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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXLVII)

Vilamoura, 28 de dezembro de 2041

No final do dezembro de há vinte anos, andava pelo Algarve e este e-mail recebi:

“Sou professora, mas já não sei como dar aulas, já não querem que seja eu. Adorava os alunos e sentia o retorno. Criava uma atmosfera de boa disposição, era humana, compreensiva, mas já não sei como ser. Sinto-me quase robô. O Algarve prima pelo individualismo e com a pandemia ainda piorou mais.

A minha escola é pequena, com uma direção recente e dinâmica. Se puder, ajude-me de alguma forma.”

Eu tinha fama de casamenteiro, por juntar pessoas, que eu cria serem afins. Dei a conhecer à autora do e-mail o meu amigo André. Já dele vos falei, mas nunca será demais recordar palavras suas:

“Já abracei e me despedi de professores que estavam se aposentando, após longos anos bem servidos em favor da educação pública. Tenho profundo respeito por aqueles que estão há mais tempo que eu nessa jornada, porque não é fácil.

Uma vez eu comentei com uma colega em uma escola que me surpreendia ao perceber que meus colegas professores agiam com egoísmo, não colaborando na arrumação da escola após um evento. Ela me disse: “André, aqui sempre foi assim. Vai se acostumando.”

Me acostumar é assumir a normalidade dos absurdos. É dizer “tudo bem” e cuidar da minha vida. Não consigo ser assim. Não consigo ignorar certas coisas. São muitos os paradigmas dentro de uma escola, criando zonas de conformismo em um espaço que deveria ser de reflexão, de ruptura com o status quo. A escola não é um espaço para o “tudo bem”, mas sim para o “por que não?”

“André, as pessoas não querem problemas” – assim me falou uma professora amiga.

É verdade. Problemas são desafios e desafios exigem que a gente se mexa, pense e tome atitude. É muito mais confortável repetir, ano após ano, as mesmas aulas prontas, as mesmas provas, os mesmos trabalhos, os mesmos projetos.

Observo as pessoas que trabalham comigo e percebo que algumas criam uma espécie de personagem fictício para estarem dentro da escola. Através desse personagem, elas falam e agem como os outros esperam que elas façam, pois isso significa ser bem aceito pelo grupo. Pensar diferente não é muito bem-visto. Por mais absurdo que pareça, ideias diferentes não são bem-vindas para bons debates racionais, dentro do ambiente escolar.

Infelizmente, meus colegas falam de Paulo Freire e de suas ideias de amor, mas a atitude fraterna e respeitosa de Paulo Freire mora apenas nas palavras e murais. Já cheguei a usar um pensamento de Paulo Freire (sem citá-lo) como argumento em um debate com outros professores e eles, achando que era um pensamento meu, me chamarem de tolo para, depois, exaltarem Paulo Freire como patrono da educação, nas redes sociais.

Continuo com muita esperança de que em algum lugar por aí exista um grupo de pessoas que ame educação e que adore se desafiar, que adore fazer diferente, que adore ousar novos caminhos, que não tenham medo de arriscar.”

O André encontrou pessoas que amavam a educação. Com elas, concebeu novos modos de converter crianças e jovens em pessoas sábias e felizes.

Em fins de tardes de dias incertos, no bater de teclas de computador, citava arautos de prodígios e reencontrava o significado de “país irmão”. Ao ritmo de um digitar, que diferia do ritmo de pensar, eu recolhia os ecos de um S.O.S. solidário, que consolidavam pontes de fraternidade.

“Contornando a imensa curva norte-sul, embalado no suave flutuar de aragens atlânticas, acompanhando os voos do Sabiá, eu celebrava cantos que ninguém conseguiria sufocar”.

E não importava que a aquarela da nossa ténue vida se fosse…descolorindo.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXLVI)

Sagres, 27 de dezembro de 2041

Ainda no rescaldo das natalinas festas e rebuscando velhos relicários, encontrei um internético apelo, que junto a esta cartinha:

“Preciso de alguma ideia para trabalhar com aula a distância sobre desfralde para Maternal1”.

“Por amor de Deus!” – exclamou a Cecília. E eu vos poupo ao que “exclamei”, face a essa e outra “relíquia”, que encontrei na mesma caixa de velharias:

“Planos de aula 0 a 6 anos com materiais e atividades de apoio, todos com os códigos da BNCC.

Bônus: alfabeto completo e números para pôr na sala de aula”.

“Planos de aula”! Isso mesmo! A escolarização começava entre zero e seis anos. O amigo Tião dizia que a escola era como “o serviço militar obrigatório aos seis anos”. Neste caso, a militarização começava, tão logo o feto lograsse sair do ventre materno.

