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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCVI)

Jundiapeba, 30 de julho de 2041

Se quisermos aprender com o passado, ainda que nada saibamos de História da Educação, encontraremos um fator do fracasso educacional, da hecatombe escolar, que castigou milhões de crianças, ao longo de mais de cem anos. 

Nos idos de vinte, a quase totalidade das escolas ainda radicava as suas práticas no paradigma da instrução, práticas historicamente situadas no que poderemos designar por proto-história da educação. E eram escassas as escolas cujas práticas oscilavam entre o paradigma da instrução e o da aprendizagem, entre elas, as montessorianas, as waldorfianas, as freinetianas e alguns sistemas de ensino. 

Esses sistemas de ensinagem, empresas de marketing agressivo, assimilavam o discurso contemporâneo das ciências da educação – “aprendizagem ativa, baseada em projetos”, “aprendizagem por competências”, “aprendizagem por projetos” etc. – mas não faziam a mínima ideia do que isso fosse, ou tivessem operacionalizado esses e outros conceitos-“chavões” em escolas efetivamente inovadoras. A sofisticação do discurso contrastava com a disfarçada miséria das práticas. 

Aproveitando-se da ingenuidade pedagógica de pais e professores, deturpavam o discurso, adaptavam-no e vendiam-no. Algumas se apresentavam como bilingues, trilíngues. Diziam estar fundamentadas nas pesquisas mais relevantes sobre educação, mas apenas enfeitavam a velha escola com a aparência de novo. Afirmavam adotar uma metodologia centrada na aprendizagem, “metodologias ativas”, colocar o estudante no centro do processo, mas o centro continuava a ser o professor. E as metodologias eram “inativas”, as de sala de aula. Declaravam construir uma educação do futuro, mas não faziam mais do que reproduzir um modelo educacional do passado travestido de “novidades. 

Essas empresas se constituíram numa praga, que prolongou a crise da educação e causou mais vítimas do que a Covid-19. Eram “cortinas de fumaça”, como diria a minha amiga Tina. Em sedutoras “apresentações”, com recurso a sofisticados meios digitais, vendiam paliativos do velho modelo a ministérios e secretarias. O desperdício de dinheiro público foi enorme. Nulos foram os seus efeitos. Estávamos perante indícios de ineficiência administrativa. Mas não há notícia de que alguém tenha sido responsabilizado pelo dano causado ao erário público. 

Quando decorria o ano de 2021, a Ana Júlia, o Wander, a Tina, a Ana Paula e a Karen porfiavam para que as crianças não fossem mais prejudicadas pelo modelo instrucionista. A esta equipe se juntaram professores éticos, como a Eliane e o Reginaldo. Através destes educadores exemplares, foram operadas rupturas bem planejadas, na passagem de práticas ancoradas no paradigma da instrução para uma aprendizagem centrada no aluno e para práticas radicadas do paradigma da comunicação.

Dando aula, no primado da dialogicidade, gradual e responsavelmente, a mudança e a inovação aconteciam a partir de uma decisão ética. Se o professor pretendia despertar sentimentos de respeito ou de responsabilidade nos seus alunos, precisaria de colocar esses sentimentos nas suas atitudes. Por que ficar entre o discurso da mediocridade e um “meio-termo”? Ser coerente seria apenas ser ético, congruente, preparar caminhos, para uma verdadeira “educação do futuro”… no presente. 

“O futuro não é um lugar para onde estamos indo, mas um lugar que estamos criando. O caminho para ele não é encontrado, mas construído. E o ato de fazê-lo muda tanto o realizador quando o destino”. Sábias palavras eram as de Saint-Exupéry.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCV)

Mogi das Cruzes, 29 de julho de 2041

Neste mesmo dia, mas há vinte anos, nevava em terras gaúchas (desse fenômeno junto a esta cartinha uma fotografia, que guardei no baú das velharias). A onda de frio intenso derrubava a temperatura até cerca dos dez graus negativos, algo nunca antes visto nas terras tropicais do sul

Por essa altura, o vosso avô ajudava o amigo André, no seu projeto de fazer uma educação do século XXI no município de Mogi das Cruzes. Essa cidade e outras capitais do Sudeste preparavam-se para auxiliar pessoas em situação de rua, pois havia indícios de que a onda de frio se intensificasse.

O mundo passava por profundas mudanças climáticas. Na Brasília dos idos de vinte, atenta e esse e a outros perigos, a Cláudia agia, no Centro de Práticas Sustentáveis. Do seu projeto vos falarei em outra missiva. Hoje, falar-vos-ei de um tempo em que ainda não tínhamos publicado o livrinho sobre novas construções sociais de educação, quando me perguntavam o que era o “currículo da consciência planetária”. 

