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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLI)

Pirassununga, 17 de outubro de 2040

Perguntaram-me por que decidi ser professor. Respondi que quem decide ser professor o faz por amor, ou por vingança e que fui para professor por vingança, acabando por ficar por amor.

Fiquei, porque consegui vingar-me. Jurei que nenhum aluno meu passaria pelas situações de humilhação que eu passei, quando criança. E que vingaria os meus amigos de infância que, em tempo de ditadura, viram negado o direito à educação e morreram de morte matada, antes dos trinta.

Nos tempos da ditadura de Salazar, não se perdia tempo com reuniões. Na distribuição de horários, a antiguidade era um posto. Depois, com o advento da democracia, tudo ficou mais ritualizado. Os burocratas do ministério passaram a impor uma agenda e as escolas cumpriam-na, em penosas e inúteis reuniões. Ressalvadas raras excepções, não se via que algo melhorasse nas escolas, por via das reuniões de “conselho escolar”. Apenas se cumpria ordens “superiores”… como no tempo da ditadura.

Quando o Francisco foi para professor, tudo se resolvia em menos de um piscar de olhos. Havia coerência entre uma preparação solitária da prática e uma prática solitária. Não se copiava o projeto da escola do lado, não tinham sido inventados planejamentos, THD, relatórios, nem a Ritalina. Ainda não se havia enfeitado a mesmice da aula com inúteis acessórios. Mas havia coisas que não mudavam. Ano após ano, o ministério nomeava mais algumas inúteis comissões, lançava mais alguns inúteis projetos, publicava obsoletos decretos.

E os professores se desgastavam em inúteis exercícios burocráticos, dentro da normalidade de uma prática servil. Após o cumprimento formal das tarefas, que abriam o chamado “ano letivo”, cada professor ia fazer pela vida, tão sozinho quanto antes estava, receoso de avaliações, solitariamente exposto a humilhações sofridas de alunos, pais e “superiores”

O Francisco era um excelente professor, mas ocupava um dos últimos lugares da lista graduada. No primeiro concurso, apenas conseguiu um “horário de quatro horas” numa escola bem longe de casa. No ano seguinte, um “meio horário”. No terceiro ano, trabalhou em três escolas, para “completar horário”. O magro salário mal dava para a gasolina. Mas sempre eram mais uns dias de tempo de serviço… Ouçamo-lo:

“Não havia condições para se fazer as coisas como deveria ser. Os meus colegas mais novos queixavam-se de que aqueles que tinham horário incompleto trabalhavam bem mais do que os efetivos e que os efetivos ganhavam o dobro dos contratados. E que era cada um por si”.

Na primeira escola dita pública onde foi colocado, aconteceu de se ter sentado na “cadeira do senhor diretor”. O dito cujo irrompeu pela sala dos professores em altos berros: Bem o avisou a servente: “Você +e novo aqui. Ponha-se no seu lugar!” O professor Francisco optou por não “se pôr no seu lugar”. E passou a sofrer a perseguição do diretor e da sua arrogante esposa.

Cumprido o horário na escola particular e após uma longa viagem, chegou à escola do senhor diretor, bem por altura da hora do almoço. Apesar de só dispor de trinta minutos para almoçar, foi para o último lugar da fila do refeitório. Quando estava a chegar ao balcão, a mulher do diretor furou a fila, colocou-se na sua frente. O Francisco manifestou desagrado. A mulher do diretor fingiu não o escutar. E disparou:

“Ouça lá! Você Sabe com quem está a falar?”

Foi a gota de água! O Francisco confessava “viver em desgosto”. Gostaria de ser professor, mas recusava participar do “salve-se quem puder”. Já não deu a primeira aula da tarde, pediu demissão.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCL)

São Carlos, 16 de outubro de 2040

Estávamos no final dos anos setenta. Os nossos alunos andavam envolvidos numa pesquisa, procurando saber por que morriam os peixes do rio e o que seria a poluição, uma palavra que começava a aparecer nos livros e na comunicação social. Concluíram que as fábricas lançavam veneno nas águas. E o jornal da escola do mês de maio de 1978, abria com uma denúncia de degradação ambiental.

Sabendo da tensão, que se vivia numa terra, que nem estava no mapa, e de que os donos das fábricas destilavam ameaças, a televisão procurou a Escola da Ponte. Passamos a constar do “mapa da inovação” e eu acabei prefeito da cidade.

Numa manhã de sábado, a população se reuniu nos botecos e nas casas de quem possuía aparelho de televisão. Quando a reportagem apareceu nas telas da TV, não faltaram as manifestações de júbilo:

“Olha, ali, o teu filho, ó Miquelina! Olha, ali, o nosso rio! O filho do Armindo está a falar! E como ele fala tão bem!”

