documentação arquivada num computador, desapareceu misteriosamente. Ninguém soube indicar o seu paradeiro.

A escola continuou cativa de uma concepção de produção em série, do papaguear conteúdo, da precarização do conhecimento. Alguns pais mais conscientes da situação, reagiram, exigiram o cumprimento do projeto. Porque não foram escutados, levaram os seus filhos para outras escolas.

Frustrada a iniciativa, afastei-me daquele lugar. Educadores com quem eu tinha trabalhado foram recomeçar em outro lugar. Como a minha amiga Lilia. Porém, a sua generosidade levou-a, mais tarde, para más companhias. Na melhor das intenções – acredito! – dava guarida em redes sociais a “aprendizes de feiticeiro” da educação.

Esta estória não tem um final feliz… mas não penseis que desisti. Preservei a minha amizade com a Lilian e deixei de perder tempo a contestar a mercantilização da educação. No tempo de vida que me restava, fiz “a minha parte”, ajudei a conceber uma nova construção social de educação.

Contar-vos-ei como tudo aconteceu.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLXIV)

Itaguara, 30 de outubro de 2040

Nos idos de vinte, a escola permanecia estagnada, imersa num pântano de absurdos. Arcaboiços da escola da modernidade tinham perdido sentido e legitimidade. Lamentavelmente, o discurso acadêmico insistia no recurso a conceitos e práticas fósseis, ainda que assumindo um “novo visual”. Nos idos de vinte, estava em voga o chamado “ensino híbrido”.

Explorando a ingenuidade pedagógica da “sociedade líquida”, empresas assaltavam o mercado da educação com o novo “produto”. Iludindo professores de boa-fé, fundações se propunham formatá-los no “ensino híbrido”. As aclamadas “boas experiências” de educação híbrida eram caricaturas de práticas centenárias ornamentadas com computadores e Internet.

Não poderia faltar a famigerada “sala de aula invertida”. Dela se dizia “colocar o aluno como protagonista”. Grosseira mentira! Era o professor quem “sugeria” (belo eufemismo!) o conteúdo a consumir. Quanto muito, havia uma ou outra busca feita pelo aluno. Em sala de aula (instrucionista!), alunos e professor discutiam em grupo. Celestin Freinet havia feito o mesmo – e fora mais além! – utilizando ficheiros autocorretivos, no início da década de vinte… do século XX. Em 2020, era ridículo chamar “inovação” à aula invertida.

A prática “híbrida” do modelo “Flex” – como era chamado – consistia em fornecer ao aluno “uma série de atividades a serem realizadas on-line”. Os professores estariam à disposição do aluno, para tirar dúvidas. Isso havíamos feito na Ponte, já nos idos de setenta, num tempo em que ainda não havia computadores. E de modo bem mais elaborado, porque as “atividades” não eram concebidas pelo professor e impostas aos alunos; eram construídas com os alunos, segundo a velha tradição escolanovista.

Outro modelo indevidamente designado de inovador era o “laboratório rotacional”. Os híbridos” eram hábeis a criar termos de belo efeito, criativos apenas no discurso. Em que consistia o “laboratório”? Num “giro dos alunos em estações, por diferentes modalidades de aprendizado”. Skinerianamente, em cada estação, poderia ser utilizado um recurso diferente.

Aqui cabe uma pertinente observação: não se tratava de “aprendizado”, mas de “ensinado”, dado que as “estações” eram planejadas pelos professores, o número de estações e o tempo em cada estação eram determinados pelos professores. Cadê o “sujeito de aprendizagem”? Cadê a “inovação”?

Os “híbridos” do século XXI apropriavam-se do discurso escolanovista, para maquiar o instrucionismo de entre a primeira e a segunda revolução industrial, em práticas do tempo da máquina a vapor. A escola “híbrida” continuava tão obsoleta como no tempo em que o telégrafo dera lugar ao telefone.