Vos garanto que estou a dizer a verdade. Se quiserdes, vos mostrarei as relíquias. Essa e outras demonstrações de pedagógicas obscenidades eram provas de que a cultura pessoal e profissional dos educadores andava pelas ruas da amargura. Seria necessário intervir, drástica e urgentemente no campo da formação, para bem cuidar da pessoa do professor e socorrer aqueles que se confrontavam com situações como a que passo a transcrever:

“Pega esse e esse, e passa para ela!

Eu era a professora nova. Eu ia com a ideia de ser uma boa professora. Davam-me uma turma de 30 alunos.

As mães diziam que eu passava pouco dever de casa. E eu deixava de lado algumas crianças, porque sentia que algumas crianças não davam trabalho. Mas também não aprendiam. Eu tentava ensinar trinta, mas…

Nós fazíamos reagrupamentos, mas não resultava. Dividíamos por níveis, que era uma metodologia que a secretaria adotou. Mas os maus alunos não aprendiam melhor. Estavam desmotivados.

Mas… como é que se muda? Nós sabemos que temos de mudar, mas não sabemos como. A gente está condicionada. Está tudo engessado. Eu não sei por que é que o menino tem de estar sempre sentado.

O grupo da escola mudou. Foram embora as melhores professoras. Temos professoras temporárias. Há professores que não têm condições e não conseguem ensinar todos os alunos.

E por que é que doutor, ou mestre, ganha mais do que uma professorinha? Salário ligado a um título, ou salário digno?”

Boa pergunta! A “professorinha punha o dedo na ferida”. A mudança educacional começaria numa profunda e gradual reelaboração da cultura pessoal e profissional. Passaria pela oportunidade de rever valores e princípios, e de assentar o labor do professor na lei e na ciência. Também passaria pela elevação do seu estatuto social – salário igual para trabalho igual.

Por que razão se aumentava o salário em função do tempo de serviço, se não estava provado que o acúmulo de anos de serviço significasse melhoria do desempenho? No degradante processo de “funcionarização”, o professor era recompensado pela lealdade do servidor público ao estado: quanto mais tempo me serves, mais dinheiro te dou.

Num país dito civilizado, seria um escândalo o fato de o piso salarial de um professor ser sete vezes inferior ao de um médico. Não existiria justificação para o fato de um gestor educacional receber um salário superior ao de um professor. Nem se aceitaria que um professor do “ensino superior” recebesse uma boa aposentadoria, quando um professor do “inferior” auferia uma aposentação modesta.

Nesse tempo, ninguém soube dar resposta à “professorinha”. Se a obtenção de um título acadêmico não aumentava a qualidade da performance, por que razão os titulares de mestrado, ou doutoramento, “ganhavam mais do que uma professorinha”?

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXLV)

Moncarapacho, 26 de dezembro de 2041

Se reparardes na foto, que em cima esta cartinha, vereis que aquela criança “está a catar estrelas de felicidade, que caíram durante a celebração na escola, nesta última sexta-feira”. Era a minha amiga Regina quem legendava a foto, celebrando a justa premiação, que a Maré recebera.

Conheci a Maré da Granja Viana, decorria a primeira década deste século, quando ainda dava pelo nome de Kid’s Home. O jardim de infância de então era mesmo um lar de crianças. Ali, se respirava sensibilidade, se aprendia amorosidade.

Com a ampliação do projeto para o Fundamental, o nome “Maré” se ajustou a princípios partilhados pela comunidade. Dizia a minha amiga Regina que a palavra “Maré” representava “o fluir das águas através das forças da natureza. Metaforicamente, significava a força que impele as ações humanas, com avanços e recuos, fluxos e refluxos”.

Era esse o espírito do projeto, de qualquer projeto humano e, se a humana e freiriana incompletude, questionava práticas presas ao passado e recusava fundamentalismos, ali, se reconhecia que “o ser humano deve manter-se permanentemente “em obras”.

A Maré era um dos projetos que, no início dos anos vinte, apontava o rumo da mudança e inovação. Os espaços de aprendizagem dialogavam diretamente com a criança, com o seu corpo, instigavam a curiosidade. No saboroso livro “Picolé e Sorvete para Todos” se acrescentava: “a livre exploração acontece em espaços onde a criança consiga  interagir, transformar, se comunicar pelo corpo, pela mente e pela alma”.

