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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXXXIV)

Pontinha, 14 de maio de 2043

Houve uma idade áurea da educação brasileira. Aquela que, tendo começado no tempo de Lourenço Filho e do desencarne de Eurípedes, se prolongou até meados da década de sessenta. Nesse período, o nome de Anísio esteve sempre ligado a iniciativas que, se uma ditadura as não detivesse, talvez a educação de um país nesse tempo chamado de “terceiro mundo” se alçasse a níveis de qualidade muito superiores aos do “primeiro”.

Estávamos em 1971. E, nesses tenebrosos tempos, a luz que Anísio lançou sobre a Educação do Brasil quase se extinguiu com o seu sepultamento. 

Assumindo as contradições da época em que viveu, defendeu a aplicação do conhecimento científico na educação. Contudo, o discípulo de Dewey considerava ser a educação uma arte, algo mais complexo do que uma ciência, estava crente de que a educação poderia atingir o nível das belas-artes, criticando a “aplicação precipitada ao processo educativo de experiências científicas que poderiam ter sido psicológicas, ou sociológicas, mas não eram educacionais, nem haviam sido devidamente transformadas ou elaboradas para a aplicação educacional.”

Anísio não imaginaria como o Brasil viria a sofrer com a invasão de modismos e o transplante de produtos de ciência de laboratório no chão da escola, mantendo-se intocável o essencial do velho modelo de escola: “o tratamento do aluno como algo abstrato a ser manipulado por critérios de classificação em grupos supostamente homogêneos, dando ao professor a falsa esperança de poder ensinar por meio de receitas, muitas das quais de científicas só tinham a etiqueta.” 

Como seria útil aos educadores dos ido a leitura das suas obras! Teriam concluído ser necessário suster reformismos e experimentalismos e enveredar pela via da concepção de uma nova construção social de aprendizagem.

Mas, o novo ministério havia optado pelo back to basics, por uma sobralização de origem anglo-saxônica, confundindo desenvolvimento educacional com a construção de prédios escolares, confundindo educação integral com a ampliação do tempo passado dentro desses prédios. E os professores estavam demasiado ocupados na luta pela sobrevivência, não lhes sobrava tempo para o estudo.  

Anísio não cabia no deserto de ideias dos idos de vinte e três. Quase nada mudara, desde a década de quarenta, quando o Mestre dizia ser aquele o “momento brasileiro”, o real divisor de águas entre as duas mentalidades que se defrontavam no Brasil: de um lado, os que, explícita ou implicitamente, não acreditam no Brasil, e de outro, os que acham que a nação se pode redimir pela educação.” 

Nada de novo se anunciava. A reelaboração da cultura de escola e da cultura pessoal e profissional dos professores não acontecia. Se no Portugal desse tempo, a formação de professores era uma mentira assente no desperdício de milhões de euros, a do sul tropical se esgotava em si mesma, era um repositório de receitas avulsas debitadas sobre auditórios passivos. Os formadores faziam apelo teórico à prática de “metodologias ativas”, mas a metodologia efetivamente utilizada na formação era a completa negação da teoria. 

A dimensão técnica nem era a mais importante, embora não devesse ser alienada. Num país onde a praga do analfabetismo ainda não fora erradicada, era inconcebível que houvesse quem não tivesse alguma vez trabalhado no chão de escola e orientasse formação em domínios tão sensíveis como o da alfabetização. Mas era o que acontecia, comprometendo esforços de mudança.

Felizmente, paralelamente ao “desnorte” instituído, algumas “suliações” aconteciam.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXXXIII)

Póvoa de Santo Adrião, 13 de maio de 2043

Concluirei nesta cartinha as referências ao Mestre Eurípedes.

Em 1904, o jornal “A Gazeta” comentava as “recentes reformas” na educação: 

A habilitação do professor vale mais que os pomposos programas oficiais, que atualmente fazem o orgulho dos docentes e a ignorância dos meninos.”

E questionava: 

Que remédios sociais podem ser apresentados como mais eficazes e prontos para dar-se um enérgico combate ao analfabetismo no Brasil?” 

Cento e vinte anos depois, o sistema de ensinagem continuava em demanda da “quadratura do círculo” da educação. 

Eurípedes ansiava por uma escola gratuita, acessível a toda a comunidade, rompendo com a ideia de um aluno passivo diante do conhecimento e submisso a uma disciplina rígida. Substituiu o ensino verbalista pela arte de observar e apreender o mundo e foi audaz, quando tentou coeducar. 