Perante a euforia, eu fiquei inquieto. Todo o país assistia à reportagem, tomava conhecimento de um projeto, que viria a ser uma das maiores referências em educação. Os “coronéis” locais também estariam a ver a reportagem. E não iriam gostar mesmo nada do que viam.

Na manhã de domingo, com as crianças, fui alimentar os animais, que a escola acolhia e amorosamente cuidava. Por toda a parte, do lar à igreja, da praça ao botequim, só se ouvia falar da reportagem do dia anterior.

Na segunda-feira, quando me dirigia para a escola, não escutei os risos habituais, só lancinantes gritos. Juntei as minhas lágrimas ao choro convulsivo das crianças, quando os meus olhos presenciaram o horror instalado em redor da escola. No lugar onde, antes, havia um “Hospital dos Animais” havia pele rasgada, carne dilacerada, terra ensopada em sangue. E, no muro da escola, com o sangue de inocentes vítimas, estava escrito: “Morte ao Professor”.

Quem leu o livro “A escola com que sempre sonhei” poderá ter ficado com uma representação mítica da Escola da Ponte. O meu amigo Rubem viu-a com olhos transbordantes de sonho e, poeticamente, a divulgou. Mas, a história dessa escola também foi feita de sofrimento. A Ponte provou que utopias são realizáveis. E tudo aconteceu em condições semelhantes àquelas que encontro na minha errância pelas escolas do Brasil.

Na década de setenta, a Ponte resistia no limiar da sobrevivência. Depois da ruptura paradigmática nela operada, ninguém poderia negar a possibilidade de transformar crianças em pessoas sábias e felizes. Porém, que fique bem claro: na Ponte, descobrimos uma forma; não inventámos uma fórmula.

Faço este reparo, porque venho encontrando, um pouco por todo o Brasil, reinterpretações críticas da Ponte, mas também deparo com a “vertigem” do modismo e detecto indícios de um fenómeno que o Júlio denominou de “pontifilia”. Urge obstar a que o mito se instale. A Ponte é mais resultado de transpiração do que de inspiração. Para que o seu projeto possa ser útil, será necessário recorrer a um exercício que revele o reverso de uma escola considerada de sucesso.

Assim como a Lua tem o seu lado oculto, também a Ponte tem bastidores que importa expor, para deixar ver as entranhas de um projeto humano construído por imperfeitos seres. Quem acredita ser fácil manter a união de uma equipa, ou resistir à maldade que se abate sobre quem ousa fazer diferente, ilude-se. Os projetos são fruto da resiliência. Por isso, me proponho falar das fragilidades de uma escola feita de sangue, suor e lágrimas. Falei-vos do sangue. Poderei falar-vos do suor e das lágrimas… se quiserdes que fale.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXLIX)

Porto Ferreira, 15 de outubro de 2040

No outubro de 2020, a Internet foi invadida por sistemas e plataformas de ensinagem, e o mercado da educação ganhou novo fôlego. Parecia que a erradicação do instrucionismo iria ser, mais uma vez, adiada. Foi, então, que mais um sedutor modismo pedagógico assumiu protagonismo. Vindo do norte anglo-saxônico – mais uma vez! – o “híbrido” tomou de assalto o digital.

Entretanto, recebi inúmeros pedidos deste tipo:

“Professor Pacheco, poderá explicar-me o “Método da Ponte”? Quer dar cursos sobre o seu método?” – foram às dezenas os convites com compromessas de vil metal. Com gentileza, enjeitei os amáveis convites, recusei transforar-me em mercador de paliativos educacionais. Mas houve quem utilizasse o meu nome, para ganhar muito dinheiro. Soube, mais tarde, que “professores do ano e de nota 10” (ridículas criaturas!), áulicos universitários saídos das catacumbas da educação do século XIX e até educadores que eu acreditava serem honestos, se juntaram aos “abutres”.

O cenário da continuação da tragédia instrucionista estava montado. Empresas e fundações patrocinavam generosamente oorganizações consideradas inovadoras – que de inovadoras nada tinham – lideradas por titulares de cursos de administração de empresas e por técnicos de Marketing, que apenas visavam lucro, explorando a ignorância e a ingenuidade pedagógica.