Com a descoberta do computador, a segunda revolução industrial emergiu, para logo dar lugar a uma terceira, aquela que surgiu com a internet e a automação. Foram criadas empresas fornecedoras de sistemas de ensino, quando deveríamos já dispor de sistemas de aprendizagem. As escolas passaram a adotar a lousa digital, fez-se “ensino à distância”, quando já se poderia fazer aprendizagem na proximidade. Foram criadas redes de ensinagem, quando seria necessário criar redes de aprendizagem.

No início deste século, hábeis mercadores mantinham um cadáver adiado: o da escola instrucionista. Enriqueciam, vendendo subprodutos educacionais a consumidores de currículo, que haviam sido formatados pela escola da aula. Colocavam nesses produtos o rótulo de “práticas inovadoras”. Como se no contexto do instrucionismo pudesse acontecer… inovação.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLXIII)

Betim, 29 de outubro de 2040

Nos idos de vinte, uma amiga, convidada para integrar o júri de uma banca de doutorado, comentava a leitura de uma tese:

“O objeto de estudo é “engajamento docente nas metodologias ativas”.Agora, que passei a ver tudo com um olhaer crítico, até sinto vergonha. Sou professora universitária e vejo que os meus colegas da universidade superficializam o conceito e a prática das “metodologias ativas”.

Pensam que chegar com um plano pronto, com atividades em que o aluno só vai repetir orientações e instruções, é fazer o aluno ser ativo. E dizem que adotaram o ensino híbrido”.

Uma notícia de jornal desse tempo tinha por título: A cilada do ensino híbrido foi montada no meio da crise sanitária da Covid-19”. Tratava-se, efetivamente, de mais uma cilada, de uma fuga para a frente de professaurios e mercadores, uma armadilha em que caíram educadores ingênuos e que uma administração escolar conservadora usou para manter o status quo. Para vos “explicar” o processo, ouso fazer um breve bosquejo histórico, esperando não abusar da vossa paciência.

A perplexidade da minha amiga universitária se justificava. Ao longo de um século, três rupturas paradigmáticas se sucederam, em vertiginoso ritmo, sem que a universidade disso se desse conta. Em meados do século XX, após décadas de adaptação de teorias existentes a realidades que se transformaram, Thomas Kuhn, falava-nos de um paradigma emergente. No início do século XXI, aceleradas mudanças sociais, a pesquisa no campo das neurociências, a reificação da inteligência artificial, a sutil convergência entre a teoria da complexidade e a produção científica radicada no paradigma da comunicação, exigiam o reconhecimento da necessidade de operar profundas e urgentes rupturas paradigmáticas, no campo da educação.

Perdendo o monopólio do saber, apenas mantendo o da creditação, a universidade desenvolvia práticas de natureza meritocrática, burocrática, excludente. Com referência ao paradigma da comunicação, a produção científica dizia-nos que se anunciava a aprendizagem centrada na relação. Mas, alheadas da dimensão científica, as faculdades de pedagogia estiolavam na arte da aula, recriavam rituais de difícil erradicação, abriam caminho para a adoção de paliativos do modelo instrucionista. Um desses paliativos dava pelo nome de “ensino híbrido”, ou “educação híbrida”.

O sistema de ensino era pródigo em fraudes. O “híbrido” chegava para conservar o instrucionismo disfarçado de “inovação”, para que empresas “híbridas” lucrassem e os áulicos enriquecessem. Se os “híbridos” atingissem os seus intentos, mais uma vez, a escola da aula se enfeitaria de paliativos. E o genocídio educacional se prolongaria, sem fim à vista.