Onde já se vira moços e moças juntos?” – questionavam clérigos e barões. 

A imprensa da época, controlada pelos poderosos, não deu tréguas ao seu intento, que somente viria a concretizar-se, três décadas decorridas, na gestão do Capanema. 

Aboliu castigos e instituiu relacionamentos baseados no diálogo, contrariando “moldes pedagógicos” autoritários vigentes na época. Os alunos de Eurípedes praticavam observação e pesquisa na cidade e na natureza. Não recorria a provas, exames, para avaliar. Muito menos a classificações, a comparar pessoas. Providenciou a derrubada de paredes e daquelas que são internas, promovendo debates semanais abertos à comunidade. 

A sua proposta educacional só poderia ter por sina a contestação daqueles a quem interessa manter um sistema de ensinagem iníquo, que iria prolongar a sua agonia até à década de trinta do século XXI. 

Alcunharam de elitista o seu labor pedagógico, só porque recorria a “métodos dinâmicos de aprendizagem”. E a sua proposta teve a mesma sorte de outras tentativas de humanização, foi banida da história oficial da educação. O dogmatismo ideológico não consentia veleidades e a história da educação sempre foi feita de martírios silenciados. 

No Colégio Allan Kardec, os alunos praticavam Astronomia, o estudo da (e na) Natureza, em aulas-passeios, muito antes de Freinet. No ano em que desencarnou, escrevia o seu aluno Germano: 

“Conversávamos, estudávamos bons livros e admirávamos a natureza, admirávamos o voo dos insetos, o cantar dos pássaros e de preferência de um sabiá de laranjeira, que vinha pousar nos galhos baixos das árvores e encher o ar com sua melodia, esse era o predileto do professor.”

Aqueles jovens aprendiam a pensar e a questionar, como nos disse a Corina: “Eurípedes não queria alunos que obedecessem cegamente, mas que aprendessem a criticar, a questionar e a pensar.” 

Desencarnou no fatídico 1918, ano em que a febre amarela ceifou milhares de vidas no triângulo mineiro. Restaram os depoimentos dos seus discípulos. O seu aluno Tomás viria a ser professor do Roberto Crema, reitor da Universidade Internacional da Paz, estudioso da Normose, a patologia da normalidade.

Foi terreno fértil aquele que Eurípedes desbravou em Sacramento. O “Pestalozzi do Brasil” acreditava que escola poderia ser agente transformador da sociedade. Nos depoimentos dos seus alunos, apercebemo-nos de que transformou a escola, a partir de um novo conceito de criança e de aprendizagem, da modificação do papel do professor, da reconfiguração dos tempos e espaços pedagógicos, da reorganização escolar, da reelaboração cultural, que antecedeu, em mais de cem anos, o aparecimento de… comunidades de aprendizagem. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXXXII)

Chapim de Odivelas, 12 de maio de 2043

Conheci muitos professores que, sem abdicar do trabalho em sala de aula, operaram pedagógicos “milagres”. Porém, nada deixaram escrito e se foram para a aposentação. Um imenso patrimônio jaz no limbo das ciências da educação e apenas alguns estudos de caso conduzidos por teoricistas de ocasião logram revelá-lo. 

Outros, como a minha amiga Manuela, ergueram freinetianas ilhas de excelência acadêmica cercadas de instrucionismo por todos os lados menos por um: o MEM. Após dezenas de anos de intenso e profícuo labor, lá se foi, aposentada, e a sua sala de aula se afunda nas águas turvas do instrucionismo. 

Ainda havia aqueles que, como o meu amigo António, a duras penas, conseguiram “levar a água ao moinho”, arrastando professáurios para práticas inovadoras fundadas numa legalidade comedida, aquela que, prudentemente, consideravam ser possível. Chegada a hora da aposentadoria, os seus antigos colegas logo fizeram regressar a sua escola à modorra habitual, deitando por terra todo e qualquer vestígio de inovação.

Década após década, as escolas onde generosos e voluntariosos educadores aportaram e, de algum modo, inovaram viraram cemitérios de generosas intenções. Até ao dia em que nos cansamos de derrotas morais. 

Em breve, vos contarei estórias de educadores de malogrados intentos. Hoje, é chegada a vez de vos falar de um pioneiro de Educação Nova, que, à semelhança de muitos outros insignes mestres, foi ostracizado. Não fora a Dora e o Alessandro, e a memória de Eurípedes Barsanulfo se perderia 

Em 1907, um decreto determinava uma ampla reforma na educação mineira visando a efetiva concretização uma educação integral numa escola ativa (onde foi que eu já ouvi isto?). Já na segunda metade do século XIX, havia debates em torno da importância da mudança na educação. O Rui Barbosa, por exemplo, mostrou-se empenhado num projeto de modernização do país, propôs um sistema nacional de educação, desde o jardim da infância até a universidade, e defendia uma reestruturação completa do ensino, desde métodos até a construção de prédios. 