O projeto já era reconhecido como “referência em inovação e criatividade na Educação”. Era justo esse reconhecimento, conferido pelo Grupo de Trabalho criado pelo ministro Renato Janine, em 2014. Nos idos de vinte, a Maré era um dos raros projetos sobreviventes dos 178 a que foi conferida visibilidade social. A sobrevivência e as premiações, como a que mereceu, no dezembro de 2021, talvez se devessem ao fato de a Maré já ser a gênese de uma comunidade:

“A Maré compreende que a ação educativa só se realiza na soma e eco de esforços de diversos atores.  Somos pais, crianças, professores, cozinheiros, porteiros, tutores, marceneiros, arquitetos, jardineiros, ambientalistas, músicos e… todo o bairro!”

Aquela era uma escola verdadeiramente “pública”, de iniciativa particular. A todos assegurava o direito à educação, a uma educação integral, humanizada, que a escola dita “pública” desse tempo continuava a negar.

Havia escolas da rede pública que “não tinham vaga para projetinhos de marginal”, porque já tinham “demasiadas classes dos burros” (sic). Mais de dez mil escolas estavam sem abastecimento de água. Em quase quatro mil, não havia energia elétrica. O investimento público na educação infantil caíra 86%.

Ao cabo de meio século de professor de escola pública, eu acompanhava projetos, que, por dentro, resistiam à desagregação do chamado “sistema público de ensino”. Nutria uma profunda admiração por educadores esforçados e esperançosos, que enfrentavam uma administração intelectual e moralmente corrupta. Colaborava com secretarias de educação dirigidas por gente sábia e honesta. E era levado a reconhecer que teria de contar com a iniciativa privada, para operar a mudança da “escola pública”.

Quando não esperava gratas surpresas, genuínas intenções surgiram. Além do amigo André – já aqui vos trouxe o seu depoimento – outros empresários despertavam para a necessidade de trocar o marketing demagógico da maioria das empresas do ramo por um lucro legítimo, assente no bem-estar das crianças.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXLIV)

Conceição de Tavira, 25 de dezembro de 2041

Há vinte anos, por esta altura, o vosso avô estava no sul de Portugal. Em entrevista, a ministra da saúde informava que esse Natal ainda não seria passado “em perfeita normalidade”. Restava-nos fazer a reunião de família, numa solidão acompanhada. Ou, virtualmente, pois quem ama nunca está sozinho.

No dezembro de há vinte anos, era noticiado que, em muitos hospitais portugueses, a maioria das pessoas internadas por complicações originadas pela COVID eram pessoas que tinham recusado vacinar-se. O estado gastara milhões de euros, para as convencer a não se colocarem em perigo e a não colocarem os seus semelhantes em perigos iguais.

Havia quem propusesse que os não-vacinados fossem impedidos de sair de casa e que pagassem o tratamento hospitalar. Numa sociedade dividida entre direitos e deveres, numa cidadania mitigada, não sabíamos como agir. Entre a desumanidade e a ignorância, prevalecia o medo e o salve-se quem puder. A escola não nos havia preparado para gerir a dramática situação.

Pela primeira vez, não cumpri o preceito natalício de “desejar boas festas”. Mas, senti os familiares e amigos, mesmo os definitivamente ausentes, mais presentes do que nunca. E, mais intensamente do que em anos anteriores.

Não enviar mensagens com os tradicionais votos não significava que estivesse alheio à celebração daquele dia. Festejava-se o nascimento de um Menino-Deus, que ninguém sabia quando nascera. A festividade fora oficializada como Natale Domini, cristianizando festas pagãs romanas do solstício de inverno. Era invocada a peregrinação do Rei Gaspar, em demanda do Rei dos Reis.

No conto “Os três Reis do Oriente”, a Sophia escrevera:

“Uma delegação de homens importantes veio ao palácio de Gaspar. E disseram:

Por que não te apresentas no templo do Bezerro? Por acaso te falta oiro para a oferta? Que tens tu de comum com a ralé das docas? Não estás por acaso vestido de púrpura e de linho como um rei? Porque desafias o poder de Zukarta? Serás um traidor? No culto do Bezerro está a prosperidade e a grandeza da Kalash. Estarás vendido aos nossos inimigos?

Gaspar respondeu:

Não posso adorar o poder dos ídolos. O meu deus é outro e creio no seu advento, que a Terra e o Céu me anunciam.”

No Natal de 2021, novos magos anunciavam o Advento de uma nova Educação. A um coro de esclarecidas vozes denunciadoras de pérfidas formas de abandono intelectual se juntava a voz das crianças:

“Parece que a escola existe para nós não aprendermos”.

Assim se manifestava um jovem, chegado ao projeto Âncora há cerca de uma semana. Até os mais jovens despertavam para o processo de obsolescência da instituição, que os “desaprendiam”. As universidades, as escolas, a ensinagem “superior” e a “inferior” reproduziam o “ensino simultâneo”, que Jean de La Salle introduzira no tecido social do século XVII. Arcaicas e insanas práticas se perenizavam, o abandono intelectual permanecia impune. Tardava uma nova construção social, que pusesse um ponto final num pesadelo de séculos.

