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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXXXIV)

Freixo de Espada à Cinta, 30 de março de 2042

Os jornais de março de há vinte anos davam conta do desfecho fatal de um conflito familiar: Um adolescente de treze anos de idade matou mãe e irmão, só por lhe terem pedido e, depois, impedido de jogar num computador. O pai ficou em estado grave. O jovem alegou que a motivação para ter cometido o que fez foi porque “os pais o estavam privando de jogar um jogo de que ele gostava, o “Roblox” (sic). 

Por essa altura, um vídeo que mostrava a agressão a uma professora “viralizou”. Um casal de médicos prestou-lhe os primeiros socorros. Depois de atendida na Emergência, a professora recebeu, ainda no hospital, uma bela homenagem de seus alunos e se emocionou. 

Nas redes sociais, os internautas diziam-se comovidos com a violência de um jovem contra uma docente. Evidentemente, tratava-se de um episódio de uma série chamada “Sob Pressão”. Na vida real, professores tinham sido assassinados.

Nos campos de batalha em que as escolas se haviam transformado, raramente alguém se condoía. Porque, quando professores eram desrespeitados, insultados, ameaçados, agredidos, dentro e fora das salas de aula, havia lugar a… indemnização.

Uma professora agredida por um aluno, em sala de aula, foi indemnizada com vinte mil reais, por “danos morais”. O tribunal manteve a decisão que condenou o Estado de São Paulo a pagar essa quantia. Para o colegiado, “era dever do Estado fiscalizar o estabelecimento educacional e punir comportamentos inadequados de alunos sob sua responsabilidade” (sic).

Na Universidade de Coimbra, constava que uma professora fora acusada de insultar alunos e de “marcar falta a estudantes das ilhas e estrangeiros, por considerar que estes não falavam português” (sic). A direção da Faculdade desconhecia a situação, enquanto o Núcleo de Estudantes adiantava ter recebido um e-mail e estar em averiguações. Era alegado que a professora teria identificado uma aluna como “gorda”, ao perguntar se ela estava a faltar à aula. E que a professora “era conhecida por comentários xenófobos”.

Fosse ou não fosse verdade, certo era que a “ponta de um iceberg” se tinha avistado. E que acusações falsas, ou verdadeiras, eram reveladoras do “clima de escola” de muitas instituições desse tempo. A educação familiar, social e escolar estava infetada por uma inversão de valores, onde radicavam conflitos de menores dimensões e onde ganhavam raízes comportamentos pré-bélicos. 

No meu tempo de juventude, pouco depois da Segunda Guerra Mundial, já não havia uma “Juventude Hitleriana”, mas a Ditadura de Salazar impunha as regras da “Mocidade Portuguesa”. Independentemente dos contextos históricos, encontrávamos sintomas de pré-guerra: nacionalismos exaltados, conflitos étnicos e religiosos, ressentimentos, ódios.

Pitágoras dixit: 

“Educai as crianças e não será preciso punir os homens”. 

E o meu amigo Isaac assim refletia: 

“Os valores humanos fazem parte de formação da consciência através de princípios morais e éticos que são construídos socialmente e fundamentais para o convívio humano. Entre os valores humanos podemos citar: o respeito, a garantia de convivência social pacífica e justa, a humildade, o senso de justiça e a solidariedade.

Revisitando a história da espécie humana, infelizmente, esses e outros valores humanos não foram utilizados em sua plenitude, gerando um cenário de exploração humana, violência, falsidades, hipocrisia, corrupção, consumismo, desrespeito aos direitos humanos, destruição da natureza, fome, guerras, migrações forçadas, genocídios e injustiças”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXXXIII)

Almendra, 29 de março de 2042

Felizmente, já lá vai o tempo em que se fazia prova, teste, exame, o tempo em que Freudenthal isto escreveu: 

“O exame torna-se um objetivo; o que vem para exame; um programa; o ensino da matéria para exame, um método”. 