Essa dimensão curricular contemplava necessidades universais, as chamadas “aprendizagens essenciais”. Dava resposta a problemas que afetavam o Brasil, como afetavam a China, ou a África do Sul, tal como a Covid-19. O currículo monolítico e pronto-a-vestir, como o da base curricular brasileira, continha conteúdos relacionados com a pandemia, mas a escola instrucionista nem sequer ensinara a lavar as mãos. Como vedes, muitas vidas teriam sido poupadas, se fosse outra a escola dos idos de vinte.

Quando o livrinho foi escrito a muitas mãos, uma delas digitou a estória que conto em seguida.

Uma jovem manifestou preocupação relativamente ao fato de a espécie humana estar em risco de extinção, dada a crise ambiental (o buraco na camada de ozono, o efeito de estufa, a poluição, a escassez da água potável, a acelerada degradação do planeta). 

Com os seus tutores, elaborou um projeto, realizou pesquisa e foi para Washington, apresentar um projeto por ela concebido, que, experimentalmente, a NASA enviou para o espaço: uma ampola de um composto feito de cimento e pó de plástico verde. Acaso esse composto resistisse de maneira satisfatória à microgravidade, ele poderia ser uma alternativa para a construção de colônias humanas fora da Terra. 

Tudo começou, quando a jovem aluna manifestou preocupação com a vizinhança, com o mundo, com o futuro da humanidade, numa das escolas brasileiras, onde, no início deste século, já se esboçavam novas construções sociais de educação. 

Nessa escola – refiro-me à Escola do Projeto Âncora – o processo de autoconhecimento harmonizava-se com necessidades e problemas da sociedade contemporânea e do planeta. Tendo em consideração os dezessete objetivos de desenvolvimento sustentável e as quatro dimensões da sustentabilidade, eram desenvolvidas habilidades socioemocionais, assegurando, através do desenvolvimento de competências transversais, o pleno desenvolvimento pessoal e social do ser humano.

A Escola do projeto Âncora representava a possibilidade de o Brasil sair do caos educacional em que estava atolado. Talvez por isso tivesse sucumbido face à corrupção intelectual e moral, que minava a nação. Também porque, no regime de medo dos idos de vinte, as testemunhas do descalabro se negassem a denunciar ilegalidades, com receio de perder a vida. 

Naquele tempo, o fundamentalismo pedagógico vigiava e punia aqueles que ousavam refletir e mudar. É preciso reavivar a memória desse tenebroso tempo, de que, felizmente, já não restam indícios, nesta nossa pacífica década de quarenta. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCIV)

Brás Cubas, 28 de julho de 2041

Nos idos de vinte, um projeto do governo de um estado determinou a construção de dezenas de escolas no “Padrão Século XXI” (sic). E um governador de estado inaugurou uma escola construída nesse padrão, que, ao que disse, custou quase três milhões de reais. Pouco tempo após a pompa da inauguração, um jovem aluno foi morto a tiro dentro dessa (dita) “escola-modelo”. E outro rapaz foi atingido por uma bala dita “perdida”. 

A diretora disse que “o rapaz tinha comportamento normal e boas notas”. O porteiro do colégio prestou depoimento: 

“A Polícia Militar vem, ajuda. Mas, quando eles saem, os marginais voltam”. Acrescentou que o colégio tinha encomendado câmeras de segurança e uma barreira de proteção em volta do prédio onde os alunos estudavam. Que um serralheiro colocaria as placas em volta da escola.

“Mas, antes de ficar pronto, infelizmente aconteceu essa tragédia”, disse. 

E tranquilizou os intranquilos:

“A Polícia Militar ficará na porta da escola entre os próximos quinze a trinta dias, até que o projeto de segurança seja implantado”.

Um superintendente da Secretaria de Educação “averiguou as condições da infraestrutura de segurança” e, peremptoriamente, afirmou: 

“Um circuito de câmeras de monitoramento será instalado ao redor de toda a escola”. 

A Polícia Militar, por sua vez, informou que fazia rondas intermediárias nas escolas. Porém, apesar de todas as garantias dadas por quem podia dá-las, poucos alunos apareceram na instituição na manhã seguinte. E uma mãe decidiu mesmo tirar o filho daquela escola, porque “se cansou de ouvir os relatos do menino, que afirmou ter testemunhado o uso de drogas no local”.

Culminando essa insana sequência de fatos, a escola, que era pública, se tornou uma instituição militar e passou a cobrar cem reais pela matrícula, cinquenta reais de mensalidade e cerca de cento e cinquenta pelo uniforme. 