No tempo de Eurípedes, as tendências humanistas, a realista-científica, a positivista, as marginalizadas propostas anarco-sindicalistas e anarco-socialistas, e a génese do escolanovismo dominavam os debates.  E a sua influência se fazia sentir, mantinha atualidade nos idos de vinte, ainda que revestida de digitalidade e modismos neoliberais.

Cada qual, a seu modo, perspectivava uma educação integral, o desenvolvimento simultâneo de aspectos morais, intelectuais, físicos, espirituais, o respeito pelo pleno desenvolvimento da pessoa, a abolição de castigos e recompensas, a valorização da infância, e uma outra formação de professores. 

Eurípedes mobilizava a comunidade, para que ajudasse as famílias das crianças mais carentes. Havia muitas crianças negras matriculadas e vários professores negros compunham o quadro de professores da sua escola, num tempo em que os discursos racistas, com influências eugenistas, eram comuns e os negros eram marginalizados. 

Os dias de apresentações de teatro eram dias de festa. O amigo Bigheto me contou que os alunos do Colégio Allan Kardec confeccionavam belos cenários e toda a comunidade participava: 

Eurípedes incentivava a participação dos alunos em ações sociais e os jovens aprendiam a moral na prática comunitária. Em 1907, quando uma Maria instalava a Scola dei Bambini em comunidades carentes da Itália, um Eurípedes esboçava, em Sacramento o arcaboiço de uma nova construção social de aprendizagem. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXXX)

Campo de Ourique 11 de maio de 2043

No discurso sobre educação, a palavra utopia é, geralmente, sinônima de impossibilidade. Porém, utópico será algo que indica uma direção, que requer intencionalidade e ação. Como diria Quintana, “se as coisas são inatingíveis… ora! / Não é motivo para não querê-las”. 

Concretizar utopias – recriar vínculos, rever e re-olhar, reelaborar as práticas – reconfigura a metáfora do Mito de Sísifo, o “inédito viável” freiriano. A nova educação, que emergia do sonho de todos nós, deveria formar o cidadão democrático e participativo, sensível e solidário, fraterno e amoroso, o ser humano dotado de educação integral.

Nos idos de vinte, todas as teorias estavam escritas. Todas as experimentações, reformas e modas tinham sido ensaiadas. Importava renovar a denúncia da guetização da juventude, a par com o anúncio da possibilidade de uma aprendizagem participativa e transformadora. 

Não seria demasiado insistir na possibilidade de uma escola na qual os aprendizes aprendessem a lidar com um conhecimento mutante, na busca da integração das diversas dimensões do humano “para garantir condições de se atribuir novos sentidos à existência e atender a necessidade do engajamento do sujeito na construção do futuro”

O que se aprendia dentro de um edifício escolar, que não pudesse ser aprendido fora dos seus muros? 

O espaço de aprender era todo o espaço, tanto o universo físico como o virtual, era a vizinhança fraterna, caraterística das comunidades, que começavam a ganahar espaço na produção teórica, escasseando a prática. Dispúnhamos de protótipos de comunidades de aprendizagem, práticas de eco-sustentabilidade, de estímulo ao espírito inventivo. Adotávamos soluções novas, baseadas no princípio ético que nos diz que tudo o que for inovado o deva ser para benefício coletivo. 

O modelo escolar não era o único modelo de educação. A educação deveria do ser pensada mais a partir de uma rede de comunidades, de pessoas, do que a partir de instituições, de modo a que os processos de aprendizagem tivessem um papel social transformador. 

A escola era o equipamento social mais abundante. Feito um mapeamento do lugar, numa área de escassos quilômetros quadrados, encontrávamos meia dúzia de escolas. Mas as comunidades de aprendizagem não careciam da existência de um prédio escolar (a “pedagogia predial”, como o Lauro ironizava) e sim da utilização de prédios e espaços da comunidade, nos quais, os estudantes pudessem aprender e exercer cidadania, desfrutando dos seus direitos ou realizando seus deveres, para o bem de todos. 