Porém, ainda hoje, o dicionário insiste em dizer que prova é “aquilo que atesta a veracidade ou a autenticidade de algo”. Uma prova, um teste dos idos de vinte caberia nessa definição? É o que iremos ver…

Se quiséssemos falar de avaliação em linguagem de gente, poderíamos dizer que a quase exclusiva utilização de um mesmo tipo de instrumento de avaliação foi responsável por graves erros. Atenda-se ao exemplo do candidato a medicina, que não acedeu ao curso desejado por diferença de… “uma centésima”. 

Por volta do ano 2000, um ministro afirmara que as provas globais começavam a ser inúteis. Vá-se lá saber por quê, outro ministro ressuscitou um tenebroso debate alimentado pela ingenuidade de uns quantos “docentes” e do reacionarismo de tantos outros. Se outra razão não existisse para acabar, definitivamente, com exames, uma razão se imporia. Associada à ideia de exame havia sempre a probabilidade de utilização de cábulas, “cola”, “copianços”. 

Para obstar a desonestas atitudes, para cada sala de exame que se prezasse eram escalados professores que, supostamente, seriam o garante de que os examinados não “copiariam”, não “colariam”. Embora o mais provável fosse que os pedagogos-polícias também tivessem “colado”, “copiado”, quando alunos. E, mais do que provável seria que também tivessem sido vigiados. 

Seria possível distinguir um professor de um polícia? Os “vigilantes” partiam do pressuposto de que todo o aluno era, até prova em contrário, potencialmente desonesto. Embora estivessem calados, o não-verbal transmitia valores negativos. Haveria princípio e prática mais antipedagógicos do que esses? 

Um exame era, normalmente, um teste de papel e lápis, que pouco ou mesmo nada avaliava. Quase só media a capacidade de retenção de informação na memória de curto prazo. Informação inútil debitada por um dador de aula e, depois, esquecida. 

Qualquer professor minimamente informado das coisas da docimologia sabia que o teste era o instrumento de avaliação mais falível que se conhecia e que havia modos mais fiáveis de avaliar. Quem não os conhecia aplicava testes, somava “resultados”, fazia divisões…”dava nota”. 

O exame de acesso ao ensino dito “superior”, por seu turno, era mero instrumento de discriminação, de seleção arbitrária, exclusão e darwinismo social. Por ironia, na tradição académica, o “bom professor” era, frequentemente, o que conseguia mais elevados índices de reprovação. Era evidente a ingénua crueldade das vítimas da rigidez e do acriticismo. Os exames constituíam-se, não raras vezes, em instrumentos de poder simbólico, álibis de profissionais acomodados, alienados. 

Eu poderei entender que os leigos dessem tratos de polé ao assunto e abordassem a problemática na perspectiva do senso comum. Até poderia entender que, à míngua de uma sólida e coerente formação, muitos professores se refugiassem na segurança do que melhor conheciam e dominavam – quais os instrumentos de avaliação que a maioria dos professores aprendera a dominar dos bancos da instrução primária à docência? As “fichas”, as provas, os exames orais e escritos.

Só não conseguia entender os “responsáveis ministeriais” e os “especialistas” que insistiam na ideia peregrina e facilitista de que os exames poderiam constituir-se na panaceia redentora dos males que afetavam o “sistema”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXXXII)

Carvalhal de Atalaia, 28 de março de 2042

“Oi! Tudo bem? Ontem, na sala de aula, pedi aos alunos que respondessem a algumas perguntas nuns papéis que lhes entreguei. Dentre elas, o que queriam aprender. Alguns disseram nada, outros disseram matérias como história, matemática, português, cópia, ditado, porcentagem, fração… Gostaria de uma ajuda sobre como proceder. Muito obrigada”.

Ajudei como pude ajudar essa professora surpreendida com as reações dos seus alunos, quando começou a fazer perguntas que, desde sempre, deveriam ser feitas. Tomou consciência de que os seus alunos “Nota 10” estavam doentes de conformismo, de normose, estavam escolarmente domesticados. 