Várias reportagens, como as do jornal Correio Brasiliense disso deram conta: “Escola pública vira colégio militar e cobra por matrícula e mensalidade”. Segundo a Secretaria de Educação, algumas escolas estaduais iriam passar a ser administradas pela Polícia Militar e, por isso, a PM poderia cobrar pela matrícula e pela mensalidade.

Dizia a minha amiga Ely que pais e governo comemoraram “o plano de recuperação da qualidade da escola”, através da colocação de policiais militares formados em pedagogia, “uma solução retrógrada, talvez inconstitucional e desnecessária”. 

Quanta ignorância a do pensar que se poderia acabar com a violência explícita com recurso à violência simbólica, numa escola-caserna! Ou que um ambiente castrense poderia gerar autonomia e verdadeira disciplina. Naquele tempo de medo e negacionismo, fenômenos como o das escolas cívico-militares se sucederam. Hoje, sabemos que foi grande o prejuízo causado por projetos desse tipo.

Na minha provecta idade, eu estava crente de que já tinha visto tudo, mas estava imbuído daquele “engano de alma ledo e cego, que a fortuna não deixava durar muito” Perplexo com tantas besteiras, iria juntá-las ao balde do lixo do computador. Eis senão quando este português cioso da sua herança cultural encontrou uma razão para reagir – a ocupação das escolas pela PM começaria

no “Colégio… Fernando Pessoa”. 

Por que não deixavam o poeta em sossego, no seu repouso eterno? Por que se calavam os educadores perante aberrações? Por que se permitia que a poesia e a pedagogia fossem vilipendiadas?

Diria o Fernando poeta que “tudo vale a pena, quando a alma não é pequena”. E o que não valia a pena era perder o dom da indignação.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCIII)

Mogi das Cruzes, 27 de julho de 2041

“O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar, a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para os fazerem parentes do futuro”. E, porque Mia Couto o havia dito, professores não desistiam:

“Pensamos em desistir várias vezes e retornar ao caminho antigo. Não existiam modelos. Então, fomos criando estruturas organizacionais que nos permitiram interagir com as crianças em novos modos. 

Após muito trabalho, muito estudo, chegamos ao fim do ano com muitas conquistas. As crianças demonstravam diferentes aprendizagens e víamos avanços em todas as áreas. As relações afetivas foram ampliadas e um grande sentimento de grupo cresceu entre nós. Os pais mostraram-se satisfeitos com o que viam em seus filhos e apoiaram essa prática, que, no início, parecia tão ousada e, ao final, revelava-se tão eficiente. Cresceram as crianças, as professoras, a escola”.

No julho de 21, eu testava pressupostos ditos “científicos”, ocupava-me com o desenvolvimento dito “teórico”, a partir de relatos, que já havia lido, muitos anos antes. Educadores organizavam-se em núcleos de projeto e turmas-piloto. E, se uma escola não mudava inteira e ao mesmo tempo, no respeito por quem decidia mudar, novos projetos surgiam.

Embora passassem por diferentes estágios de constituição, cada núcleo era um nodo de uma rede, na partilha de idênticos objetivos. Os diferentes estágios resultavam do diagnóstico local e da impossibilidade de criar uma coerência exata das ações entre os núcleos, pois cada grupo humano reagia de modo diferente à necessidade de uma paradigmática transição. 

As etapas de transformação eram vivenciadas num estatuto de participante ativo. Tomada consciência da precariedade do que chamávamos “ensinagem”, surgia a necessidade de entender como fazer diferente, se evidenciava que cada projeto de mudança era um ato coletivo, e que a autonomia resultava de um ato relacional, de um ser autónomo com outro ser autônomo. 

Ninguém seria autônomo sozinho. Existíamos porque o outro existia. A nossa liberdade não terminava onde começava a liberdade do outro. A nossa liberdade começava onde começava a liberdade do outro. Em equipe, defrontávamos momentos críticos de reelaboração da cultura pessoal e profissional. E, se a aprendizagem também acontecia por imitação, recordamos uma situação de há muitos anos.

O presidente da assembleia de alunos era um mocinho muito autocentrado. Nas reuniões, ele somente dava a palavra aos amigos e não assumia responsabilidade coletiva, em situações que justificavam essa atitude. Foi criticado por muitos dos alunos que o elegeram. Reagiu, dizendo que se demitiria. Então, as crianças tomaram uma decisão surpreendente: decidiram que o presidente deveria continuar no cargo. Mas que a condução das reuniões deveria ser participada pelos restantes membros da mesa da assembleia, de modo a ajudar o presidente a aprender a respeitar os outros e a respeitar-se.