Urgia que a escola não fosse uma interface com a realidade social, mas espaço onde ocorressem atos contributivos do desfazer do abismo entre a realidade escolar e outras realidades. Tampouco a aprendizagem dependeria apenas do professor, pois era necessária “uma tribo inteira para educar uma criança”. 

Urgia rever os conceitos de espaço e tempo de aprendizagem, para que os “paidagogos” não mais conduzissem crianças da comunidade para a escola, mas as libertassem da reclusão num gueto escolar e as devolvessemm à comunidade, na qual a escola se constituiria num nodo de uma rede de aprendizagem colaborativa.

As escolas poderiam constituir-se em espaços de cultura, lugares onde os saberes eruditos se casariam com saberes populares e tecnologias sociais dolugar, onde a transformação aconteceria na partilha de conhecimento produzido. Os prédios das escolas, seriam utilizados sem necessidade de entrada no horário-padrão de aula, ou de “ter falta”… por chegar atrasado.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXXIX)

Lisboa, 9 de maio de 2043 

Hoje, a bisavó Fátima completa oitenta e sete primaveras. Continua jovem e apaixonada pelas coisas da educação. Não vos esqueçais de lhe dar uns beijinhos de parabéns!

Por estes dias de maio, mas os da viagem a Portugal do maio de vinte e três, encontrei uma nova geração de educadores dispostos a reaprender a aprender e disponíveis para agir. Nesse tempo, era exponencial o crescimento dos chamados “centros de explicações” e “centros de estudo”. Também aumentava o número de greves, o “bournout”, o suicídio juvenil e o “ensino doméstico”. Até se permitia o ensino individual e havia empresas estrangeiras a ensinar, à distância, alunos portugueses.

As famílias dissidentes e que possuíam elevado poder de compra protegiam os seus filhos, pagando aquilo que a Constituição dizia ser direito de todos e, por essa razão, logicamente gratuito. A escola (dita) pública, criada para garantir equidade, reproduzia um modelo escolar (e de sociedade) excludente.

Surgiriam saudáveis reações à insustentável situação, que confirmaram o teor da epígrafe, que junto a esta cartinha. A amiga Magda havia dito que o diretor Luís era pessoa sensível à necessidade de transformar a construção social prussiana numa nova construção social. Pude confirmar que se tratava de um educador de raiz e de um ditoso diretor, pois havia no quadro da escola professores a quem se podia chamar professor. Gente inquieta, curiosa e que, apesar dos pesares, se disponibilizava para se reelaborar culturalmente. 

Naquela manhã de maio, feito o convite à mudança, foram muitas as perguntas dos professores: “Como se poderá concretizar essa utopia? Como se tornará permanente e sustentável? Qual a formação necessária? Será feita alguma sensibilização?”

Disse-lhes que não pretendia sensibilizar, ou convencer. Que acreditava terem tomado uma decisão ética e que, a partir daquele momento, eu era mais um elemento de uma equipe de projeto.

Comedido, cuidadoso, pois era experimentado nas andanças da direção, o Luís me ajudou a identificar zonas de autonomia relativa. Concebeu um plano de caraterísticas intermédias entre aquilo que a burocracia ministerial permitia e o que seria do domínio da utopia. E, enquanto o prudente Luís ia contornando burocráticas armadilhas, para criar círculos de aprendizagem na sua escola, eu tinha os meus estrábicos olhos pousados no Bairro do Loureiro e no antigo Cinema Europa. 

Nos anos que se seguiram ao encontro de Lisboa, a “Manuel da Maia” foi uma das cinco escolas de referência, que impulsionaram o aparecimento de novos e inovadores projetos. A saga pedagógica lusa acompanhou a evolução de projetos da outra margem do Atlântico, contrapondo ao “home schooling” anglo saxônico o “community schooling” latino. 

A educação passou a ser, efetivamente, da responsabilidade da tríade escola-família-sociedade. A Escola, o Poder Público e a Universidade convergiram num projeto de humanização. Os projetos das escolas se articularam com áreas como a Saúde Púbica e Ambiente e a Arte e Cultura. 

No maio de há vinte anos, foi dado o primeiro passo para a criação de protótipos de comunidade, a partir de uma organização social em círculos. Estes poderiam tomar a forma de círculo de aprendizagem de proximidade, a forma de “turma-piloto”; ou de círculo de vizinhança, iniciativa de famílias, contando com a adesão de professores e escolas. Prova provada de que ainda havia professores dispostos a tomar uma decisão ética, de boa gente que projetava “versão sua no futuro” e não desistia, quando encontrava “coisa difícil”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXXVIII)

Odivelas, 8 de maio de 2043

Ainda faltam dois dias para o meu nonagésimo segundo aniversário, mas recebi um presente antecipado. Vos reencaminho uma cartinha recebida da Isabel, para que compreendais que, contra ventos e marés, o vosso avô sempre manteve uma inabalável “fé pedagógica” e sempre acreditou nos professores. 