Consultei a lista de palestrantes de “lives” promovidas por essas empresas. A curiosidade me levou à consulta do currículum vitae desses improvisados e falsos “especialistas” em educação. Eram especialistas em Administração, Gestão de Empresas, Design de Produto, Publicidade e Propaganda, Informática, Direito, Finanças, Varejo e Serviços, Ciências do Consumo Aplicadas, Educação Executiva…

Proliferavam “inovações” na Internet. Psicólogos protagonizavam “lives” de autoajuda. Médicos davam formação sobre “neuroeducação em sala de aula”. Economistas introduziam o “e-learning em sala de aula”. Filósofos discorriam sobre “computação ubíqua em sala de aula”. Comunicadores principescamente pagos proferiam palestras sobre “inovação”, recuperando pedagogias fósseis, como a do “aluno no centro do processo de aprendizagem”. E os professores as reproduziam em situações de ensinagem… em sala de aula.

Um sindicato atento às vorazes diligências de “grupos abutres de educação à distância” (sic) lançava avisos:

Em tempos de crise, como é o caso dessa pandemia que estamos vivendo, podem aparecer alguns, tentando se aproveitar do desespero das escolas, para vender (…) Este é um alerta, que nós temos a obrigação de fazer, pois as informações e todas as pesquisas que essas pessoas usam, para tentar convencer os mantenedores a comprar seus serviços (…)”.

No distante 2020, os “híbridos” seduziam a administração educacional e secretarias de educação compravam “gato por lebre”. Numa economia de mercado, o direito à educação estava transformado numa mercadoria. Alunos transformados em “monstrinhos de tela”, consumiam currículo prescrito, como cobaias de burocratas e de aprendizes de feiticeiro, que usurpavam espaços onde deveria acontecer aprendizagem.

Iríamos esperar mais um século pela erradicação da escola da sala de aula? Em parte, foi o que aconteceu, mas a parte saudável do sistema resistiu. Depois de os abutres se terem saciado, outras aves – aquelas de que vos falei nas cartinhas do início do século – movidas pelo Amor, que sempre estivera presente no canto das almas sensíveis, fizeram ouvir o seu canto.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXLVIII)

Três Marias, 14 de outubro de 2040

In illo tempore… encontrei um modo de não desesperançar. Fui plantar árvores no “Jardim do Éden” e nele concebi um santuário para os pássaros. Porém, não voltei às personificações, como havia feito no “Para Alice, com Amor”. Deixei essa tarefa para quem sabia mais de pássaros do que este vosso avô.

O amigo Tuck era um sábio observador dos pássaros e nos deliciava com belas descrições dos hábitos de alados seres, enquanto se mantinha atento aos maus hábitos de desumanos seres. Guardei essas observações nuns ficheiros que, se quiserdes, vos enviarei. Nelas, o Tuck religou ornitologia e poesia. Menos poéticas, ainda que justas, eram as considerações do meu Mestre de Atibaia acerca dos crimes praticados pelo instrucionismo. Eis alguns:

“Não permitir que a Constituição seja cumprida. Dar a ideia de que “é na escola que se aprende”. Isso talvez explique as presepadas de quem “já saiu da escola” e esqueceu que devemos continuar aprendendo/pesquisando até a morte (quiçá após ela também). Ensinar que só se aprende estando com quem tem a mesma idade. Poucas coisas são tão absurdas quanto isso. Por mais que existam fases da vida, isso passa longe de idades confinadas e de que alguém de 60 não possa aprender com alguém de 15, que crianças de 13 não interagem com os “pequenos” de 8. (Muito do bullying inclusive nasce aqui, pela escola ter uma dificuldade imensa em viver a diferença).

Inventar a figura da “professora solitária” com seus 40. Não conheço uma pessoa no mundo (fora “gestores políticos” e empresários) que defenda isso.

Não saber diferenciar ensino de aprendizagem, além de ter toda uma estrutura formativa para quem quer ENSINAR, mas quase nada sobre COMO SE APRENDE. O resultado é massificação: quanto mais alunos couberem numa sala melhor, é a mesma lógica do ônibus lotado, com um problema, nessa educação, o busão tem o tamanho de uma moto, com a quantidade de um sanfonado e vai derrubando e atropelando pelo caminho.

Dividir os TEMPOS por “matéria” e ainda dar um INTERVALO. Como se o intervalo fosse o período ‘onde não se aprende’. A aprendizagem se faz na relação, e em sala de aula, a relação é substituída por transmissão.

Adotar o ASSISTIR como principal ação. Assistir aula é como assistir TV. Filme alunos assistindo aula… e depois filme alunos pesquisando sobre o que lhes interessa. Vai entender esse crime rapidinho.