Ao longo daquele ano letivo, o presidente, que não foi demitido, viveu múltiplas situações de ajuda mútua. No final da última assembleia daquele ano, deitou discurso, agradecendo aos colegas a oportunidade de ter aprendido a ser solidário. Em linguagem de gente jovem, disse que não se importava de não ser o primeiro, para que todos fossem os primeiros. 

Desde tenra idade, a solidariedade na solidariedade se aprendia, pois o mestre Pestalozzi nos dizia que a educação moral não deve ser trazida de fora para dentro da criança, mas deve ser uma consequência natural de uma vivência moral. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCII)

Serra Negra 26 de julho de 2041

Nos idos de vinte, se um professor me perguntava se, nos processos de aprendizagem, considerávamos o papel da repetição, ou se os nossos alunos deveriam saber a tabuada de cor, eu respondia que sim. Mas, após um processo que ia da gênese do número até à elaboração da tábua de Pitágoras.  

Se me perguntavam como se poderia ensinar um aluno a construir portfólios de avaliação, ou a elaborar roteiros de estudo, eu respondia: 

“Ensinareis a construir portfólios de avaliação e a elaborar roteiros de estudo, dando aula”

Perante a réplica dos professores – Mas, eu poderei continuar a dar aula? – eu acrescentava: 

“Se sabes dar aula com mestria, se és competente a “dar aula”, é isso que terás de continuar a fazer, até que te sintas seguro e disponível para mudar. Não pode ser apenas aula, ou aula de um só assunto. Mas, aquilo que tu sabes fazer, aquilo em que és competente deverá ser valorizado”.

Logo perguntavam:

“Mas, você dá aula?”

Eu respondia:

Não. Mas, poderei ir convosco para a vossa sala de aula” 

Porém, Sêneca nos avisa: “non scholae, sed vitae est docendum”. Não ensinar “para”, mas ensinar “com” – é “na vida” e não “para a vida”. É no hic et nunc da humana existência, que a educação acontece. E raramente acontece em sala de aula. 

Na Ponte, preocupávamo-nos com domínios como o do “currículo oculto”, com o desenvolvimento de processos complexos, com o desenvolvimento do senso crítico, da metacognição, das competências no domínio das novas tecnologias, para que não viessem a ser instrumentos de solidão. Sobretudo, preparando os alunos para um mundo em permanente e vertiginosa transformação, para radicais transformações nas relações humanas e de trabalho. 

Efetivamente, a Ponte operou profundas ruturas paradigmáticas, que operaram profunda transformação cultural, a começar pela dos professores. O projeto da Escola da Ponte continha itens que os estimulam os educadores a desaprenderem e a constituírem em novas bases os seus papéis. 

Vos apresento o que, no projeto da Ponte se requeria de um “orientador educacional”: 

“Supõe-se a necessidade de abandonar criticamente conceitos que o pensamento pedagógico e a práxis da escola tornaram obsoletos, de que é exemplo o conceito de docência e designações (como o de educador de infância ou professor) que expressam mal a natureza e a complexidade das funções reconhecidas aos orientadores educativos. 

Não mais um prático da docência, ou seja, um profissional enredado numa lógica instrutiva centrada em práticas tradicionais de ensino que dirige o acesso dos alunos a um conhecimento codificado e predeterminado”.

Deste modo, os seus professores – ou “orientadores educacionais”, como se chamavam – reagiam:

Quase que poderemos dizer que ser inovador, pode ser sinônimo de exclusão. Nem mesmo na Ponte, se consegue quebrar as barreiras dos modelos instituídos. Mas esse é o caminho que um educador tem de percorrer, se não se conformar com a “norma”. Também nós temos sentido, ao longo da nossa vida profissional, mesmo fora da Ponte, que não somos entendidos e, por isso, excluídos, porque ousamos fazer diferente. 

Na Ponte estas questões vão sendo, de alguma forma, esbatidas na medida em que há uma corrente forte, que anda no sentido dos valores que o projeto defende. Pensamos que isto só é possível quando há uma equipa, ou, pelo menos, quando há professores que no coletivo querem mudar. De outra forma, vamos encontrando D. Quixotes, que vão lutando contra moinhos de vento. Daí que seja preciso acreditar fortemente neste projeto e investir na mudança, coletivamente.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCI)

Piracaia, 25 de julho de 2041

Talvez por não terdes vivido no século XX, vos pareça estranho que os “diferentes” fossem tratados nas escolas como se não existissem. Efetivamente, ressalvadas as honrosas situações – dado que havia verdadeiros professores nesse tempo – os “deficientes”, como eram tratados na década de sessenta, se viam privados de cuidados concedidos aos “normais”.