Discretamente, como convinha a um português aprendiz de Brasil, eu dedicara os últimos anos da minha vida de professor ao Brasil da Educação. Nesse fraterno envolvimento, eu aprendi mais do que ajudei a fazer o Natal da Educação.

Durante décadas, me juntei a milhares de educadores, na causa das crianças. Voluntariamente, me privei de estabilidade emocional e afetiva. Nas casas de amigos ou na solidão de quarto de hotel, não lamentava o tempo gasto, mas o corpo já se queixava. Chegava o tempo do desapego, de confiar a outros tarefas várias e… descansar.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXLIII)

Luz de Tavira, 24 de dezembro de 2041

Como vos disse na cartinha de ontem, tenho passado os últimos dias garimpando. É atributo dos velhos guardar tudo o que pode, mesmo sem saber se, algum dia, lhe dará serventia. No meu caso, o que me move não é acumular inutilidades. Sei que estou velho, mas alguma lucidez me impele a revelar “manifestos” de extraordinários educadores. De alguns, vivos e ativos; de outros, que perdi na pandemia dos idos de vinte, como o Almir, que faleceu nas antevésperas do Natal – e eu ainda não me tinha refeito da partida do amigo Cortez.

Dou por mim a recordar as idas a Pocinhos do Rio Verde, na companhia do amigo Rubem. Subindo a encosta do sítio, ele me apresentava as árvores, uma a uma. O Rubem plantara árvores em memória de amigos, que haviam “partido antes do combinado” (como dia o Boldrin). O Rubem colocava poesia em tudo o que escrevia e fazia. Prodigamente, erotizava Tanatos, transmutava tristeza em renascimento.

Ontem, encontrei uns papéis escritos pelo Rubem, à mistura com um monte de cd rom. Já ninguém fabrica aparelhos que permitiam reproduzir o seu conteúdo. Só um velhíssimo laptop me revela depoimentos contidos em pen drive. Numa delas, achei uma das crônicas que a minha amiga Tina publicou nos idos de vinte:

“Grandes estudos sobre evasão, apontam um fator em comum: a ausência de interesse pela escola. Desconfio que estes estudos foram feitos por “fazedores de educação”, pois eles não apontavam perspectivas diferentes, como: escolas desinteressantes, metodologias ineficazes, conteúdos sem sentido, padronizações robotizadoras, cobranças irreais etc.

A escola abandonou essas crianças muito antes delas abandonarem a escola. Antes do corpo evadir, o coração e mente já tinham evadido, e ninguém percebeu?

Uma escola que, desde muito cedo, reprime a curiosidade e criatividade das crianças com padronizações absurdas, excludente, competitiva, que desdenha dos diferentes, com volumes enormes de conteúdos fragmentados e desconexos da vida real, com regime autoritário e humilhante, onde os alunos só podem escutar, obedecer e reproduzir, que gera frustração, baixa autoestima e sentimento de inadequação, a evasão acaba sendo uma válvula de escape para alguns.
Encontrei alguns registros de programas para combater a evasão e a maioria atuava com troca – “mande seu filho para a escola e ganhe uma cesta básica”, “R$ 100,00 para estudantes com frequência mínima de 80%”. Eu fico imaginando o corpo contrariado do estudante na escola e o cérebro voando em qualquer outro lugar.

Enquanto a escola for uma fábrica de matar sonhos em linha de montagem, qualquer ação contra evasão será em vão.

É preciso resgatar corações e mentes… os corpos virão juntos.”

Era “barra pesada” a partida dos corpos, levados pela pandemia. Apresentava-se difícil resgatar os corações e as mentes dos sobreviventes. E eu me agarrava à leitura das narrativas de velhos companheiros: do Tuck, do Celso, da Lívia, do André, da Cecília, da Natália, do Luca, da Kátia, da Patrícia, do Pedro, do Helder e de outros, que faziam parte da minha família E, sempre que era chegada  a “festa da família”, à saudade que me assaltava se juntava um sentimento de gratidão, de que era devedor a essa plêiade de excepcionais educadores, que ajudavam a fazer o Natal da Educação.