Separar a escola da família. Um educador tem sua função. Uma mãe tem a sua. Uma diretora tem a sua. Uma criança tem a sua. E, ainda assim, todos são escola. A ideia de que escola é só quem trabalha lá, ou pior, que é o conjunto de tijolos revestido com tinta é um crime.

Formar baseado em teoria apenas. A formação de professores hoje é quase uma total abstração. Imagine se um médico se formasse da mesma forma. A formação é toda pautada em instrução teórica, e distante do “aprender com”. É claro que vai dar errado na outra ponta.

Infantilização dos educadores, bestialização das crianças e coisificação humana. Achar que para criança aprender você precisa virar do avesso, dar piruetas e tratar a criança feito bocó. Achar que para “ensinar” é preciso do “Cantinho da Professorinha Corujinha”, do EVAzinho, do Grupo de Atividades Prontas… ou simplesmente, como fazem alguns, de achar que todos aprendem a mesma coisa, no mesmo tempo e da mesma forma”.

O Tuck era sábio. E partilhava a sua sabedoria com aqueles que, como ele, tomando consciência dos crimes que uma administração educacional fora-da-lei praticava, recolocaram as escolas dentro da lei.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXLVII)

Belém, 13 de outubro de 2040

No 13 de outubro de há vinte anos, como era tradição, o Santuário de Fátima recebeu muitos peregrinos. Em conformidade com o previsto no plano de contingência, quando foi atingido o número de romeiros considerado como aglomeração sem potencial de contágio, o acesso ao recinto de orações foi bloqueado.

Entretanto, no Brasil, vídeos publicados na Internet mostravam pessoas se empurrando, uma multidão competindo num corpo-a-corpo consumista, para entrar numa loja, recebida por funcionários sem máscaras protetoras. Alertadas as autoridades, a polícia bloqueou o acesso à loja.

O estabelecimento foi notificado por não cumprir regras previstas de distanciamento social pela OMS (Organização Mundial da Saúde). Mas o mal já estava feito. Mais algumas vidas se perderiam, inutilmente, estupidamente. Indignado, um professor assim se manifestava:

“É uma orgia de irresponsabilidade! Uma loucura! Um crime!”

Respondi ao seu e-mail com uma pergunta apenas:

“Caro colega, compreendo a sua indignação. Mas qual é a tua parte de responsabilidade nesse e em outros crimes?”

O professor pareceu não ter entendido. Marcamos um zoom e dirigi-lhe outras perguntas:

“A educação que dás aos teus filhos, a aula que tu dás na escola, a educação que a sociedade apoia e o governo impõe, contribuem para formar seres humanos responsáveis, autônomos, solidários?”

Disse-lhe que, na Ponte de meados dos anos setenta, após termos definido uma matriz axiológica, buscamos modos de desenvolver três valores assumidos: a responsabilidade, a autonomia, a solidariedade. Seria indispensável interrogar as nossas práticas, saber por que fazíamos o que fazíamos e do modo como o fazíamos.

Dessas interpelações resultaram projetos de mudança escolar e social. Cuidamos da pessoa do professor, para que se pudesse ver na dignidade de pessoa humana e visse os outros educadores como pessoas. Os professores assumiram responsabilidade individual pelos atos do seu coletivo, reelaborando a sua cultura pessoal e profissional.

Os projetos educacionais careciam de um novo sistema ético, de uma matriz axiológica baseada no saber cuidar, no conviver com a diversidade. Bastou que os professores assumissem um compromisso ético com a educação, questionando velhas teorias e obsoletas práticas. Concebemos uma verdadeira escola pública, que a todos acolhia e a cada qual dava oportunidades de ser, de aprender e de aprender a conviver.

Em 2020, quase meio século decorrido, a autonomia, a responsabilidade e a solidariedade eram quotidianamente exercitadas na Ponte. Mas, em outros lugares, o modelo instrucionista continuava a provocar baixos índices de desenvolvimento, ignorância, corrupção intelectual e moral. Esse modelo educacional era responsável pela irresponsabilidade de multidões e dos donos de estabelecimentos comerciais, que provocavam criminosas aglomerações, em tempo de pandemia.

Nos projetos político-pedagógicos das escolas desse tempo, estava escrito que se faria dos alunos pessoas autônomas, responsáveis. Mas, a prática era a negação do projeto escrito. Na sala de aula, se fomentava heteronomia, dependência, submissão, obediência formal, irresponsabilidade, individualismo, competitividade negativa, corrupção intelectual e moral.