Se lhes perguntasse o que gostaria de saber, ou fazer (dois dos pilares da educação estabelecidos pela UNESCO) responderiam:

“Eu posso dizer o que quero saber e o que quero fazer?”

Já não faziam perguntas, nem sabiam o que responder. A curiosidade infantil se esvaíra. Já tinham escutado milhares de respostas a perguntas que nunca tinham feito. 

Se lhes fosse perguntado o que queriam ser, a resposta mais provável seria:

“Não sei!”

Tinham sido proibidos de perguntar. Já tinham perdido o hábito de interrogar a vida. Nem “O que eu sou? De onde vim?” restava. 

Ficastes surpreendidos, queridos netos, quando o vosso avô ousou afirmar que, também pela “avaliação” que praticavam, as escolas estavam fora da lei. Mas, nada mais certo! Nos idos de vinte, a lei estabelecia que a avaliação fosse formativa, contínua e sistemática. A prova (o teste, o exame) raramente era formativa, era periódica e incidia numa parcela de matéria de uma qualquer disciplina. Contrariava o disposto na lei. e quase nada avaliava. Se não, vejamos… 

O Manelinho obteve um vinte (nota máxima!) no exame de Educação Ambiental. Os orgulhosos pais presentearam-no com uma nova consola de jogos. O jovem recolheu ao quarto, desfez o embrulho e aprontou os polegares. O invólucro de plástico, a caixa e demais desperdícios sem serventia atirou-os o Manelinho janela fora, que nisso ele saía ao pai, exímio no arremesso de caroços de fruta e pontas de cigarro pela janela do carro. Quem sai aos seus… 

A Tininha, colega de turma do Manelinho, aluna menos voltada para a decoreba, tinha arrancado um tangencial 9,5 no mesmo exame. 

A Tininha foi visitar o colega. Antes de tocar à campainha, recolheu o lixo espalhado no passeio mesmo por baixo da janela do quarto do Manelinho. E colocou-o no contentor, mesmo ali ao lado. 

Enquanto refletimos sobre o visível paradoxo, passemos os olhos por uma carta que recebi de um professor da escola do Manelinho e da Tininha: 

“Agora, que o fim do ano está aí, é que começam as polémicas. Se calhar, porque na estratégia de mudar devagarinho, chegamos a um ponto difícil de engolir para muita gente. A tal gente que, como bem referes, pensa que só há uma maneira de ensinar e que tudo passa por exames finais. 

Nos períodos anteriores, até fui fazendo as ditas fichas, aquelas que eram recomendadas na formação que fizemos com o Domingos. Decidi que no 3º período não as haveria. Muito menos “provas finais”. Mas, alguém me disse que era obrigatório fazer as ditas provas, para ficarem arquivadas no processo. 

O mundo está doido. Imagina que os alunos das outras turmas estiveram 15 minutos a copiar do quadro a matéria (certamente inorgânica) que vai sair nas ditas provas finais, as tais que vão decidir quem passa e quem não passa. 

Enfim, meu amigo! Temo que a escola seja a mesma por muito tempo. Uma triste mesmice. 

Um abraço de um professor desiludido com o que vê à sua volta, mas cheio de vontade de continuar”. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXXXI)

Pinhel, 27 de março de 2042

Foi preciso chegar a septuagenário para se reacender a chama de alguma “fé pedagógica”. No março de há vinte anos, a pasta da Educação foi entregue a um João, elevado a ministro de um governo de maioria absoluta. 

Vai para uns trinta anos, o amigo Nóvoa afirmava que pela via de reformas reformadas, tudo continuaria igual. E que o bem da humanidade ia muito para além dos interesses e benefícios pessoais. Que nada poderia ser pensado apenas à luz do tempo imediato, mas colocado à vista de um futuro, que não dispensava os educadores das responsabilidades no presente.

E Morin assim resumia a situação: 

“A sociedade produz a escola, que produz a sociedade. Desde logo, como reformar a escola, se não se reforma a sociedade? Mas, como reformar a sociedade se não se reforma a escola?” 