Nesse dezembro, alguns desses amigos compuseram e me enviaram uma “árvore de Natal” feita de fotos de alguns insignes educadores brasileiros. Ousaram colocar-me na base da árvore. Grato, presumi que quisessem referir-se a mim, não como raíz, mas como um orgânico humus. E agradeci.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXLII)

Quarteira, 23 de dezembro de 2041

Apesar de Portugal receber milhares de imigrantes provindos do Extremo Oriente, da África, do Leste Europeu, a comunidade brasileira era a maior das comunidades estrangeiras. Muitos dos brasileiros residentes eram educadores, que tinham encontrado na Escola da Ponte do início do século a educação desejada para os seus filhos.

De norte a sul do país, muitos dos projetos despontavam, frutos da iniciativa de professores e pais de jovens brasileiros. Sinal evidente de integração social era o fato, por exemplo, de a Presidente da Associação de Pais da Escola da Ponte ser… uma brasileira.

Tenho andado a garimpar umas caixas esquecidas no sótão da casa de Vila das Aves. Entre arqueológicos testemunhos de pedagógicas andanças, encontrei uma velha pen drive, onde guardara “impressões” de uma viagem a Portugal. Pedi autorização à sua autora, para as divulgar. Eis o que a Cléo escreveu, vai para vinte anos:

“Vou falar um pouco das minhas andarilhagem e dos desafios, que me instigaram a mudar de mala e cuia para 7.199,95 km de distância do nosso Brasil. Não sei se, por obra do acaso ou se pura estratégia da Vida, saí do meu país para trabalhar em Portugal, justamente nesse momento crítico, por que passam os brasileiros. Nosso país está como uma nau desgovernada com leme solto. Mas, depois das tempestades, há de vir a bonança, um esperançar freiriano para 2022.

Em breve, vamos voltaremos a sonhar, a comer frango, a ter pão. A poder sorrir, a exercer democraticamente nossa cidadania. Levantaremos a bandeira dos Júlios, dos Henriques, das Lúcias, dos Renes, dos Jeans, dos Krenaks e de tantos outros.

Nesta terra, há 40 anos, um educador juntou-se com duas educadoras e um grupo de pais, e iniciaram um processo de transformação. Me refiro à escola que o  psicanalistaeducador e escritor Ruben Alves se referia:

“Encontrei a escola com que sempre sonhei: a “Escola da Ponte”. Me encantei vendo o rosto e o trabalho dos alunos”. 

Pasmai, leitores! A Ponte é pouco conhecida em seu próprio país. É bobagem! Mas, como diz o velho ditado: “Santo de casa não faz milagres”. Entretanto, é uma das escolas mais visitadas do mundo. O educador Zé Pacheco tem muitos livros publicados mundo afora e nenhuma das obras está publicada em Portugal.

Não irei ater-me na Ponte, mas se faz importante partir dela, para dar continuidade a narrativas luso-brasileiras.

A experiência que estou vivenciado em Portugal em nada se distância da educação que temos no Brasil. Sim, aquela educação bancária do século XIX, representada no “Another Brick in The Wall” dos Pink Floyd. Mas, no hemisfério Sul, acontece uma das maiores transformações educacionais, rompendo o paradigma da instrução, avançando para o paradigma da aprendizagem, alicerçado em escritas e práticas de grandes educadores.

Este prelúdio é um convite para dialogarmos sobre uma nova construção social educacional. Para despertar a válvula motriz chamada curiosidade e o desejo de construir com muitas mãos este sonho. Convido-os para essa partilha e troca sobre Antropogogia e a co-criação de uma Educação Inovadora em Ato.” 

No 23 de dezembro de há vinte anos, educadores éticos se encontraram em Tavira, inaugurando um novo tempo, iniciando a contagem regressiva para o cessar da impunidade.

A Cléo marcou presença nesse encontro do primeiro dia do resto da vida da instituição Escola. E não tardou a embarcar para o seu Brasil, para, com outros extraordinários educadores, ajudar a devolver à escola a sua vocação.

Uma década de mudança e inovação começava nas duas margens do Atlântico.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXLI)

Albufeira, 22 de dezembro de 2041

Completam-se vinte anos sobre uma ida a Portugal muito especial. Para além de corresponder a solicitações, que já não esperava, conheci muitos brasileiros, que encontraram no “país irmão” refúgio e reinício de vida. No início dos anos vinte, por lá andava uma brasileira, a admirável Cleo, que assim descrevia as primeiras experiências em terras lusas:

“Desembarquei em Portugal, com o desafio de conhecer por dentro os movimentos da educação na terra das sardinhas, do bacalhau, dos fados, das poesias, das magias, dos castelos, com suas histórias marcadas por lutas, massacres e “conquistas”.

Em Lisboa, dei um saltinho ao Largo de Camões. Não fui lá turistar, mas acompanhar um grupo de crianças da educação básica, juntamente com um grupo de educadores teimosos, que acreditam, como eu, na construção urgente de uma nova educação. 

