Open post

Estórias da Velha Escola (VIII)

Porto, fevereiro de 2040

Queridos netos,

Pedi à Eliza que me emprestasse palavras para esta carta, excerto de um e-mail de há trinta anos:

Não imaginas a minha alegria de ser compelida a ler, mesmo quando os olhos se fecham involuntariamente e a cabeça e o corpo clamam por repouso.  Obrigada, muito obrigada, por reacender a chama no meu coração de educadora. As pessoas sempre fugiram de mim, quando eu era criança, por perguntar demais e nunca estar satisfeita.  Hoje, faço questão de responder a quaisquer perguntas que meus três filhos (e 200 alunos) façam. Converso muito com eles, não me canso de responder a tantas perguntas que fazem. E, quando não sei, o digo, e vamos procurar juntos. Com a minha filha viajo no tempo e no espaço. É incrível o elevado grau de entendimento e espiritualidade destas crianças, muito mais evidente do que o dos adultos! Adoro instigá-las a questionar sobre o que veem, leem, ou pretendem conhecer. É fantástico, maravilhoso o brilho nos seus olhos, quando fazem alguma conexão com algo que já sabiam, ou que finalmente faz sentido.

Era frustrante ver essa chama apagar-se, a cada ano que passavam, dentro e fora de um prédio a que chamavam “escola”, apesar de haver maravilhosos professores dentro dos prédios. Ou a ocupar seu tempo com banalidades e passatempos inúteis, em sites de relacionamento artificial, em joguinhos que as faziam esquecer da própria vida, consumindo o que um mundo materialista oferecia como sendo verdadeiro. Há trinta anos, a Eliza questionava professores e pais: o que estamos a fazer de nossas vidas?

Por saber que a chama se apaga e a memória dos homens é curta, reabri a gaveta onde guardo os recados dos alunos e folhas de diário. Encontrei alguns registos dos idos de 76: Todas as manhãs, o Arnaldo já chega cansado de duas horas de trabalho. Antes de rumar à escola, o Rui foi ao lavrador buscar o leite, levou os irmãos menores ao infantário, fez os recados da Dona Alice, arrumou a casa toda. O Carlos falta quase todas as tardes. O pai manda-o distribuir por toda a vila as folhas que dão notícia dos falecimentos da véspera, ou tem que carregar as alfaias dos funerais.

O tempo amareleceu as folhas dos cadernos onde as crianças deixaram ficar pedaços de vida. Aos nove anos, o Fernando disse o que queria ser quando fosse grande, escreveu os projetos do seu futuro, para sempre destruídos num estúpido acidente de bicicleta, que ele comprara com os primeiros salários de tecelão. Outros não chegaram a adultos, por se deixarem envolver nas teias que o tráfico tecia. Houve, também, quem abandonasse a escola e optasse pelas lições que a escola da vida oferecia. Outros diziam querer mudar de vida

E o que me diziam os pais?

O senhor professor que me diz? Eu acho que o Jorge já tem idade para ir com o tio para as feiras. Se não vai, só me apanha vícios, más companhias.

Ela já não anda aqui a fazer nada. E olhe que o que ela gosta mesmo é da costura. O senhor fecha os olhos… e eu nem me importo que me cortem no abono. Assim, sempre sei que ela está vigiada e já vai ganhando algum para a casa.

A Gracinda? Que quer, Professor Zé? A gente é pobre e ela já anda, vai para oito meses, na confecção do Senhor Carlos. Ele ainda não lhe pagou, mas diz que, se continuar assim, lhe dá dez contos por mês, não tarda nada. Mas, se ela disser alguma coisa, ainda vem parar-me à rua! Ela, agora, até faz sábados e, às vezes, até domingos. Mas que quer que lhe faça? Quando há uma encomenda urgente, também trabalha à noite, mas só quando lhe pedem...

E, assim, entre a escola e vida, se construíam e destruíam destinos.

Com amor,

O vosso avô José.

 

Por: José Pacheco

Open post

Estórias da Velha Escola (VII)

Guarulhos, maio de 2039

No tempo em que éreis jovens, o vosso avô cumpria a sua diáspora e era frequentador assíduo de aeroportos, como aquele de onde vos envia esta carta.

Guarulhos foi palco de peculiares episódios. Certamente, ser-vos-á difícil de acreditar, mas, naquele tempo, imperava o medo de atentados. Para voar, o vosso avô era revistado, obrigado a tirar o cinto e a despir o calçado. Descalço e segurando as calças, passava por uma máquina, rezando para que o alarme não soasse e fosse sujeito a desconfiados olhares e apalpações. A via sacra continuava na área de embarque, onde, raramente, os voos partiam no horário previsto de partir.