Em pleno contexto da quarta revolução industrial, as medidas de política educacional continuavam a reproduzir um modelo de ensinagem caraterístico da primeira. O dito “sistema” continuava à deriva, deixando para os vindouros um rastro de reformas fósseis. O novo ministro, beneficiando do fato de exercer o seu mandato num governo de maioria absoluta, iria permitir que se adiasse a mudança necessária e urgente?

Reagi a uma publicação que o amigo António deixou no Facebook:

“Se o João ousar fazer o que é preciso que se faça, irá encontrar muitos obstáculos num monstro burocrático que dá pelo nome de “Ministério da Educação”. Precisará de ajuda”.

Ao que o meu amigo respondeu:

“Amigo Zé, há muita gente que pode e está disponível para o ajudar. Acreditemos, tenhamos paciência e confiança na sua capacidade de ação. Eu acredito que o João é capaz disso, com a inteligencia e a sensibilidade que o caracterizam”.

E a Manuela, a minha inspiração do Movimento da Escola Moderna, acrescentava:

José Pacheco estou de total acordo. o monstro burocrático é enorme e o que o JC vai encontrar pela frente não lhe vai dar uma vioda fácil, mas ainda bem que foi o escolhido”.

E o António completou a troca de mensagens:

“Estimados Zé e Manuela, desmantelar o “monstro burocrático” é algo que faz parte das reformas de fundo, que o nosso ministro da educação tem pela frente. O António Costa referia, em 2021, na apresentação do Plano de Recuperação e Resiliência: 

“O Estado, para ser forte, tem de ser ágil e leve. (…) O Estado tem de libertar-se da burocracia”. 

Para tal, entendo que, como não me canso de referir e está escrito: “todas as estruturas do ministério da educação (administração central, regional e local) devem ser sujeitas a uma auditoria de sistema, desburocratizando, refocalizando funções e melhorando os quadros de pessoal (renovação, rejuvenescimento e incidência do trabalho na sua missão).” 

Como tal, espero que a maioria absoluta que o PS obteve não signifique mais “jobs for the boys” (tomada da administração pela estrutura partidária), nem a manutenção “ad-eternum” de pessoas nos cargos de ocupam (8 anos para mim é o limite das chamadas comissões de serviço). 

Conclusão: este é um dos muitos desafios de João Costa tem pela frente. A expectativa em torno da sua ação é grande, de facto. Por isso, a sua responsabilidade é ainda maior. Mas, acredito que ele e a sua equipa (também renovada, espero) conseguirão ter sucesso”.

Pouco antes da nomeação do João, o António publicara um livro com o título “RECRIAR A ESCOLA PÚBLICA, REFUNDAR O SISTEMA EDUCATIVO”. Seria uma obra premonitória? Seria mais um livro para agonizar no arquivo dos sem serventia? O que fosse, quando fosse, é que seria o que fosse, pelo que completei a troca epistolar com um conselho: “Oremos”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXXX)

Vilar Formoso, 26 de março de 2042

No mês de março de há vinte anos, a abjeta guerra nos atravessava em comunicação síncrona. Obscenas imagens açoitavam olhos vazios, impotentes. E eu, educador, me descobria indireto causador dessa e de outras tragédias. 

Ao longo de meio século, eu acumulara muitos insucessos, embora contribuísse para ajudar a sustentar resilientes projetos. Pesava-me a consciência de ter alimentado a esperança de educadores que, vendo destruídos os seus sonhos, acabaram no divã do psiquiatra, ou migraram para profissões de menor risco. 

Chamavam-me utópico só porque nunca desisti de acreditar que, algum dia, a idade da educação chegaria. E começava a chegar nesse mesmo mês. No Portugal profundo, a saudável “invasão” de uma nova geração de jovens entre os vinte e os quarenta dava novo alento a um septuagenário. 