“Morada das Águias, maio de 2043,

Nada acontecia por acaso, somente por sincronicidade. Não foi por acaso, vinte anos atrás, quatro tutoras (Janaína, Isabel, Helke e Karoline) e a diretora Mariângela serem escolhidas para a “empreitada” de fazer acontecer, de fato, a Comunidade de Aprendizagem da Morada das Águias, o lugar de “voar mais alto”, como o avô professor escreveu em sua carta datada no dia 05 de abril de 2043. 

Naquele momento, fez revelações do que viria pela frente, o que iríamos ter que enfrentar. Será que ele possuía uma bola de cristal? Ou, simplesmente, a voz da experiência nos avisando e nos preparando para o que iríamos enfrentar?

Em sua carta, dizia: “A escola deixara de fazer sentido e eu me perguntava se faria sentido ficar parado, a ver passar tempos de mudança”. Como educadora, confesso que nem eu mesma ainda tinha dado conta, antes daquele tempo, de que muito precisava ser feito, para que a sala de aula tivesse realmente sentido, ou seja, fazer com que os alunos fossem sujeitos ativos no processo de ensino aprendizagem, assim como os educadores, compartilhando, aprendendo, ensinando e fazendo com que uma aprendizagem significativa acontecesse em comunidade, onde todos, inclusive pais e outros sujeitos participantes da comunidade ao redor também pudessem contribuir com conhecimentos adquiridos pela vida. 

Muitos educadores sentiam medo dessas inovações. Não estavam dispostos a escutar, a se desconstruir e reconstruir para que, enfim, o ensino fizesse sentido para o educando e a transformação acontecesse na vida de todos. 

Modificar dói, é um processo nada fácil. Para nós, não foi diferente, foi extremamente doloroso, mas, que depois foi ficando mais fácil. Tudo passou a fazer sentido, como se uma venda nos tivesse sido tirada dos olhos, enxergando uma evolução como autoras de um projeto e como seres humanos. Foi algo tão fantástico, que nos transformou.

Primeiramente, uma transformação interna, deixar de acreditar sermos as únicas detentoras do saber, de transferir o conhecimento para as gerações futuras, pelo simples fato de possuirmos a formação “correta”, “necessária” para tal.  

Mas, ensinar conteúdos “importantes” bastaria? O que eram conteúdos importantes? Seriam esses conteúdos para os educadores, ou para os educandos? Ensinar e não dar voz ao educando, limitarmo-nos aos livros didáticos bastaria? Foram essas e outras questões que nos permearam e fizeram parte da nossa prática, desde então.

Em segundo lugar, a transformação da prática de um modo que realmente funciona. Não continuar na mesmice, num processo de ensino para compor tabelas e gráficos que “mascaravam” a realidade. 

Passamos por essas transformações, para oferecer a todos as oportunidades que qualquer ser humano merece: ser respeitado e ser ouvido, como sujeito aprendente em sua essência, possuidor de um desejo incansável de aprender, de buscar sabedoria, de descobrir, criar, recriar.

Sentimos orgulho um profundo sentimento de gratidão por termos feito parte de uma inovação. É maravilhoso olhar para trás e ver o quanto esse processo educacional modificou o nosso ser e nos ajudou a transformar a vida das gerações futuras.”

Dizei, queridos netos, se não valeu apena acreditar nos professores!

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXXVII)

Porto, 7 de maio de 2043

Da Amarante de vinte e três, guardo a memória de dois reencontros. Com o amigo Zé Carlos, regado a vinho tinto e na companhia de uma inequecível Maria. E com a amiga Emilia, recordando aos novos professores aquilo que, meio século antes, lembrara aos velhos de então.

A Emília me despertou para a manifestação de uma neo-normose. Avisado, rabisquei uma espécie de “guia” com “instruções”, que constavam de uma lista de tarefas. As prmeiras seriam a definição de uma matriz axiológica e um enunciado de princípios, instrumentos-guias de múltiplos percursos. 

Não falávamos de uma fórmula, preceito ou modelo único. Na génese de uma nova construção social, os círculos refletiam caraterística comuns, diferentes de lugar para lugar. Depois, a federalização dos primeiros círculos daria origem aos primeiros protótipos de comunidade e deles emergiram redes de comunidades de aprendizagem. 