O início do cortejo se deu na porta da escola. As crianças foram recebidas com a música “Pedra filosofal” de Antônio Gedeão. No violão, o amigo e educador João. Na voz do educador Tiago, seguido do “coro” dessa amiga que vos escreve, do Professor Zé, das educadoras e dos demais “figurantes”, que transitavam pela rua. Até parecia uma cena de filme.  

Pedacinho da música: “(lá, rá, lá, rá, lá, lá) sempre que um homem sonha, o mundo pula e avança, como bola colorida entre as mãos uma criança (…) não sabem que o sonho comanda a vida)”.

Foi interessante ver pessoas tirando fotos. Outras, gravando no celular, sem entender muito do que ali acontecia, tudo envolto num clima de alegria. Foi um acontecimento, no sentido mais amplo do processo de uma construção viva de conhecimento em ato.  Os olhos dos miúdos brilhavam. Podemos até dizer que iniciamos uma “aula-passeio” do Freinet.

Descrevo aquele acontecimento como um cortejo acompanhado por uma trilha sonora. Lá fomos, rua afora, até ao Largo. Os pequenos seguiam entusiasmados, enxergando outra Lisboa. Abria-se uma outra cidade para eles.  Imaginai para mim!

Na andarilhagem nas ruas, eles iam trocando suas expectativas sobre o poeta, que tinha a sua estátua bem no meio do Largo. Com olhos atentos, os pequenos faziam perguntas, interessados em saber:

“Como Camões perdeu o olho?

Por que tinha uma estátua dele? Ele nem rei era!

Quem o ensinou a escrever poesias?

Por que foi preso?”

Porquês, porquês, porquês… Cada pergunta suscitava outras perguntas, que aguçavam ainda mais a curiosidade e o desejo de pesquisar sobre a famoso personagem. Fazendo um trocadilho com o Krenak: A vida não é útil. A curiosidade, sim! É uma válvula motriz, que move o mundo.

O cortejo não terminou ali. Seguimos para a Travessa das Laranjeiras, lugar simpático e frutífero, literalmente falando. Lá, sentamo-nos sob a sombra das laranjeiras do outono português, um cenário comum nas ruas por onde passei. A válvula da curiosidade foi acionada. E lá veio pergunta:

“Quem deu o nome de Rua das Laranjeiras?”

Continuando o cortejo seguimos para uma tasquinha (pequena mercearia), do avô de uma das crianças, que nos recebeu carinhosamente. Ainda que não entendesse do que se tratava, esses momentos foram reveladores: ainda há quem acredite que o aprendizado se dá dentro de uma sala, ou em grandes caixotes de concreto ou gaiolas, seja lá de que material for?

Tomamos um “galão” e, ali, na pequena e estreita rua, as crianças recebidas com música portuguesa se despediram com música brasileira: “O Sol”, de Vitor Kley. Todos cantando no meio da rua, não como uma despedida, mas com desejo de um reencontro.” 

Se a Cléo autorizar, prosseguirei a transcrição de memórias felizes.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXXX)

Arrentela, 20 de dezembro de 2041

No dezembro do já distante 2021, o amigo André isto escreveu acerca da Open Learning School:

“Não é aceitável um modelo educacional em que alunos do séc. XXI são “ensinados” por professores do século XX, com práticas do século XIX”. Esta citação de José Pacheco tem tanto de verdade como de triste. Por trabalhar em educação, a representar os mais prestigiados colégios e universidades do mundo, escolas frequentadas por filhos de presidentes e multi-milionários, tive a oportunidade de poder ver, pelos meus próprios olhos, aquelas que se consideravam como “as melhores escolas do mundo”.

Percebi que o modelo base de educação era o mesmo: instrucionista. A única diferença eram os cavalos, os campos de golfe e de tênis, até cinema 3D. Escolas onde a diferença era que o professor, em vez de licenciado ou mestrado, era doutorado, e, em vez de 20-30 alunos numa sala, tinham 6 ou 8. Eram todas iguais! Alguém debita – os alunos decoram.

Nunca pensei dizer isto, ironicamente. Quando chegou a minha vez, não consegui encontrar escola para os meus filhos. Três anos de estudo e dedicação fizeram-me perceber que a educação parou no tempo. Tudo mudou, menos a educação. Então, em vez apontar problemas, decidi que queria fazer parte da solução.”

Era genuíno e legítimo o desejo do André de criar uma boa escola para os seus filhos. E, também, para os filhos de outros pais, que já tivessem tomado consciência do que seria uma “boa escola”.