Certa vez, foi o Virgílio que se atrasou e perdeu o voo. Encontrei-o, esbaforido, inconsolável, quando tentava encontrar um voo alternativo:

O taxista não teve culpa. Hoje, voltaram as aulas e era o horário de entrada na escola. O trânsito estava infernal! Engarrafamentos…

E por que é que todas as escolas começam à mesma hora? – repliquei.

O Virgílio não tugiu, nem mugiu. Mas lançou-me um olhar assassino. E a conversa ficou por aí…

Ele era funcionário do ministério da educação. Já lhe havia dirigido essa pergunta, inúmeras vezes. E muitas outras, que aguardavam resposta:

Por que há férias escolares, intervalos, trimestre, semestre, ano letivo? Por que razão uma aula dura 50 minutos? Por que são duzentos os dias letivos, se nós aprendemos nos 365 dias de cada ano?

Por mais inverosímil que possa parecer, crede que assim era, antigamente. Felizmente, o tempo dos atrasos e do medo pertence ao passado. E do passado recupero outro episódio.

O Egídio, adepto confesso da imposição de cadências uniformizadoras e horários-padrão, tomou consciência da diversidade rítmica quando menos esperava e como, a seguir, se verá.

No intervalo de um congresso, careceu de satisfazer uma elementar necessidade fisiológica. Dirigiu-se ao banheiro. A célula fotoelétrica funcionou e fez-se luz. Foi até ao fundo do corredor, encostou-se ao mictório e deu início à aliviação. Para não sair a meio da palestra, a contenção urinária havia sido longa e as águas a verter eram mais que muitas.

Subitamente, a luz foi-se. Sem deter a micção, o Egídio ergueu um braço e acenou, voltou a acenar e… nada! O banheiro manteve-se imerso na mais profunda escuridão. Ao trocar de mãos, para acenar com o outro braço, escapou-se-lhe a coisa, e os urinários fluidos verteram-se, calças abaixo, numa torrente morna, que não tardou a sentir fria e desconfortável, até aos sapatos. O Egídio sacudiu-se. Depois, hirto e sofrido, empreendeu o regresso, percorrendo o longo corredor às apalpadelas, praguejando de cada vez que introduzia as mãos tateantes em humidades não-identificadas.

Acabou o périplo encaixado entre dois lavatórios e embatendo frontalmente contra uma traiçoeira parede, que as trevas ocultavam. Meio tonto da pancada, continuava a acenar com a sinistra. Contornou o obstáculo, com a mão direita colada à dorida fronte. E, ao contornar a fatídica parede, o automático, que estava ajustado para o tempo-padrão de uma urinação normal, disparou novamente. E fez-se luz!

Curioso e inteligente como qualquer professor, ao cabo de uma breve pesquisa, o Egídio apurou que os toques de campainha tinham sido introduzidos nas escolas do século XIX. Já ninguém se recordava dos objetivos visados na longínqua introdução desse dispositivo. Mas, decorrido mais de um século, a sineta manualmente acionada do tempo dos avós dos professores continuava a soar a mando de um computador.

Recebei um beijo do avô

 

Por: José Pacheco 

Open post

Estórias da Velha Escola (VI)

Cotia, janeiro de 2040

O episódio aqui descrito ocorreu no tempo do WhatsApp e do Facebook, que, há uns vinte anos, eram modos de as pessoas inventarem fofocas e conversarem sobre insignificâncias. Talvez já não vos recordeis desses apetrechos da era em que imperavam as chamadas tecnologias digitais de informação e comunicação. Estávamos no tempo das ditas “novas tecnologias”, mas, na verdade, eram tecnologias digitais rudimentares. Não raras vezes, utilizadas para manipular, ou criar dependentes de ágeis polegares.

Recordo-me de te ver, querido Marcos, às voltas com sites de design, na Internet. E da Alice pesquisando numa plataforma digital disponibilizada pela faculdade de psicologia. Foi numa empresa de produção dessas plataformas que o episódio incluso nesta carta se desenrolou. O dono da empresa quis conversar comigo e foi até Cotia, à Escola do Projeto Âncora. Conversamos:

Professor, você tem aqui um belo projeto. Trabalham com plataforma de ensino?

Não. Nós criamos uma plataforma, mas de aprendizagem – respondi. 

De aprendizagem? E essa plataforma tem o currículo todo, os conteúdos?

Não. Aqui, os jovens não consomem currículo. Eles constroem currículo, conhecimento, a partir de projetos.

Que tipo de projetos os professores preparam para os alunos?

Não preparam. Constroem com os seus educandos.

E têm lousa digital nas salas de aula?

Não há salas de aula. Nem lousas digitais.