Era essa a sequência adotada. Entre os meses de maio e junho de vinte e três, as manhãs de sábado animavam-se de dúvidas colocadas pela prática, que conduziram à elaboração de um rol de caraterísticas comuns antecedido de algumas interrogações.

“O que determina a opção pelo círculo de aprendizagem? A hegemonia do modelo transmissivo poderá afetar, futuramente, o desenvolvimento de culturas locais? Onde têm origem os projetos de círculo? Quem são os integrantes de um círculo? Como se aprende em círculo de aprendizagem? Como sobrevivem? Que vantagens apresentam? Que potencialidades, adaptações, limites?”

Nesta cartinha, vos deixo mais alguns excertos da “proposta teórica” dos círculos de aprendizagem. Para que saibais, em teoria, era fácil concebê-los. Na prática – melhor dizendo: práxis – não o era, nem sempre o seu surgimento estava isento de conflitos. Também por isso, o vosso avô aconselhava que, desde o primeiro momento, fossem compostas coordenações provisórias. 

Estas coordenações funcionariam como equipes de preparação e instalação de órgaõs colegiados, escolhidos sociocraticamente e, sobretudo como círculo de estudos, que obedecesse a um critério básico: àquilo que possua potencial inovador não se deveria aplicar qualquer raciocínio dedutivo. A “proposta teórica” era ponto de partida para a identificação das características. Assim, poderia ser útil para o retomar da ideia da escola como espaço e tempo de uma formação com intensa relação com um desenvolvimento local sustentável. 

Um círculo agia como um ecossistema de relações e mudanças simbólicas, gerador de significado para a mudança pessoal e cultural. E, no pressuposto de que uma aprendizagem humanizadora teria início por volta do quinto mês de gestação, desde cedo deveria medrar o vínculo intergeracional entre avós e netos. Sobretudo, durante os primeiros mil dias de vida.  

No contexto de um círculo de aprendizagem, o professor-tutor estava situado nas descontinuidades e se prevenia para a eminência de reformulações do seu projeto pessoal. Firmava acordos tão precários como coerentes com o círculo cujos contornos de identidade social mais se aproximam da sua identidade pessoal. Era um profissional da educação ao serviço de um projeto, que uma comunidade adotara.

O seu projeto pessoal era um compromisso prudente com as possibilidades objetivas de um grupo aberto, no qual se resgatava criatividade marginalizada. 

Era tempo  de nos determos na observação do banal quotidiano dos professores de escolas comuns, para refazermos certezas. Isso exigiria um estudo profundo, uma aprendizagem do desaprender. 

Amanhã, disso vos falarei.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXXVI)

Amarante, 6 de maio de 2043

Quando o ministro Renato me perguntou se a inovação surgia sempre da periferia do sistema, respondi que, quase sempre, partia da escola e do centro do sistema. E que aquelas que escapavam a essa regra acabavam por ter os dias contados. Lamentavelmente, vi perder-se sonhos e energia em iniciativas que não cuidaram de negociar contratos e termos e assegurar a autonomia dos seus projetos.

Nesse tempo, amigos de longa data comentavam realidades contraditórias da escola pública e diziam haver “avanços”, repetindo o jargão de antanho: 

“A educação formal tem um poder e papel fundamental na construção de possibilidades equalizadores na vida social. Mas, por que não mudam as práticas? Por que mudam tão pouco? Por que as mudanças não perduram?” 

Numa manhã de sábado, conversando com educadores amarantinos, senti-me regressado aos anos setenta. Era gente capaz de operar mudança e, quiçá, também inovar. Mas pecavam pela timidez. Felizmente, as inquietações que por lá deixei permitiram que alguns corajosos se juntassem aos educadores dos encontros das manhãs de sábado.

Ao cabo de mais de cinquenta anos, eu não conseguia entender os medos, as hesitações, as fugas para a frente. E resolvi partir com aqueles que não fugiam. 

Perdoai que as próximas cartinhas assumam um tom, mais ou menos, didático. Enviar-vos-ei pedaços de texto partilhados com educadores que “faziam a hora e não esperavam acontecer”. Foram escritos “teóricos”, que viriam a constituir-se numa base de fundamentação científica do projeto das comunidades.