Uma revista desse tempo ostentava na capa um sugestivo título: “Conheça as melhores novas escolas para o seu filho”. A mídia usava e abusava dessa ambígua expressão, estava inundada de um marketing digital baseado em “influencers” e falsos especialistas, que recomendavam produtos ou serviços a potenciais clientes… que não passava de publicidade enganosa.

“Novas” não eram. As lousas digitais não eram mais do que quadros negros do século XXI. Aquilo que distinguia uma “boa” escola não era dispor de aula 3D. Esses enfeites pedagógicos apenas davam um ar de modernidade a práticas, cujos avatares eram fósseis – Montessori criara a sua Casa dei Bambini em 1907. Dewey escrevera o seu livro essencial em 1905. Estávamos em… 2021.

E “melhores” em quê? O consumidor leigo considerava “boa escola” aquela que, desde a creche, ocupasse os primeiros lugares de absurdos rankings.

E o que nos diziam os rankings? Assinalavam escolas cujos alunos mais conteúdos aprendiam? Aprendiam, ou apenas debitavam decoreba em prova e a esqueciam?

A memória era esperta, apagava aquilo que não tinha significado. A bem da verdade se diga que, nessas “boas” escolas, quase nada se aprendia.

E as ditas “boas escolas” cuidariam da formação sócio-moral dos seus alunos? Como se explicaria que, entre as élites que as frequentavam, se contassem muitos corruptos de colarinho branco? Quantos conformistas eram produzidos nas velhas e péssimas “boas escolas”, indo ocupar as cadeiras do poder, incapazes de uma postura humanista e inovadora?

Afinal, o que seria uma “boa escola”? Não seria aquela que a todos acolhesse e a cada qual desse condições de ser sábio e feliz, independentemente de ter patrocínio público ou privado? Não seria aquela que desenvolvesse excelência acadêmica e inclusão social?

Seria preciso enjeitar maniqueísmos fúteis, questionar o mito da “boa escola”, pugnar para que todas as escolas a todos garantissem o direito à educação, a uma educação humanizadora.

Pressenti verdade nas palavras e amorosidade na intenção. Isso bastou para que ajudasse o André a fazer uma verdadeira boa escola.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXXIX)

Lagos, 19 de dezembro de 2041

Participei da criação do primeiro centro de formação do meu país. Nasceu sob o signo da dissidência, relativamente à formação que, então, se fazia. Realizamos centenas de ações de formação continuada. Mas, nunca o fizemos recorrendo a modalidades formativas instrucionistas, como o curso, os módulos de curso, os seminários, os treinamentos, ou estágios. Elegemos os círculos de estudos e as oficinas como práticas de uma formação isomórfica, adequada aos projetos, que acompanhávamos e que tinham por referência o paradigma da aprendizagem.

E chegou o momento das interpelações:

“O vosso projeto fala sobre os orientadores educacionais, no item 29: “A formação inicial e não-inicial dos orientadores educativos deve acontecer em contexto de trabalho, articulando-se a Escola, para esse efeito, com outras instituições”. Será que poderiam deixar mais claro?”

Efetivamente, “clarificamos”:

“Por detrás de toda a mudança efetuada na Ponte, há um conjunto de reflexões (teoria) que as sustenta. No caso da formação, existe uma dissertação com muitas páginas, que não ouso transcrever, mas de que extraí alguns excertos, que poderão ajudar a responder. Estes excertos têm três defeitos, para além de outros: refletem a realidade portuguesa (bem diferente da brasileira), restringem-se à modalidade de formação que adotamos na Ponte (o círculo de estudo) e estão “datados” (a dissertação foi escrita entre 1991 e 1994). Mas creio que se manterá atual.

“No campo da formação, as iniciativas foram tradicionalmente marcadas por uma preocupação eminentemente técnica. Visavam rituais de atualização concebidos por organismos centrais ou regionais do Ministério da Educação, com recurso frequente a instituições de formação inicial de professores. Os formadores refletiam uma profunda ignorância relativamente a problemas específicos deste ciclo de ensino e escudavam-se, inevitavelmente, na transmissão de conteúdos teóricos.

Estes encontros tiveram uma virtude. Foram oportunidades não desperdiçadas por alguns professores para interpelar a própria formação. Alguns segmentos conjunturais foram, deste modo, abertura para a concepção e desenvolvimento de projetos locais. E se alguns outros projetos foram anulados pela intervenção da hierarquia administrativa, outros houve que resistiram à erosão do tempo.

O modelo acolhe e valoriza a formação nos contextos mutáveis de trabalho, pauta-se pela flexibilização e pela harmonização com a aprendizagem informal. Não distancia a formação dos professores das realidades organizacionais em que os indivíduos atuam e reconhece que a ação educativa é apenas uma das componentes, um dos possíveis momentos de um processo de formação de adultos, e que, per si, uma ação educativa não é automaticamente formadora.