Fui ao seu encontro. E, em insuspeitas paragens, conheci gente de uma nova humanidade. Nas redes sociais, a Alice comentava um desses encontros de partilha de uma benigna “loucura”:

“Ontem, tivemos oportunidade de sonhar alto, sonhar com uma escola diferente, feita pela comunidade, para a comunidade. As escolas são pessoas. Fazer diferente é possível, é realista e é urgente, é ser cidadão. 

Sonho com um interior de Portugal cheio de força, de autonomia e com um mar de escolas centradas no aluno e na comunidade. Figueira de Castelo Rodrigo já começou esse caminho e assim vai continuar ganhando pessoas a cada passo. Agrupamento de Escolas de Figueira de Castelo Rodrigo, Plataforma de Ciência Aberta, muitos parabéns por tudo o que têm feito!”

Seres admiráveis como a Alice davam-me novo alento, me diziam ser preciso não desistir. Possuíam plena consciência da necessidade de inventar uma nova educação para os seus filhos e para os filhos dos filhos dos seus filhos:

“Estou mesmo a terminar de ler um dos livros mais importantes que alguma vez li, sobre a importância da relação entre pais e filhos, e como ela é essencial para o desenvolvimento pleno de um ser humano. 

A nossa sociedade está verdadeiramente doente, em tantos aspetos, mas este de não darmos às crianças a aldeia de que elas precisam para crescer é grave e está a transformar as nossas famílias e comunidades para pior”.

As palavras da Alice despertaram memórias de velhos escritos. Como uma cartinha enviada a outra Alice:

“Querida Alice, recordar-te-ás de que uma escola que acolheu no seu seio duas gaivotas e pássaros aprendizes, que partiram da escola das aves levando na bagagem gestos e saberes adquiridos nas origens, mas também o desprendimento e a confiança necessários à construção de novos ninhos.

Faltaria apenas entender os sinais e os perfumes de outros pássaros, sentir o pulsar de outros lugares, outras verdades. Pois, como disse o Pássaro Encantado (de que te falei numa outra carta), a verdade não é uma só, nem é só nossa, vivendo, sob múltiplas formas, em todas as pessoas e em todos os pássaros.   

Os primeiros tempos foram de prudente expectativa, mas também de disponibilidade. Em tudo o que se relacionasse com as aprendizagens que os jovens pássaros devessem fazer, seria de fazer também a pergunta fundadora: seriam os pássaros ensinantes (quer os recém-chegados, quer os residentes) capazes de assumir a construção em comum de um locus de aprendizagens que fizesse dos aprendizes pássaros sábios e felizes?  

As gaivotas sabiam que tais aprendizagens não seriam viáveis em processos de transmissão como o dos vasos comunicantes, mas que se colariam às asas, se o voo ensinado e aprendido fosse colado à vida de outros diferentes pássaros”. 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXXIX)

Dornelas do Zêzere, 25 de março de 2042

No março de há vinte anos, milhões de mulheres e crianças ucranianas buscavam refúgio na Europa assolada por uma guerra muito antes anunciada. Ao final de um mês de destruição e morte, Zelensky dirigia apelos a outras mães: às mães russas, acreditando que elas também amassem os seus filhos. 

Pampilhosa da Serra foi lugar de amparo de cinco mães ucranianas e dos seus cinco filhos. Durante o jantar de acolhimento, num misto de português e ucraniano, a Tânia evocou familiares. Comovida, numa fala feita de dor e gratidão, agradeceu a hospitalidade dos pampilhosenses.

Na obra “O Último Voo do Flamingo”, Mia Couto ajudava-nos a compreender a trágica situação vivida na Ucrânia de 2022: 

“A Guerra nunca partiu, filho. As guerras são como as estações do ano: ficam suspensas, a amadurecer no ódio de gente miúda”.