Referem-se à criação de círculos de aprendizagem. Em 2043, sabemos da importância desse movimento, mas, nos idos de vinte, o teoricismo reagiu com estranheza. E não faltou quem o detratasse. No meu jeito de pergunta e resposta, a construção teórica começou deste modo (citarei palavras minhas escritas na primeira década deste século):

“Como poderia surgir um círculo de aprendizagem?

Em auto-organização, a iniciativa poderia partir de pais, professores, gestores, administradores, tomando formas diversas, entre as quais a do círculo de proximidade e o círculo de vizinhança.

Por que aprender em círculo de aprendizagem?

Os círculos são dispositivos de formação criados na espontaneidade da iniciativa de atores-autores sociais locais, contrapontos das insuficiências de dispositivos de aprendizagem tradicionais. 

Qual a definição do conceito?

Assim como as ciências da educação justificam maior visibilidade social, o círculo merecerá o reconhecimento do seu potencial formativo.  Ainda são estruturas frágeis, semimarginais ao universo de contradições em que se transformou o sistema de ensinagem.

Aplicado à formação de professores, Vaalgarda e Norbeck definem-no como “grupo reduzido de pessoas que se reúne para discutir em conjunto, mas sem professor, uma matéria, de forma organizada”.

Os círculos de aprendizagem agem como dispositivos de análise das condições do exercício da profissão de professor. 

Um círculo de aprendizagem é um ecossistema de relações e mudanças simbólicas gerador de significado para a mudança pessoal e das práticas, em equipe. 

A aprendizagem acontece numa sobreposição de interrogações críticas inseridas em contextos coletivos, em comunidade, pois toda a relação formativa é uma relação entre culturas no desiderato da elaboração de uma cultura específica. 

A elaboração da cultura-círculo subordina-se a critérios como o da afinidade de interesses, a afetividade, a visão de mundo, valores comuns, proximidade territorial.”

(continua)

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXXV)

São Pedro da Cova, 5 de maio de 2043

No maio de há vinte anos, abrindo o primeiro dos “congressos de educação” de Amarante, o representante do ministério afirmou ser necessário encontrar respostas para os problemas do sistema de ensino, não de modo opinativo (o do “acho que”), mas fundamentadas. 

O mesmo havia sido dito pelo Ramon:

“A Educação precisa ser mais científica”.

Responsável pela pesquisa Includ-ed, o Ramon propunha uma educação democrática, baseada em evidências:

“O que estamos fazendo nas escolas ao redor do mundo tem melhorado efetivamente os resultados educativos de meninos e meninas? 

Há muitos projetos de inovação que são apresentados como teorias. Mas precisamos nos perguntar se estes resultados que nos apresentam têm melhorado a Educação em algum lugar. O que estamos fazendo em nossas escolas está validado cientificamente, ou não?”. 

Não irei tecer comentário sobre o mérito da proposta do Ramon. Apenas direi que se ela provou ser um equívoco, quando passou do teoricismo dos gabinetes da universidade para o praticismo do chão das escolas, quando o científico sucumbiu aos tratos de polé, que burocratas e formadores lhe infligiram. Na prática, a comunidade de aprendizagem foi uma caricatura dos admiráveis princípios de aprendizagem dialógica.

Como diria Piaget, a Educação era a única área das ciências humanos em que qualquer cidadão se achava com o direito de “dar palpite”. E os projetos provindos da universidade, quando baseadas em ocorrências perdiam validação científica – as chamadas “atuações educativas” eram aquelas que uma escola sem autonomia permitia praticar. 

Quando, na Ponte, elaboramos a nossa matriz axiológica, a palavra “Liberdade” se assumiu como valor central. Cedo chegamos à conclusão de que seria difícil operacionalizá-la. Ernst Gotsch dissera que Liberdade consistia em poder participar de processos de co-definição e de co-criação da vida. Aplicando o raciocínio ao contexto escolar, optamos por falar de… Autonomia.

Compreendemos que a autonomia era um conceito relaconal, o auto-reconhecimento pelo sujeito das suas inevitáveis dependências relativamente à multiplicidade e complexidade do mundo envolvente, bem como do seu mundo interior.

De imediato, concluímos que dando aula jamais poderíamos desenvolver autonomia. E lá se foi a sala de aula para o museu da pedagogia. O exercício da autonomia passou a conferir dignidade ao ato educativo, ao não considerar o aluno como mero objeto de ensinagem, mas como sujeito de aprendizagem. 

Se a liberdade era um fim, ela deveria ser, também, um meio privilegiado de educação. Mas o que era, concretamente, a liberdade de uma criança? 