Como? Então… – E a conversa ficou densa, carente de explicitação. Para a suavizar, perguntei:

Quais são as vantagens de uma plataforma de ensino?

A vantagem é que os alunos podem escolher o que querem estudar.

Dá-me um exemplo, por favor.

Por exemplo, em determinado dia, um aluno escolhe estudar… raiz quadrada.

E por que razão ele escolhe estudar raiz quadrada nesse dia?

Após alguns segundos, com ar de quem reflete, respondeu:

Nunca tinha pensado nisso.

Pois não… Naquele tempo, os alunos consumiam um currículo “pronto-a-vestir”, servido por uma “base curricular”, em plataformas digitais. Aulas invertidas e híbridas quase dispensaram o professor. Mais tarde, os educadores compreenderam que tinham feito um grande disparate.

Os pais queixavam-se de ver os filhos amarrados a computadores, a videojogos, esquecendo que, quando bebés, ao invés de chupeta, lhes tinham posto nas mãos um computador, para que não gritassem, para que se calassem. As “novas tecnologias” transformaram-se em panaceias do modelo escolar. Apenas serviam para o consumo acéfalo de conteúdo, sem resquícios de cooperação, na dependência de vínculos afetivos precários estabelecidos com identidades virtuais.

A Internet era generosa na oferta de informação. Tudo o que um professor pudesse “ensinar” estava disponível, de modo mais atraente, num computador. Os professores mantinham-se ancorados em práticas obsoletas, servidas em lousas digitais, ou replicando aulas congeladas no YouTube. O modo como utilizavam a Internet fomentava imbecilidade e solidão. As escolas tinham-se enfeitado de informação sem cuidar da comunicação, sem lograr desenvolver autonomia e senso crítico.

Nesses recuados tempos, a democracia viveu tempo sombrios. A sociedade padecia de medo, egoísmo, fundamentalismos. Foi, então, que educadores atentos se aperceberam da sua quota parte de responsabilidade. E, no início dos anos vinte, a crise cedeu lugar a novas práticas sociais, o espectro de novas inquisições se desvaneceu. Chegara o tempo de usar o digital ao serviço da humanização da escola.

Com amor,

O vosso avô José

 

Por: José Pacheco

Open post

Estórias da Velha Escola (V)

Petrópolis, novembro de 2039

Netos queridos,

Passei muito tempo no chão das escolas, ajudando educadores e aprendendo com eles. Com os jovens e não para os jovens, construía roteiros de estudo do currículo da subjetividade. E logo surgiam as inevitáveis perguntas, que me davam a conhecer indícios de necessidades, desejos, sonhos, que pudessem dar início a projetos de vida.

O que queres saber?

Os jovens nada respondiam.

O que queres aprender?

Quase sempre, tinha o silêncio por resposta. E insistia:

O que queres fazer?

Por vezes, respondiam que “queriam fazer matemática”, ou “língua portuguesa”. Mas, quando lhes perguntava o porquê da escolha, encolhiam os ombros e nada acrescentavam.

Então, passava ao terceiro pilar da educação:

O que queres ser? – Não acrescentava “quando for grande”, porque perguntar isso a uma criança constitui insulto. Invariavelmente, recebia por resposta:

Eu posso dizer aquilo que quero fazer? Eu posso dizer o que eu quero ser?

Ao cabo de alguns anos de escutar respostas a perguntas que jamais fizeram, os jovens tinham desistido de perguntar.

Cumprido o tempo de matar a curiosidade em sala de aula, já no tempo em que as crianças ousavam perguntar, vivi uma peculiar situação. Um jovem interpelou-me:

Professor Zé, é verdade que um ser vivo é um ser que nasce, cresce, se reproduz e morre?   

Há muito tempo, havia deixado de dar aula, de dar respostas sem escutar perguntas. Mas, durante muitos anos, eu havia dado aula sobre ser vivo. No início dessas aulas, escrevia no quadro negro a data e o sumário, seguidos da definição do conceito, exatamente, o que aquela criança havia dito. Fiquei feliz por ter aprendido sem que eu lhe tivesse ensinado…

Alguma dúvida, meu querido?

Eu não concordo.

Não concordas com o quê?

Com isso, com o que está no livro.

Respirei fundo, disfarcei a surpresa e a contrariedade.

Por quê? Posso saber?

Pensa um pouco, Professor Zé! – exclamou o mocinho – Se um ser vivo é aquele que nasce, cresce, se reproduz e morre, então eu não sou um ser vivo, porque ainda não me reproduzi, nem morri. E tu também não és um ser vivo…

Logo uma jovem se meteu na conversa:

Também tenho uma dúvida. Escolhi um ser vivo, para o estudar. Foi o bicho-da-seda. Aprendi como se faz a seda. Mas, antes, tive de tirar folhas da amoreira, para dar de comer aos bichinhos. Quando os bichinhos fizeram os casulos, já não foi preciso pegar folhas da amoreira. E a amoreira também deixou de ter folhas. Eu li num livro que as árvores respiram pelas folhas. Então, por onde respiram, quando não têm folhas? Asfixiam? É isso?