Era bem verdade! Outros conflitos sangrentos ocorriam. Na Etiópia, novecentas mil pessoas morriam de fome, por efeito de um dos conflitos mais brutais entre grupos étnicos, com relatos de assassinato de civis e estupros em massa, segundo denunciava a Anistia Internacional. No Iêmen, a guerra causava o pior desastre humanitário de que havia memória. Mianmar vivia em permanente guerra civil. Milícias locais atacavam comboios militares e assassinavam autoridades. O Haiti vivia uma nova espiral de violência. Na Síria, protestos transformaram-se em guerra civil de grande escala, causa de 380 mil mortos e cidades arrasadas. Em Moçambique, militantes islâmicos sequestravam e decapitavam um sem-número de pessoas. No Afeganistão, a guerra não cessara. 

Ao falar da “Alegria de Ensinar” e comentando a reprodução escolar como uma das raízes da violência e das guerras, o amigo Rubem nos deixou reflexões essenciais:

“Acho que é uma repetição do que acontece nas escolas. As crianças são ensinadas tão bem, que se tornam incapazes de pensar coisas diferentes. Tornam-se ecos das receitas ensinadas e aprendidas (…) basta repetir aquilo que a tradição sedimentou e que a escola ensinou. O saber sedimentado nos poupa dos riscos da aventura de pensar.”

De uma das últimas canções compostas por Leonard Cohen extraí alguns versos: 

“Os pássaros cantam no romper do dia: comece de novo / Eu os escuto dizer: não se apoie naquilo que passou, ou naquilo que está para vir / Ah, as guerras! Elas serão lutadas de novo / A pomba sagrada será apanhada novamente, comprada e vendida e comprada de novo / Todo coração virá para amar como um refugiado / Toque os sinos que ainda pode tocar / Há uma falha em tudo / É assim que a luz entra”.

Havia sempre “uma falha em tudo”. Era por aí que “a luz entrava”. Disso me dera conta, anos antes, quando tomei consciência do quanto a educação influía no destino dos homens. 

Nos anos setenta, fui em demanda da “falha” por onde a “luz” pudesse entrar. Acreditava que escola que reproduzia um modelo social sustentado na violência simbólica poderia ser a escola que afirmasse a possibilidade da paz. 

Naquele tempo, havia muitos professores que arriscavam buscar a “falha”, mas raramente se fazia luz.

“Estais a meter-vos com gente de muito poder! Parece que quereis comprar uma guerra”. 

Nos idos de setenta, aconselhavam-nos a “desistir de quixotescas intenções”. Respondíamos, dizendo não querer “comprar uma guerra”. Ela já ali estava, antes de nós. 

Na Ponte, acreditávamos que se poderia sair do círculo vicioso da reprodução escolar e social, por via do exercício de uma solidariedade ativa”. E, meio século após a Ponte, em terras beirãs, assente na solidariedade dos povos, se inaugurava uma era de Paz.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXXVIII)

Vila Nova de Foz Coa, 24 de março de 2042

Num final da tarde de um dia de março de há vinte anos, encontrei-me com educadores da Beira Interior, gente que decidira partir do que era para ser mais e servir bem melhor. Foi o tempo de encontrar nos cafundós de lusas terras o material humano necessário para a redenção da escola. E uma das manhãs desse tempo foi uma das primeiras manhãs do mundo. Lá fora, frio e um céu pedrento ameaçando chover. Na Internet, uma surpresa: ainda havia Vida em Vila Nova de Foz Coa.

Nesse mesmo dia, na cidade mártir de Mariupol, a barbárie se expandia. O exército russo bombardeava uma escola onde mulheres, crianças e idosos precariamente se protegiam. Nessa semana, mais de cinco mil crianças ucranianas já tinham sido autorizadas a ficar em Portugal. Na Pampilhosa, assisti ao amoroso acolhimento de cinco mães ucranianas e seus filhos. 

Se quiserdes, isso vos contarei em próximas cartinhas. Nesta, vos falo da minha primeira passagem por Figueira de Castelo Rodrigo. 