Olivier Reboul dizia que a psicologia não poderia responder, porque não havia uma ciência da liberdade, dado que esta estava para além de todos os determinismos. A psicologia só poderia dar-indicações sobre as condições e os obstáculos de uma educação para a liberdade.

Urgia produzir uma “gramática da liberdade”, mas o seu ensino não passaria tanto por uma didática específica, quanto por uma gramática que explicasse as transformações. 

Concluirei com as sempre sábias palavras de Morin:

“O sujeito emerge ao mesmo tempo que o mundo, a partir da auto-organização, onde a autonomia, individualidade, complexidade, incerteza, ambiguidade se tornam quase caracteres existenciais.” 

Como corolário de tais reflexões, não me cansava de recomendar aos educadores, que participavam dos encontros de sábado, que, sem demora,  negociassem com os ministérios e adjacências contratos e termos de autonomia.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (MCCXXIV)

São Pedro da Afurada, 4 de maio de 2043

Na Primavera de vinte e três, a última das viagens “de trabalho” a Portugal foi cadinho de boas surpresas. No maio do meu último “ano do gato” (da lebre, ou coelho) e em pleno inferno astral, percorri o meu país e origem, a convite de uma nova geração.

Entre a década de sessenta e a de noventa, do velho “octógono pedagógico” e a “Associação PROF”, havia deixado pistas de mudança consubstanciada na ruptura paradigmática operada na Ponte. Naquela Primavera, lancei o último dos convites para a tomada de uma decisão ética, ofereci uma oportunidade de remissão de velhos pecados educacionais. Por lá deixei a indicação do meu velho e-mail e até o meu contato de celular (o (o telemóvel português). Semeei a derradeira expectativa e colhi múltiplas reações.

Em breve, delas vos falarei. A cada sementeira de dez contatos, um ou dois viriam a dar resposta. Valera a pena. Nem todos os pais enfermavam de normose. Nem todos os educadores sofriam de apatia. E o autoritarismo ministerial começava a dissipar-se.

No Brasil e em Portugal, algo novo despontava. Tomada consciência de que não havia apenas dificuldades de aprendizagem nos alunos, de que, também, havia dificuldades de ensinagem nos professores. 

Com o avanço da tecnologia comunicacional, a dimensão do espaço físico não impedia a conexão com o mundo. Pensando globalmente e agindo localmente, aproximávamo-nos do conceito e da prática de comunidade de aprendizagem. A Internet colmatava limitações de opção de vida, permitindo a prática do “home office” (que deveria chamar-se “home work”). 

A produção acadêmica, que tomava por objeto a comunidade de aprendizagem, consagrava o princípio do diálogo igualitário. Esse princípio estabelecia que, nos espaços de tomadas de decisão, a comunicação deveria basear-se na força dos argumentos e não em posições de poder. Mas, seria possível conciliar o “diálogo igualitário” com a manutenção de uma gestão de escola hierárquica? 

Quando se assumia que, em comunidade de aprendizagem, se buscava trabalhar a gestão da escola em uma perspectiva democrática, participativa e dialógica, por que não se substituía os órgãos de gestão unipessoais por colegiados? 

A gestão escolar não poderia ser democrática, através da introdução de um órgão de gestão paralelo aos órgãos de gestão tradicionais, ignorando que os diretores estavam sujeitos ao dever de obediência hierárquica.

Os ministérios haviam desvirtuado o projeto das “comunidades de aprendizagem” proposto pelo Agostinho, pelo Flexa, pelo Lauro. No modo como as assimilaram, as chamadas “atuações educativas de êxito”, nomeadamente a “tertúlia dialógica” e a “biblioteca tutorada”, poderiam ser consideradas inovações? 

Não o eram! A ministerial domesticação do ”Includ-ed” determinava uma noção reducionista, distorcida, do conceito do chamado “grupo interativo”. Não fazia sentido que a leitura de um livro, no contexto de uma “tertúlia literária dialógica” fosse remetida para o domínio da sala de aula. Nem se percebia por que razão a “biblioteca tutorada” era um espaço aberto em horário contrário ao da sala de aula. 

O que se sabia era que um princípio básico de Ramon Flexa, o “diálogo igualitário” deturpado introduzia novas regulações, comprometia o exercício da autonomia. Nas redes de protótipos de comunidades deparávamos com estes e muitos outros obstáculos à inovação. Conseguimos ultrapassá-los mediante a celebração de termos de autonomia (chamados contratos em Portugal).

Porque me pedistes, de autonomia vos falarei nas próximas cartinhas.

 

Por: José Pacheco

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