A minha amiga se dava conta de que a universidade já havia importado a famigerada “aula invertida” e vivia na ilusão da ensinagem. Sucediam-se as teses sobre o paradigma da comunicação. Paradoxalmente, os seus autores continuavam reproduzindo práticas fósseis, incompatíveis com o paradigma que, teoricamente, tinham adotado. Recomendavam a leitura das suas teses, incitavam os futuros professores a desenvolver a “autonomia do aluno”, o “protagonismo juvenil”, a fazer “ensino híbrido”, que diziam ser uma “inovação”. Mas, não passavam de inovadores não-praticantes

A universidade era a matriz e o exemplo. Não se surpreendesse, pois, a minha amiga com o fato de a quase totalidade das escolas radicar as suas práticas no paradigma da instrução, no que poderíamos, então, designar por proto-história da educação.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLXII)

Palmeira das Missões, 28 de outubro de 2040

No final de outubro do fatídico ano de 2020, assistíamos aos apelos da chanceler alemã. Ela pedia aos alemães que ficassem em casa, perante aumento dos casos de covid-19. O governo italiano encerrava teatros e cinemas e obrigava bares e restaurantes a fechar às seis da tarde. Um novo surto colocava a Bélgica no limite de capacidade dos cuidados intensivos. A Espanha preparava-se para declarar estado de emergência. Em Portugal, dezenas de escolas voltavam a fechar. Mas, o seu ministro da educação insistia num perigoso disparate:

“Tudo faremos para manter ensino nas escolas”.

Insistia em manter os jovens dentro dos prédios a que, nesse tempo, chamavam “escolas”. Relançava a ensinagem presencial até ao fim do ano letivo e a continuidade do inútil “EstudoEmCasa” televisionado. Justificando o injustificável, acrescentava que “as escolas preparavam formas de funcionamento, encarando a necessidade de encerramento parcial ou total”.

Já me habituara aos costumeiros disparates ministeriais. Aquilo que me surpreendia e desgostava era ver envolvido nessa farsa um secretário de estado, que se formara em ciências da educação. Num artigo de jornal, ele legitimava o ministerial procedimento:

“Há máscaras acessíveis. Dominamos melhor plataformas e técnicas de ensino. A cibersegurança é maior. E já sabemos que pode ser necessário fechar, como sabemos que, para muitos, a distância não funciona.”

Este secretário estudara sociologia, psicologia e história da educação,  epistemologia e currículo… sabia que a ensinagem “não funcionava”, nem presencialmente, nem à distância. Sabia que a crise não era, essencialmente, sanitária – era uma crise de natureza intelectual e moral.

Se me compreendiam atitudes ignorantes de políticos, eu não conseguia compreender o obsceno silêncio dos cientistas da educação. Esse insuportável silêncio contribuía para adiar urgentes mudanças. Tardava o dia em que o maléfico sistema de ensinagem viria a ser substituído por outro, de aprendizagem.

O sociólogo Giddens havia dito que, lamentavelmente, eram muitas as tensões que justificavam os “fundamentalistas que afirmavam: só há um modo de vida válido, e os demais têm de sair da frente”. Por essa altura, recebia mensagens, que, aqui, reproduzo. A Adriana, educadora de infância, perguntava:

“Pelo que o senhor falou nas lives, vi que estou dando aulas e poucos alunos estão aprendendo. O que realmente gostaria é que todos aprendessem. O que devo fazer para que meus alunos aprendam?

Assim respondi:

“Foi essa a pergunta que três professores fizeram, há 44 anos, numa escolinha portuguesa, a primeira a concretizar a proposta escolanovista… em equipe. Também poderás encontrar as tuas respostas… em equipe”.

O que eu pretendia dizer à Adriana era que a profissão de professor não deveria um ato solitário, mas um agir solidário.

Em outro e-mail, a Raquel, professora da rede pública, assim dizia:

“Sofro de sérias inquietações acerca de como a escola é tão opressora para as crianças, sendo que deveria ser um espaço de libertação. Me formei em pedagogia e não sinto que tive em minha formação a preparação necessária para a escola atual. A minha ideia é realizar a quebra de paradigmas, afirmar que, na nova escola, não é preciso dar aula. Humildemente, peço um pouquinho da vossa sabedoria, para dar luz nas minhas ideias, tão confusas. Afinal, eu também ainda sou uma professora que dá aulas. Eu poderia ser a sua aprendiz?”

Respondi com uma pergunta:

“Raquel, poderás ajudar-me a aprender? Poderei ser teu aprendiz?”

 

 

Por: José Pacheco

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