À vossa tia Rosário, porque não controlava a baba, nem os esfíncteres, foi negado o acesso à escola. Não fora a iniciativa dos seus pais, que cocriaram o então chamado “Movimento de Apoio ao Diminuído Intelectual” (assim se chamava) e reivindicaram apoios, e a tia Rosário ficaria apenas dependente da educação familiar.   

Na década de setenta, falava-se de “integração”, enquanto se praticava uma sutil segregação dos diferentes. Nesse tempo, ensaiamos o acolhimento de alguns “deficientes”, integrando-os no quotidiano de uma escola que já abandonara práticas segregadoras instrucionistas. Entre os “integrados”, um jovem surdo. Quando tentei transmitir-lhe a noção de pretérito, presente e futuro, não consegui. E compreendi que, se alguma deficiente ali houvesse, não seria o jovem. Seria eu, que não sabia usar a linguagem de sinais.

Na década de oitenta, mudaram a nomenclatura. Já não se usava falar de “deficientes”, mas de crianças “com necessidades educativas especiais”. Quando já se deveria reconhecer que a escola deveria cuidar de todos dentro do princípio de todos são especiais, únicos e irrepetíveis, uma professora “especial” discriminava os alunos “especiais”, dentro das salas de aula. E, quando se argumentava que o aluno tinha “dificuldades de aprendizagem”, não se reconhecia que o professor também tinha dificuldades de ensinagem.

Fui convidado para “palestrar” sobre “inclusão” em inúmeros congressos. Enquanto esperava a minha vez de conversar sobre o assunto, tive de suportar monótonas leituras de power point e escutar “incluidores não praticantes”. Cansei! E em resposta a uma interpelação, assim respondi: 

Mesmo na qualidade de um ser incompleto, “diferente”, por ver estrabicamente, darei a minha contribuição, para melhorar o que for possível melhorar. Que me seja perdoado o tom que utilizo, mas apetece-me dizer que a “inclusão” é um termo fabricado em Salamanca e que, até hoje, somente serviu para enfeitar teses de doutoramento. Há muitas “pessoas conceituadas” a produzir teoria inútil (no ministério e nas universidades) e há muito faz-de-conta “inclusivo” nas escolas. Devo acrescentar que também há gente séria nas universidades e nas universidades. Não generalizemos.

As escolas terão de reconfigurar as suas práticas e integrar especialistas em equipes com projeto, para que a inclusão aconteça”. 

Após a conferência de Salamanca, com outros educadores, concebemos um livro sob o título “PATHWAYS TO INCLUSION – A Guide to Staff Development”. Publicado em Manchester e traduzido para português do Brasil (“Caminhos para a Inclusão”), era mesmo um guia, pois consistia num registro de práticas efetivas, desenvolvidas desde há muitos anos. A primeira metado dessa obra descrevia o contexto da pesquisa e apresentava a indispensável fundamentação teórica.

Depois, muito se escreveu sobre o conceito de “inclusão”, sem nada se acrescentar. E a prática da “inclusão” se manteve sendo miragem, que apenas na década de trinta teve tradução efetiva nas escolas. Entretanto, fiz outro livrinho a que dei o título de “Inclusão não rima com solidão”. Se o que quiserdes ler, sabei que ainda guardo um exemplar em papel. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DC)

Igaratá, 24 de julho de 2041

Nos tempos de pandemia, a Organização Mundial de Saúde reconhecia a profissão de professor como uma das de maior risco e a OCDE promovia cimeiras sobre o bem-estar dos professores. Porém, o que se discutia nesses encontros era a manutenção de um profundo mal-estar. 

Um secretário-geral afirmou que não se deveria perder a oportunidade “de colocar o bem-estar dos professores no centro das políticas de todos os países” e que o bem-estar dos professores teria de ser percebido como “um tema político de primordial importância”

O desgaste emocional, o cansaço, o desânimo, a desmotivação dos professores, talvez fossem sintomas do final do tempo da docência. Diziam alguns docentes que preparavam bem as suas aulas, que definiam criteriosamente os seus objetivos, rigorosamente elaboravam planos e materiais auxiliares de ensino. Mas teriam pensado bem para quem iriam “dar a aula”? Se todos os alunos estariam aptos a recebê-la? Se todos iriam aprender no mesmo tempo, do mesmo modo, no mesmo ritmo? 

