Arraial do Sana, 22 de dezembro de 2042
Hoje, deu-me para tirar o pó de uma pasta com capa de cartolina (naquele tempo, ainda não havia computadores), onde guardei manuscritos e cartas escritas em máquina de escrever. Depois, abri uma pasta guardada numa velha pen drive. Comparei as mensagens, que distavam quarenta anos uma da outra. E vo-las dou a conhecer.
“Estou aqui numa angústia enorme. O ensino está todo podre. As minhas colegas de trabalho simplesmente me deixaram de falar. Sinto que, por ser diferente, diferente na forma como trato as crianças, sou posta de lado, tratam mal as crianças à minha frente e até andam nos corredores a perguntar o que eu falo com as colegas. Não sei o que fazer… Estou mesmo decidida despedir-me. Tenho pena é das crianças.
Estou a sofrer boicotes frequentes por parte da Direção. Como podem os educadores realmente comprometidos com a justiça social avançar com os seus projetos numa instituição gerida por alguém que não apoia e até inviabiliza o processo de transformação concebido, ignora os chamamentos éticos e legais dos educadores e educandos?
Professor, a escola cheira mal, está purulenta. Presenciei, por várias vezes, lutas entre meninos, de socos e pontapés. São irritadiços, ansiosos, falam muito e falam alto, gritam e empurram colegas, derrubam materiais no chão, não dominam o uso simples de uma tesoura, exageram no tubo de cola, lambuzam tudo, deixam garrafas plásticas e biscoitos no chão após o intervalo, não sabem brincar. Os garotos só sabem jogar bola. As meninas, ficam umas com as outras, carregando bonecas e usando batons e esmaltes. Além de uma inquietude corporal constante, ou corpos flácidos e muito parados. dá uma tristeza imensa e a pergunta de sempre: o que fazer?
Recebi ameaças, corro risco de processo disciplinar. Numa reunião, fui muito desrespeitado. Algumas professoras das mais antigas e a diretora estão a inventar boatos e contestar o projeto, sem fundamentação. Hoje, levei um “cartão amarelo”. Fiquei preocupado porque tenho uma filha de 6 meses e um filho de 2 anos para alimentar… Provavelmente, serei mandado pra rua no final do ano. Não sei como vai ser…
Ontem, apareceram aqui de surpresa por causa de uma denúncia. Fui pressionado para me calar e entrar no sistema. O Diretor disse que projetos como o da Escola da Ponte não valem nada. Tentamos marcar uma audiência com o Diretor Regional. Estávamos em diálogo com a secretária dele, esperando, há semanas, uma resposta. E… nada! Já não sei o que fazer, estou sem dormir, doente, passando mal com toda essa situação. Eles não têm interesse na melhoria da qualidade da educação e estão burocratizando o processo.”
“Estou sendo muito desrespeitada. Mas o importante é que já tenho planos para o próximo ano. Não vou desistir tão fácil! E, como professora, não estarei refém de nenhum diretor moralmente fraco. Tive uma conversa com ele. Foi categórico. Disse que esta escola tinha que ser como as outras, que uma escola tem que ensinar só português e matemática… e pronto! Que o que os pais querem é que os filhos sejam doutores.
Um discurso arrogante e banal. Foi em vão minha conversa! É covarde, não tem opinião, deixa-se levar pela maré.”
Queridos netos, penso que não precisais que eu faça a moral da estória. Poderá parecer-vos inconcebível que tudo isso tenha podido acontecer, há vinte ou há sessenta anos, mas aconteceu. Então, creio que compreendereis por que decidimos arriscar sofrer represálias, defrontar lideranças tóxicas, corruptas. Vivíamos uma conjuntura educacional insustentável. Proibimo-nos de não agir.