Em 2020, ainda havia salas de aula. Nem as propostas escolanovistas tinham sido experienciadas, como pretendia Claparède, já no início do século XX:

“É absurdo uma mesma aula para todos os alunos, como um mesmo número de sapatos para todos os pés”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXLVI)

Águas de São Pedro, 12 de outubro de 2040

A Educação Inclusiva não surgiu por acaso, nem era missão exclusiva da Escola. Nos idos de noventa, era produto de realidades educacionais de uma época, que exigia que abandonássemos estereótipos e preconceitos. Era preciso emitir juízos fundamentados, saber fazer silêncio “escutatório”, fundamento do reconhecimento do outro. Precisávamos rever nossa necessidade de desejar o outro conforme a nossa imagem do outro, respeitá-lo numa perspectiva não-narcísica, ou seja, aquela que respeita o outro, o não-eu, o diferente de mim, que defende a liberdade de ideias e crenças, como diria o Freud.

Esses eram, também, caminhos para a inclusão. Em meados dos anos noventa, logo após a Conferência de Salamanca, eu havia publicado um livro com esse título. Esse livrinho fora escrito a muitas mãos, pois a teoria passara pelo crivo de práxis coerentes, em escolas de quatro países, entre as quais a Escola da Ponte. Fomos escolhidos porque acolhíamos tudo o que outras escolas jogavam fora.

Muito antes da realização da Conferência, recebíamos visitantes ilustres, que se apresentavam como especialistas em “educação especial”. Perguntavam onde funcionava a sala de apoio dos “alunos especiais”. Os nossos jovens respondiam que não havia tal sala, que todos aprendiam com todos, em todas as salas. Partíamos do princípio de que todos os seres humanos eram especiais, todos possuíam dons, talentos, que urgia despertar e cultivar.

Mais tarde, outras perguntas surgiram, na Internet. Perguntas como esta, dirigida à Constança:

“Como são organizados os grupos de trabalho? E como foi que a Martinha, aluna com necessidades especiais, foi para o seu grupo?”

Assim respondeu a nossa aluna Tancinha, hoje, adulta e médica dedicada:

“Tentarei dar o meu melhor para responder à pergunta por si colocada, uma vez que já não frequento a Escola da Ponte e, com o passar dos anos, alterações devem ter sido feitas. Normalmente, os grupos eram constituídos por alunos de diferentes anos de escolaridade ou, então, com diferentes níveis de aprendizagem. Isto é, num grupo de quatro elementos, as idades poderiam ser diferentes. Ou, então, tendo a mesma idade, apenas havia um aluno com mais facilidade de aprendizagem em relação aos outros.

No início de cada ano. eram atribuídas cores aos alunos, para que fizessem o jogo da organização de grupos.  Vim a descobrir, mais tarde, que cada cor estava de acordo com as nossas capacidades cognitivas e espírito de entreajuda. Esta distribuição acontecia de forma a haver um equilíbrio entre grupos. Depois era-nos dado tempo (…) e tínhamos de respeitar certos critérios. A Martinha veio a formar o meu grupo de trabalho por minha escolha e dos restantes elementos, e fico muito contente por a ter aceite! Estudar com pessoas como a Martinha fez-me crescer muito e ver que ainda há muito para aprender quanto a essas pessoas maravilhosas.”

Nos idos de setenta e de oitenta, os professores da Ponte recorriam a práticas elementares, artesanais, quase sem consciência de que estavam a testar teoria. Guiava-os o amor pela infância e a intuição pedagógica, algo que qualquer professor possuía. Buscavam caminhos de a todos garantir o direito à educação.

Nessas práticas estava implícita a “inclusão”, um conceito que, na Conferência de Salamanca dos anos noventa, os especialistas iriam inventar e que decretos obscenos iriam deturpar. Em 2020, as teses sobre inclusão repousavam nos arquivos das universidades. Na prática, a inclusão era um “faz-de-conta”.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXLV)

Mogi Mirim, 11 de outubro de 2040

Em meados de outubro do distante 2020, o Brasil ultrapassava os cinco milhões de casos de covid-19 e registrava mais de cento e cinquenta mil óbitos causados pela pandemia. Quando a Europa pensava estar liberta da pandemia, eis que o vírus regressa em nova vaga e novas versões. Havia notícia de que, na cidade do Porto, muitos estudantes universitários tinham sido infetados. Governos apelavam ao “cumprimento de regras, para evitar situações dramáticas”. O governador de Nova York mandou fechar escolas“Eu não vou recomendar ou permitir que qualquer família mande seu filho para uma escola onde eu não mandaria os meus”.