Se assim pensassem, estariam a incorrer no erro de considerar que o Comenius tinha razão. A partir do século XVII, a Pampaedia influenciou o formato da escola, sendo determinante na emergência da Escola da Modernidade, no apogeu da Primeira Revolução Industrial. Nessa obra, Comenius afirmava ser possível ensinar a todos como se fosse um só. Mas, já nos idos de vinte se sabia que tal desiderato era inviável. 

Comenius não estava errado, se situado no seu tempo (século XVII) e no tempo da emergência de um modelo de escola, que correspondeu com eficiência e eficácia às necessidades sociais do século XIX. O que estava fora de época era a manutenção de um modelo educacional do século XIX em pleno século XXI.

Por essa altura, sempre oportuna nas suas intervenções, a minha amiga Tina Carvalho assim se manifestava:

“A enorme ruptura no sistema educacional causada pela pandemia só trouxe prejuízos, ou abriu uma oportunidade para refletir sobre as práticas, repensar os processos e fazer diferente?

A ineficiência que ficava “enclausurada” nas quatro paredes de uma sala de aula, foi escancarada dentro das casas, sob os olhares atentos dos pais.

O Brasil antes da pandemia, estava entre os dez piores países no mundo em educação – índice PISA. Pensando em processos de aprendizagem, é para aquele “normal” pré pandemia que queremos voltar? Para uma escola instrucionista, que força a homogeneização dos diferentes ao ignorar e desrespeitar a individualidade, os sonhos, os desejos, as potencialidades, as habilidades, as curiosidades e as dificuldades de cada criança e jovem, que é especialista em competição e padronização, gerando exclusão, bullying e evasão.

Insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes como disse Albert Einstein. As pessoas mudam o mundo. E mudar o mundo é mudar a forma como se educa. Quem educa, são pessoas. Precisamos de nos reeducar! Precisamos rever a imposição padronizada do conteudismo instrucionista, que destrói a curiosidade e impede o desenvolvimento do pensar crítico e criativo.

Que o velho normal da educação não volte nunca mais”. 

No Brasil do início do século XXI, a Tina não estava sozinha. Em Mogi, punha em prática aquilo que escrevia. E, em Brasília, definindo elementos da “aprendizagem reconstrutiva”, o Mestre Pedro Demo dizia-nos que o lugar do professor não era o centro do processo, mas a sua orientação, instigando o aluno a construir um caminho de questionamento. 

Aprender não seria acabar com dúvidas, mas conviver criativamente com elas.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXCVIII)

Bom Jesus dos Perdões, 22 de julho de 2041

Há muitos, mesmo muitos anos, no tempo em que não se falava de “inclusão”, quando ainda não tinha sido inventado o TDAH nem Ritalina era enfiada goela abaixo nos ditos diferentes, por caminhos que a pedagogia não recomenda, o professor Alfredo “incluiu” socialmente um aluno “diferente”.

Era o primeiro dia do ano letivo. O Alfredo iria assumir os cuidados de uma turma da primeira classe. Cuidou de acalmar os pequenitos, que iam chegando agarrados às saias de mães nervosas. Era choro por todo o lado. A todo o momento, as crianças ameaçavam retomar o choro interrompido pelas doces palavras do jovem professor.

O senhor professor dá-me licença? – e logo algumas das já aquietadas mães aproveitavam para ensaiar um retorno e lançar ansiosos olhares sobre a prole, que, já dentro da sala de aula, retomava o ritmo do soluçar e desembocava numa nova e ruidosa choradeira. 

Contou os alunos. Pela lista, que a diretora lhe entregara, faltava um. Apercebendo-se de que a situação a resolver não se encontrava dentro, mas fora de muros, o professor alterou a estratégia. Saiu da sala, fechou a porta atrás de si e a ela resolutamente se encostou. 

O que viu fez com que o seu semblante não refletisse tanta amabilidade como antes. Uma suposta mãe debatia-se impotente perante investidas e pontapés do seu rebento, acompanhadas de tais imprecações que fariam corar de vergonha um surdo. 

“O senhor doutor do posto médico disse-me que ele é uma criança especial, que tem sistema nervoso. O meu marido até ouviu – não foi, ó Quim? – que a gente não o pode contrariar. Eu ainda pensei em levá-lo a outro especialista dos nervos, mas tenho lá posses! ‘Inda se me dessem um suicídio [leia-se “subsídio}! Já entreguei a papelada, há que tempos… e nada!”

“O garoto é levado do diabo!” – comentavam, entre dentes, alguns dos presentes. 

“Metê-lo assim na sala, nem pensar!” – pensou o professor. Pegou no aluno ao colo e, a custo, foi com ele até ao alpendre das traseiras. 