Em outras modalidades, a formação é concebida num espaço isolado dos contextos em que a aprendizagem se desenvolve. Pressupõe que a informação e a formação são dois momentos cumulativamente justapostos, numa linearidade simples.

A oposição entre teoria e prática é ultrapassada por uma praxeologia que confere à experiência um estatuto de fonte de conhecimento, enquanto objeto de reflexão e de produção dos próprios conhecimentos. A formação é um meio e não um fim em-si-mesma. Os professores são mediadores de formação. Passam da valorização do saber à sua partilha, inseridos num sistema social em que detêm competências específicas (…).”

A “clarificação” é texto demasiado longo, para ser transcrito numa só cartinha. A ele voltarei.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCXXXVIII)

Praia Verde, 18 de dezembro de 2041

Nesta cartinha, ainda vos falarei sobre a cidadania que se fazia na Ponte dos idos de setenta, partindo de interrogações de quem nos visitava.

“Os alunos que chegam de um modelo tradicional de ensino costumam não entender a linguagem e a prática da liberdade, que se usa na Ponte. Usa-se a autoridade, e gostaria de saber como isso é realizado. As regras da escola são colocadas logo no início, ou são realizados “acordos”, conforme o comportamento de cada aluno? Existe “premiação”? Como isso se dá na prática?”

Um professor da Ponte respondeu:

“As regras são propostas, debatidas e aprovadas pelos alunos, nas reuniões de Assembleia de Escola. A Mesa da Assembleia e a Comissão de Ajuda são as maiores responsáveis pelo seu cumprimento. Mas, todos se ajudam mutuamente, para que as regras sejam por todos respeitadas.

Não há “premiações”. Se um aluno cumpre as regras, não faz mais que a sua obrigação. O exercício da cidadania é obrigação pessoal e social.

É a autoridade (não o autoritarismo!) que suporta todo o desenvolvimento emocional, afetivo e sociomoral dos alunos. O carinho e a firmeza são administrados em doses variadas e com bom senso.

Como isso se faz é difícil explicar. Só vendo. Para além dos dispositivos e estratégias a que recorremos, a assunção da autonomia condimentada com a solidariedade e a responsabilidade continua, em muitas circunstâncias, a ser um mistério…

Existe diferença entre educar PARA a cidadania e educar NA cidadania. O professor Rubem Alves ficou impressionado com o fato de, nas reuniões da Assembleia, todos respeitarem a vez de o outro falar.”

Outro visitante retomou a questão anterior:

“É assim mesmo? Como é aprender isso? Quais os assuntos mais tratados nas assembleias?

E uma aluna da Ponte respondeu:

“A sua pergunta fez-me refletir muito sobre a filosofia da Escola da Ponte. Para ser sincera, tive algumas dificuldades em formular uma resposta digna de tal pergunta. Na Ponte, costumamos dizer que a Educação deve ser na cidadania, porque todos os alunos são cidadãos dotados de capacidades e de personalidade. O educar para a cidadania parte do princípio de que os alunos ainda não são cidadãos. Preparam-se os alunos para participar nas eleições, mas não participam em assembleias, por exemplo.

O fato de sermos vistos como alguém que, embora seja novo, é já uma pessoa com opiniões e ideias próprias, fez-nos crescer mais depressa e ganhar mais responsabilidade. Isto faz-nos sentir pessoas incompletas, que poderão vir a ser cidadãos, mas que não passam de um projeto disso.

O bom desta escola é que os deveres cívicos nos são “incutidos” de uma forma suave e não através da imposição. Ou seja, quando dizemos a uma criança que tem de fazer isto ou aquilo, ela recusar-se-á devido à sua tendência natural de quebrar regras impostas. Se lhe explicarmos a razão pela qual deve proceder dessa maneira, ela aperceber-se-á da importância de respeitar para ser respeitado. É assim que, na Escola da Ponte, aprendemos os valores que regem a vida em sociedade.

Os assuntos mais tratados em assembleia são, normalmente, relacionados com o funcionamento da escola (responsabilidades, direitos e deveres…)

A Ponte tem um especial cuidado em relação às crianças que vêm de outras escolas. Os orientadores educativos, os funcionários, mas também os alunos já residentes, dedicam bastante atenção aos novos colegas, ajudando-os a ambientarem-se a esta comunidade escolar e, também, aos círculos de amizade já existentes. Assim sendo, julgo que será fácil para os novos alunos a sua iniciação.”

 Por: José Pacheco

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