Havia uma tendência crescente dos indicadores epidemiológicos. O plano para os próximos tempos assentava na responsabilidade individual. E em boas mãos estavam os conselhos que representavam as escolas de São Paulo, pois rejeitavam reabrir as escolas. Mas, uma mãe queixava-se de que o limite horário estabelecido pela prefeitura para a permanência das crianças nas unidades não atendia à demanda das famílias:

“Eu ainda moro perto da escola, mas, a maioria das famílias, vem de longe. São mães que demoram mais de uma hora de ônibus para chegar aqui com os filhos. Elas optaram pela unidade por ser próxima ao trabalho, como elas fariam com a opção de só deixar as crianças por duas horas?”

Famílias, escolas e sociedade permaneciam de costas voltadas, crentes de que escolas eram prédios. E, para minha (desagradável) surpresa, apercebi-me de que quase todos os educadores desconheciam as propostas do Lauro. Na década sessenta. Lauro de Oliveira Lima escrevia:

“A expressão “escola de comunidade” procura significar o desenquistamento isolacionista da escola tradicional. Escola, no futuro, será um centro comunitário propulsor das equilibrações sincrônicas e diacrônicas do grupo social a que serve. Não só a escola utilizará como instrumento “escolar” o equipamento coletivo, como a comunidade utilizará o local da escola como centro de atividade. […] a escola não se reduzirá a um lugar fixo murado.

Num primeiro rascunho do primeiro livro publicado no mundo sobre comunidades de aprendizagem – três décadas antes da proposta do Ramon – Lauro afirmava ser necessário:

Misturar adultos e adolescentes (…) usar a capacidade ociosa da escola (…) equipamentos coletivos (…) criação coletiva (…) verificar os tipos de atividades existentes na comunidade (…) escola de comunidade”.

No Rio de Janeiro, no outubro dos idos de vinte, as UTIs estavam cheias, mas aconteciam casamentos e shows pela cidade. A tragédia anunciada prolongava-se. E outras tragédias se sucediam, em tempos de incúria. À destruição do Pantanal e da Amazônia juntava-se um Incêndio na Chapada dos Veadeiros, que devastou a vegetação do Parque Nacional a da Área de Proteção Ambiental.

Nesse fatídico outubro, em protesto, em outro fogo se imolou uma jornalista russa: “Culpem a Rússia pela minha morte” – deixou escrito.

Irina suicidou-se, colocando-se em chamas, em frente a uma esquadra de polícia. O que levaria uma jovem a acabar com vida? Por que aumentava o número de casos de suicídio juvenil? Por quê o voyeurismo das redes sociais, que replicavam um vídeo, que mostrava Irina a incendiar-se e um homem a tentar apagar as chamas, perante resistência da jornalista, sentada num banco de jardim?

Pessoas fizeram uma vigília em memória de Irina, com um homem a segurar um cartaz que dizia “o Estado mata”. O coronavírus talvez viesse para mostrar que a sociedade estava doente, muito doente.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXLIV)

Ribeirão Bonito, 10 de outubro de 2040

Em outubro, já não eram apenas as escolas de samba, que adiavam aglomerações. Em São Paulo, o governador anunciava que o retorno à escola era opcional, tanto para as escolas quanto para os estudantes, e valia para as redes estadual, municipal e privada. E, em 2020, em municípios como Viçosa, nem sequer se optaria pelo regresso ao prédio da escola. A Secretaria Municipal de Educação apenas pretendia entregar materiais para trabalhos remotos, tanto para os alunos da educação infantil quanto para os do ensino fundamental.

Viçosa estava “na onda verde do Programa Minas Consciente e poderia alinhar-se ao governo do estado e aderir ao retorno gradativo” ao presencial, garantindo cuidados sanitários específicos. A secretaria aplicara um questionário junto às famílias e 70% dos pais eram contrários à retomada.

Havia gente consciente, nesse tempo de incúria. Mas, nesse outubro de 2020, enquanto o município de Viçosa salvaguardava a saúde e o direito à vida dos seus professores e alunos, decretos autorizavam aulas presenciais na rede privada de outros municípios.

Era deveras interessante a estratégia de Viçosa. Na área urbana, o material era disponibilizado em pontos de entrega, de forma a não gerar aglomeração. Na zona rural, era entregue nos pontos onde, antes da pandemia, o transporte apanhava os alunos para os levar ao prédio da escola. Viçosa apenas pecava por não ir mais além… ao encontro do pensamento de Anísio Teixeira, que recomendava: “fazer escolas nas proximidades das áreas residenciais, para que as crianças não precisassem andar muito para alcançá-las (…) atividades na biblioteca, nas quadras de esporte (…) reorganizando os tempos”.