Quando se encontrou a sós com criança, sentou-a na beira do muro e falou-lhe baixinho e ao coração. Disse-lhe tudo o que seria possível dizer-se para sossegar o espírito de uma criança. E o infante presenteou-o com um chorrilho de impropérios: 

Deixa-me, filho da p…! Larga-me!” 

O professor respirou fundo, contou até vinte, voltou a respirar mais fundo e contou mais uma vez. O professor não era dos que acreditavam no ditado popular que diz que “moço que não é castigado não será cortesão nem letrado”, mas já começava a desesperar. 

O fedelho esperneava e gritava: 

Deixa-me, filho da p…!” 

A mão do professor foi mais lenta que o pensamento e só parou na face do pequeno. Mas foi a mesma mão que a acariciou e enxugou as últimas lágrimas, enquanto os seus braços envolveram a criança num abraço penitente. 

A criança percebeu que a sua performance tinha acabado e que com aquele adulto – a seus olhos bruto e terno – a cena do grito e da canelada não surtia efeito. Por receio de nova palmada, ou por razões que a razão desconhece, o pequeno lá foi, a par do novo mestre, sala adentro, como se nada de especial tivesse sucedido. 

À sua passagem, uma mãe ainda comentou:

Este professor é que tem jeito para as crianças! 

Equidistante dos outros dois episódios, este confirma o que já dizia um poeta: as mãos “são a guerra e são a paz”. 

Juntarei ao texto algumas palavras por detrás das palavras. Se é verdade que bater numa criança é um ato de cobardia, também sabemos o que Makarenko escreveu no seu “Poema Pedagógico”. Quem ainda o não leu, não sabe o que perdeu. Está lá tudo o que precisamos saber, para socialmente incluir. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXCVII)

Cachoeira dos Pretos, 21 de julho de 2041

Em tempos, vos falei do meu baú das velharias. Hoje, nele achei uns papeis amarelecidos por “kronos”, o tempo que mede, o tempo cronológico, o sequencial. Não sei se vos recordais desse material fibroso, de origem vegetal, que tinha a forma de folhas ou rolos e que foi muito utilizado até à revolução 4.0, para escrever, desenhar, imprimir. Para que se saiba, esses papeis, quando retirados do fundo do baú, apesar de amarelecidos, me permitiram ler algo que o tempo não amareleceu, se manifestariam atuais, no julho de 2021, quando o vosso avô manteve uma querela com professores, palestrantes e pesquisadores adeptos de uma “inclusão não praticante”. 

A Declaração de Salamanca completara vinte anos, sem que se fizesse cumprir. Nos inúteis debates, que se seguiram, usei os mesmos textos, que redigira na Ponte, nos idos de setenta do século passado. Os papeis do fundo do baú incluíam diálogos, que acabaram publicados em livrinhos, já no início deste século. Vos darei a conhecer alguns.  Mas, antes, vos darei conhecimento de uma mensagem da minha amiga Débora, que encontrei escondida entre os velhos papeis, encimada pelo título “Os alunos de ninguém”.

“Gostaria de caracterizar esses alunos, mas penso que não existam pesquisas relacionadas a coisas que não existam, que não possam ser padronizados e não se enquadram em nenhum sistema pré-estabelecido, já que se parecem com meros fantasmas, que perambulam pelas escolas, por seus corredores sombrios e ameaçadores, sentados em carteiras enfileiradas, engolindo conteúdos que não fazem sentido algum para alunos de ninguém.

Ele corre pelo ar, como se quisesse explodir seus sentimentos. E percebe que não tem nenhum lugar a chegar, pois não tem um local para ele. Grita, chora, esperneia, joga cadeiras, morde, bate, se cala, olha para o nada.

O aluno de ninguém está lá, perdido no tempo e espaço de um local que não lhe significa nada, pois ele não se senta, não pega direito no lápis, não desenha a letra direito, não decifra aquilo que lhe parece um hieróglifo. Ma,s ele está lá, com todo um potencial que é único, uma aprendizagem que é só dele, a ser dividida com o outro. O aluno de ninguém é um fantasma, que assombra o conhecimento, o conteúdo e o que professa. Assombra até mesmo a ele, pois não compreende o que tem que fazer, e quando se depara com o papel em branco e alguém falando em uma linguagem anglo saxônica ele se desespera, sua, treme, tem dor de estomago, vomita. Ele precisa preencher aquela folha em branco, para ninguém olhar, avaliar, reelaborar, apontar caminhos, mesmo que encruzilhadas, para que ele possa escolher qual estradinha percorrer. E, se não chegar a lugar algum, ele saberia de onde retomar.