O Maia se apaixonara por uma figueirense e por lá ficara. Décadas de dedicação ao ensino de Filosofia culminaram na presidência do Agrupamento de Escolas. Marcamos encontro no restaurante do Jorge. Mal a conversa começou, o Maia traçou na toalha da mesa uma linha imaginária norte- sul: 

“A maior parte do investimento vai para o litoral. Para as regiões do interior, apenas ficam migalhas. Os jovens vão embora. Nada têm que lhes interesse, por aqui”.

No interior beirão, havia aldeias onde crianças não havia. E, na cidade grande, uma mãe se queixava:

“Tenho dois filhos. Todos os dias, levo o João à escola, no extremo da cidade. Depois, levo o meu outro filho à escola que fica no extremo oposto. Fica-me muito caro ter de fazer estas viagens. E fique sabendo que há uma escola a cinco minutos de minha casa”.

Por via da segmentação em anos e ciclos de escolaridade, fortunas eram gastas em “transporte escolar”. Muitos euros eram desperdiçados para levar os filhos à escola, porque se supunha que as escolas eram edifícios. Milhões de euros foram gastos na construção de “centros educativos”, que o tempo transformou em “elefantes brancos”.

Longe vai o tempo do desperdício, mas senti necessidade de refazer a memória do “legalismo” daqueles professores que afirmavam que as leis vigentes não permitiam mudar as escolas. 

Um estudo da Lorraine Moureau nos dizia que um terço dos professores era muito bom, um terço poderia ficar bom, um terço deveria mudar de profissão. Chamemos aos primeiros aquilo que eles eram: professores. Designemos os segundos por “quase-professores”. E… os “outros”.

Um professor contou-me o sucedido numa reunião de Conselho Pedagógico. Apresentou um projeto de acolhimento de crianças ucranianas. Um terço apoiou. Outro terço se quedou num silêncio expectante. Pela voz de uma professora de português (que dizia não gostar de ler) se pronunciou o terço restante (os “outros”): 

Isso até pode resultar, mas a lei não permite. Poderá até se estender ao resto da escola e termos de fazer mais papelada. Já chega o que temos que fazer! E, agora, ainda mais com os ucranianos… Eu acho que o que é preciso é dar um tiro na cabeça do Putin.” 

A ingenuidade pedagógica e a ausência de senso crítico, levara a professora a “achar” que o Putin era o único responsável pelo cortejo de horrores, que desfilava pelo écran da televisão e pela tela dos computadores. Não tinha noção da sua quota parte de responsabilidade, como reprodutora de um modelo educacional iníquo, gerador de egoísmo, xenofobia, homofobia, miséria, fome, guerras e outras patologias e chagas sociais.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXXVII)

Mata dos Lobos, 23 de março de 2042

Queridos netos, talvez não por acaso, num furtuito encontro de aeroporto com a Inês, o meu andarilhar me levou para terras da Beira Alta. Andou o vosso avô visitando escolas, estabelecendo pontes de entendimento com educadores esperançosos, procurando encontrar modos de inverter um discriminatório processo de desertificação. Por décadas, critérios de natureza economicista originaram o despovoamento do interior de Portugal e as aldeias do interior beirão ficaram vazias de crianças. 

No mês de julho de 2017, a Plataforma de Ciência Aberta surgira como o primeiro centro da rede internacional Open Science Hub, numa parceria entre o Município de Figueira de Castelo Rodrigo e a Universidade de Leiden (Holanda). E a excepcional equipe da Maria Vicente já se integrara na comunidade figueirense, “com a missão potenciar o envolvimento e a participação cívica com a ciência, promover o diálogo entre cientistas e cidadãos e despertar o interesse da comunidade na construção de conhecimento e valorização do território”. Muito eu aprendi com essa boa gente!

Enquanto, no extremo ocidental da Europa, se buscava caminhos de humanização, no extremo oriental, a Ucrânia agonizava. Tropas russas matavam dez pessoas, que se encontravam numa fila para comprar pão. No seio de três milhões de refugiados, a pandemia de coronavírus dava lugar a um novo drama humanitário, numa população em fuga e hospitais destruídos. 