Anísio sabia que a delimitação do território educativo não era apenas uma questão de natureza geográfica: “O estudante não é só da professora ou da escola, e sim da rede, da Cidade (…) em praças, clubes, cinemas, comércio local, teatro (…)”. E concluía: “o aumento do tempo de estudo deve vir acompanhado da ampliação do acesso dos estudantes aos espaços múltiplos para apropriação da cidade e de seus saberes”.

Não se tratava de deslocar a atividade escolar para outros espaços, escolarizando ainda mais a família e a sociedade, mas de desenvolver a percepção dos territórios como elementos educadores, por meio dos quais se aprendia, participando de transformações pessoais e sociais. Mas, a escola dos anos vinte deste século permanecia socialmente isolada, fundada em estranhos rituais, contraditórios hábitos, jamais questionados.

Por exemplo, nela havia hierarquia até no defecar e urinar. Por que razão, na escola da aula, se mantinha banheiros de alunos separados de banheiros de professores. Nos lares, haveria banheiro de pai separado de banheiro de filho? Quando visitava escolas, observava que o banheiro do aluno não tinha tampa no vaso, nem papel higiénico. O do professor já tinha tampa e papel e até espelho. O banheiro da direção tinha isso tudo e até ar-condicionado.

Em 2020, urgia um re-ligare família-sociedade-escola. Por que não considerar as escolas como espaços públicos, nodos de redes comunitárias, devolvendo as escolas às comunidades, na partilha da responsabilidade de educar?

Entre a escola, a habitação, a associação cultural, a biblioteca pública, o local de trabalho, seria necessário estabelecer uma corrente de interação humana capaz de dar sentido ao quotidiano das pessoas e, assim, influenciar positivamente as suas trajetórias de vida. O Mestre Lauro isso propunha, já na década de… sessenta.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXLIII)

Boa Esperança do Sul, 9 de outubro de 2040

Ainda mais umas palavrinhas sobre… inclusão. Em 2020, o MEC havia baixado mais um decreto. E os meus amigos da Fundação Síndrome de Down assim se manifestavam:

“A luta pela vida inclusiva das pessoas com deficiência pressupõe de modo indispensável a inclusão escolar, luta de décadas que encontrou ressonância na Convenção da ONU de 2006, na Constituição Federal de 1988, na Lei Brasileira de Inclusão. Não pode agora um decreto, o Decreto No.10.502 de 30.de setembro.2020, retroceder direitos duramente conquistados retomando a escola especial e as absurdas salas especiais nas escolas regulares. A Fundação Síndrome de Down repudia tal decisão”.

Nesses sombrios tempos, havia quem estivesse atento aos disparates “legais”. Num tempo feito de ignorâncias e medos, havia quem resistisse, quem denunciasse desgovernações. A administração educacional era hábil no recurso a regulamentação infralegal, para impedir que mudanças acontecessem. E, por decreto ou portaria, destruíam tentativas de melhoria do sistema.

Durante mais de duas décadas, muitos alunos “especiais” foram matriculados em “estabelecimentos regulares”, “incluídos” em turmas com número reduzido de alunos, ou os remeteram para o degredo de salas “especiais” Também lhes  ofereciam a alternativa de atendimento especializado, em contraturno. Tudo insuficiente e até mesmo inútil, porque, por mais cosmética que se pudesse fazer na escola da aula, ela nunca seria inclusiva.

Talvez os “especialistas” não tivessem lido a “Resolução da Conferência de Salamanca”. Ou, se a leram, não a entenderam. Seria possível fazer acontecer “inclusão”, se acontecessem mudanças efetivas na cultura humana, questionando a estrutura das formas de educação desse tempo. O desenvolvimento de atitudes de respeito, solidariedade e preservação da vida pressupunha escapar de formatações e superar visões fragmentárias.

A sala de aula era o dispositivo central da escola excludente, segregada do social e segregadora, separada da vida. A “crise” da escola instrucionista consistia, sobretudo, na dificuldade de lidar com a diversidade, com crianças e jovens excluídos, sem direito a um projeto de vida. A escola punia aqueles que já tinha punido! Escolas que não asseguravam uma base comum para percursos diferenciados, não faziam sentido para desfavorecidos. Eram guetos, quer de “especiais”, quer de “normais”, como Férrière as descrevia, já em 1920:

“A criança gosta de natureza, fecharam-na em casas; a criança gosta de criar, puseram-na a um trabalho sem sentido; a criança gosta de se mexer, condenaram-na à imobilidade; a criança gosta de falar, condenaram-na ao silêncio”.