O aluno de ninguém acaba desistindo de ser de alguém, já que ninguém o ouve, ninguém o percebe. Pode ele gritar, jogar cadeiras, se arranhar, que ninguém o perceberá como alguém, até que pode chegar o momento em que o aluno de ninguém se cala, adoece e se perde nos seus próprios sentimentos.

Cansei de falar que o professor tem que mudar, mas não perderei a esperança de dar voz ao aluno de ninguém.”

A inclusão não poderia acontecer a qualquer preço, mas, já no julho de 2016, a Cecília encontrara e recuperara “alunos de ninguém”. Quando ela chegou à São Jorge, encontrou crianças analfabetas, que lhe disseram:

“Tia, é melhor desistir. A gente não vi aprender a ler. A gente é burra. Foi uma professora que disse.”

Felizmente para esses e outros “alunos de ninguém”, havia professores que não desistiam de olhar para o ser humano aos seus cuidados como um aluno de alguém.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DXCVI)

Cachoeira dos Pretos, 20 de julho de 2041

Nos idos de vinte, as preocupações de governantes passavam pela necessidade de aumentar a duração da jornada escolar. O tempo de aprender deveria ter nova configuração, mas mantinha-se segmentado em horários-padrão. E as crianças caraterizadas por “ritmos mais lentos” eram lançadas em “aulas e classes de reforço”. 

Atentai neste excerto de uma dissertação:

“No seguimento do que atrás foi mencionado, resta dizer que a docente se dirige a todos da mesma forma e a nenhum aluno em particular. Assim, perante o caso de uma aluna, cujo nível de desenvolvimento próximo se situa acima da média da turma, a docente nada faz, reprimindo e frustrando a criança, que segundo o desejo dos pais, deveria transitar para um nível superior. 

Na perspectiva de Vygotsky, esta aluna de seis anos possui uma zona de desenvolvimento próximo acima da média, pelo que as atividades que a docente lhe oferece são demasiado fáceis, desmotivando-a e fazendo com que não ocorra desenvolvimento. 

No caso de uma aluna, que apresenta enormes dificuldades a todos os níveis, nomeadamente em saber identificar cores, formas ou letras, assim como em saber a sua idade, a docente em questão faz uso da mesma metodologia, (recorre a fichas). A criança acaba, por vezes, por não ter a devida atenção da docente, sentindo uma certa marginalização, tanto por parte desta, como dos próprios colegas, o que origina, por vezes, comportamentos violentos e agressivos.

No nosso entender e tal como referimos no relatório anterior, as pessoas, na perspectiva de Bandura, são produtos do seu meio. Assim, pensamos que o meio teve e em certa medida, continua a ter bastante influência neste caso, visto que pelas dificuldades que esta aluna demonstra, parece evidente que não foi apoiada ou “trabalhada” de forma alguma, enquanto não ingressou na escola. Deste modo, apresenta dificuldades na linguagem, assim como a outros níveis aparentemente elementares para a maioria das crianças da sua idade.”

Como vedes, Vygotsky, Bandura e Freud tudo explicavam, sem que se lograsse alterar as práticas. 

Dewey, tal como aconteceu com o seu discípulo Anísio, fora incompreendido. Na obra centenária (a primeira edição é de 1905) “Learning by doing”, estava bem evidente que considerava não haver melhor prática do que uma boa teoria. Sendo um pragmático, Dewey não descurava a relevância da Filosofia, reconhecia o conhecimento teórico tão válido quanto a utensilagem.  

Era corrente ouvir dizer ser preciso “descer à prática”. Que “a teoria era muito bonita, mas, “quando se descia à prática é que era o problema”. O senso comum pedagógico considerava que a teoria e a prática eram duas entidades separadas. E que uma (a teoria) estava sempre acima da outra (a prática).

O meu amigo Vítor, profundo conhecedor da arte de fazer aprender, dizia que, se a teoria e a prática estivessem desligadas, seriam inúteis e até nefastas:

“Precisamos de teorias e conceitos que iluminem, inspirem as práticas. Precisamos de práticas que inspirem e iluminem os caminhos da investigação e da teoria. Os teóricos sem prática são inúteis, os práticos sem teoria são profissionais que pensam que o que fazem é óbvio e não tem origem noutro lugar que não seja a sua cabeça.

Gosto de entender a teoria e a prática como uma árvore em que as raízes, as fundações, os alicerces são as conceções e a teoria. O seu tronco e a copa são as práticas, as práticas que, sendo mais visíveis, não esquecem que se alimentam das raízes.

É por isso que nunca descemos à prática…. subimos das raízes à copa. Sempre subimos à prática.”

 

Por: José Pacheco

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