Era, também, um tempo em que os professores escutavam. Fazendo jus aos ensinamentos de Dewey e Kilpatrick, envolvemo-nos num projeto. E todos – alunos, professores, vizinhos e familiares – pesquisaram, aprenderam o que era um ser vivo.

Trinta anos decorridos, numa escola de Petrópolis, vi multiplicarem-se idênticas situações, por via do afã de uma maravilhosa educadora de nome Cecília e da sua equipe de projeto.  A Cecília era uma professora que se surpreendia:

Organizaram a folha, contavam nos dedos as letras e iam escrevendo suas palavras. Me solicitaram, vez ou outra, para tirar uma dúvida na escrita, ou dúvidas gerais, tipo “Tia, inhame é legume?” Fiquei um tempo acompanhando o jogo e o envolvimento delas com a brincadeira e com a escrita (…) é bom demais quando se vê sentido nisso. Usar a escrita com autonomia para se divertirem me encantou!

Havia sentido, significado, vínculos, aprendizagem… havia projeto.

Acolhei o abraço do vosso avô José.

 

Por: José Pacheco

Open post

Estórias da Velha Escola (IV)

Lisboa, outubro de 2039

No tempo em que o vosso avô andava de escola em escola, tentando descolonizar mentes jovens, cansava-se de ler textos encimados pela palavra “redação”, formatados em vinte linhas de lugares-comuns. Textos que diziam que a Primavera era uma estação do ano, que os passarinhos faziam ninhos, as flores nasciam nos campos e a temperatura subia nos termómetros.

Naquele tempo, o dia começava, invariavelmente, com a aula de educação físico-motora. Sob a orientação do professor, os alunos cumpriam o ritual diário de voltar a pôr em grupos as carteiras, que a colega do turno da tarde voltaria a colocar todas alinhadas, em filas, voltadas para o quadro negro e para a mesa da professora. Concluído o exercício de musculação, era o tempo de leitura:

Eu gosto muito da Primavera. A Primavera é uma estação do ano, que começa no dia… E daí por diante, até ao inevitável: Depois da Primavera, vem o Verão, que é outra estação do ano muito bonita.

Lido o textinho, perguntei:

Quem escreveu este texto?

De imediato, se ergueram todos os braços e se baixaram, no meio de grande embaraço. Não satisfeito com a reação e sem delongas, passei à leitura do segundo texto, que era clone do anterior, e repeti a pergunta:

Quem escreveu este texto?

Alguns alunos ainda esboçaram um levantar de braço, mas suspenderam o gesto. Ao cabo de uma dezena de leituras, a perturbação inicial deu lugar ao riso. Os alunos tinham percebido a mensagem. E eu propus um novo jogo de escrita, a que todos aderiram sem reservas.  Dessa vez, ditei as regras, de acordo com o Freinet do “texto livre” me havia ensinado. Já que todos gostavam de escrever sobre a Primavera, assim se faria, mas não poderiam recorrer a qualquer das frases colocadas no quadro negro:

Eu gosto muito da Primavera; A Primavera é uma estação do ano; As andorinhas, as flores… etc.

O silêncio tomou conta da sala, um silêncio estranho. Mas, jogo era jogo e teria de ir até ao fim.

Durante alguns longos minutos, os alunos entreolhavam-se, cotovelos assentes nas carteiras, cabeças entre as mãos, gestos de impaciência… até que um deles, após um trejeito no rosto, decidiu escrever algo. O colega do lado espreitou, encolheu os ombros como se dissesse “olha a grande novidade!” e fez par com o primeiro.  Pouco a pouco, juntaram-se os restantes, cada qual na sua vez, que o “ritmo individual”, apesar de não se constituir em conceito cientificamente assumido, era de uma cruel evidência para aqueles que ainda creem que a pedagogia é a arte de ensinar tudo a todos como se fossem um só.

Findo o inesperado jogo, os textos foram recolhidos. Seguindo os mesmos cuidados da primeira sessão de leitura, li o primeiro dos textos e perguntei:

Quem escreveu este texto?

Apenas um braço se ergueu, decidido. Um só braço, uma só mão autora.

Disfarcei como pude a emoção e li o segundo dos textos.

Novamente, um só erguer de braço, sem hesitações, um gesto único, convicto. E assim foi acontecendo até à derradeira leitura daqueles textos… livres.

 

Por: José Pacheco

Scroll to top