O decreto de 2020 era um regresso ao passado, a medidas de política educacional anteriores à Conferência de Salamanca. Questionava direitos adquiridos, como aqueles que constam da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU e da Constituição Federal. O Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 4, que integrava a Agenda 2030 da ONU, previa que fosse assegurada educação inclusiva. A equidade, como princípio básico, requeria diferenciar estratégias para gerar inclusão. Requeria a participação dos “especiais” em espaços comuns de convívio, exatamente o oposto da proposta veiculada pelo decreto. Mas, o Brasil descumpria, ignorava compromissos internacionais. Ao abrir espaço para a volta das “escolas especiais”, se comprometia décadas de esforços para promover educação inclusiva.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCXLII)

Morro Grande, 8 de outubro de 2040

Alheei-me do frenético trânsito de São Paulo, para ouvir contar estórias. O motorista do táxi falou de fome e abandono, da sua infância no Nordeste. Sendo o mais velho de dez irmãos, foi empurrado da escola para o trabalho duro. Já adulto, aprendeu a ler, tirando dúvidas com os que partilhavam o jornal do botequim do bairro.

Até aqui, nada de novo, se pensarmos ser esta estória igual a tantas outras estórias de exclusão de negros, de negros quase-brancos e de brancos quase-negros. Mas, a certa altura do monólogo, parámos num semáforo. Um bando de meninos de rua mostrava habilidades malabaristas. O motorista comentou, num brasileiro que adapto para português de Portugal, com prejuízo da perda do ritmo e da doçura da fala:

“Veja o senhor ao que chegou este país! Estes meninos não deveriam estar na escola?”

Compreendi que aquela era uma pergunta retórica, pois nem sequer tive tempo para ensaiar a resposta.

“Mas eu imagino que tenham razões para não ir. E acredite que não será só por necessidade. Eles não gostam mesmo de ir à escola. A escola não lhes diz nada. Eu sei que é assim, porque o mesmo se passou comigo. Quando era da idade deles, empurraram-me para fora da escola. Mas eu também quis sair. Aprendi a ler por necessidade. Não foi a escola que me ensinou”.

E foi enunciando autores seus preferidos. Gosto eclético, que ia da literatura de cordel aos clássicos. Até que atirou nova pergunta retórica:

“O senhor sabe o que faz a minha mulher? Ela é professora! Quando nos casámos, ela quis tirar um curso. Só tinha um problema: ela não gostava de ler. Eu fiz um trato com ela. Ela passava a fazer as contas do meu serviço e eu ajudava-a a tirar o curso”.

Eu ia perguntar como tinha sido concretizado o contrato, mas não foi preciso, que a resposta sem pergunta veio de imediato:

“A minha mulher trazia os livros lá da faculdade, para eu ler. À noite, eu lia os livros. E explicava à minha mulher o que vinha nos livros. Ela fez as provas todas e ficou aprovada. Até recebeu um diploma! E, assim, fez o curso de professora”.

Esbocei um sorriso, entre o espanto e a admiração. E ele reatou a conversa, falando de autores que havia lido: Freinet, Montessori, Dewey, Piaget, Anísio…

Por estarmos a chegar ao nosso destino, rematou a conversa:

“Já vi que o senhor não deve ser da educação e para o senhor deve ser difícil compreender o que lhe vou dizer, porque são coisas da pedagogia… entendeu?”

Não retorqui. Eu deveria ter aspeto de “quem não era da educação”… e ele concluiu, dizendo:

“Quando li os livros do Paulo Freire, que é um educador do meu país de que o senhor talvez já tenha ouvido falar, é que eu entendi o mal que algumas escolas fazem a muitas crianças. E até me deu vontade de chorar”.

Talvez nunca aquele motorista venha a saber o quanto me comoveu a sua estória. Talvez nunca possa manifestar-lhe a minha gratidão, porque não o pude fazer, naquele momento. O nó que eu senti na garganta ameaçava desatar-se.

Volvidos trinta anos, quando a barca de sonhos chega ao seu último porto e se apronta para a derradeira viagem, começo a coabitar com um mistério a que não dou nome, algo cuja existência a minha razão sempre rejeitou. Naquele tempo, me perguntavam por que razão escolhi o Brasil como mátria, nos braços da qual partirei, creio que em breve. Respondia que foi nas terras do sul que encontrei resposta para uma pergunta peregrina: Será verdade que andam anjos pela Terra?

 

(Podereis encontrar esta estória no meu livrinho “Para os filhos dos filhos dos nossos filhos”. Com essa estória, a minha amiga Janaína compôs o último quadro de uma bela peça de teatro.)

 

Por: José Pacheco

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