O idoso jovem Mujica juntava a sua voz à daqueles que, criticamente, comentavam a tragédia ucraniana:

“Será possível que a humanidade do futuro possa abandonar os orçamentos militares, a loucura da guerra?

Que sentido tem o avanço tecnológico, se do ponto de vista da vida humana, seguimos prisioneiros de uma civilização que confunde ser com ter, numa inversão de valores que assusta.

Que sentido têm os orçamentos militares do nosso tempo?

Se a guerra é o modo de resolvermos conflitos, continuaremos na pré-história. Com a única diferença de que a barbárie dos humanos primitivos parece uma brincadeira de criança comparada à barbárie dos humanos contemporâneos. Que nos demos conta da responsabilidade coletiva! É impossível sonhar? É impossível, no mundo de hoje, levantar a utopia de que o homem se pode melhorar a si mesmo como sociedade?”

Instado a se pronunciar sobre a tragédia ucraniana, veemente, o Fernandes, político profissional, vociferou:

“E o que é que eu tenho a ver com isso?”

Tudo! Quota parte de responsabilidade deveria ser imputada à política educacional nesse tempo hegemônica, a uma escola desumanizada, berço de desigualdade, fomentadora de competitividade negativa, de conformismo.

Quando, na década de setenta, um inspector me ordenou que voltasse a trabalhar sozinho – “na sua sala, com os seus alunos, como a lei estabelece – respondi-lhe, fundamentando, que a nossa profissão não poderia continuar a ser uma profissão solitária, mas solidária. 

E lá se foi o inspector, sem lograr impor a sua “lei”. 

Não se pense que são bravatas. Isto acontecia, há já muitos anos, numa escola deste país, sujeita às mesmas leis que as restantes escolas. Já então, eu nutria uma profunda ternura pelos inspectores que nos visitavam. Diferentes dos inspectores de hoje, também eram boas pessoas, mas nada sabiam de pedagogia. Explicávamos-lhes os nossos pontos de vista e eles entendiam. Debatiam-se entre o estabelecido pela lei e a evidência (prática e teórica), e acabavam por reconhecer a pertinência das nossas atitudes, porque o que lhes faltava em conhecimento sobrava-lhes em bom senso.

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXXVI)

Almeida, 22 de março de 2042

A Nilce era um anjo que andava pela Terra. Dizem que os anjos não choram, que apenas se compadecem da humana infelicidade, mas a Nilce era um anjo que chorava. Entre lágrimas, me falou assim:

“Espero que tenha tido uma semana de Paz. Mundo estranho aquele em que vivemos. Sei que não vai apaziguar a sua tristeza perante o holocausto ucraniano, mas me atrevo a tentar, com uma oração escrita por um clérigo:

“Senhor, perdoai-nos a guerra. Senhor Jesus, nascido sob as bombas de Kiev, tende piedade de nós. Senhor Jesus, que morrestes nos braços da mãe num bunker em Kharkiv, tende piedade de nós. Que vedes ainda as mãos armadas à sombra de vossa cruz, tende piedade de nós. Perdoai-nos se, não contentes com os pregos com os quais transpassamos vossa mão, continuamos a beber do sangue dos mortos dilacerados pelas armas. Perdoai-nos se estas mãos, que criastes para cuidar, se tornaram instrumentos de morte.

Perdoai-nos, Senhor, se continuamos a matar nosso irmão, perdoai-nos se continuamos como Caim a remover pedras de nosso campo para matar Abel, se continuamos a justificar a crueldade com nosso cansaço, se com nossa dor legitimamos a crueldade de nossas ações.”

Face a um evitável conflito bélico, ao modo trágico como, então, as estruturas sociais se organizavam, não bastavam orações – urgia reorganizar. E, se na origem remota das tragédias avultava o modelo de educação familiar, social e escolar, por que não se reorganizava a Escolas? 

Por que razão plausível se mantinha imutável uma organização originada da Prússia militar do século XVIII? A (de)sorganização da chamada Escola da Modernidade datava da “era 1.0” e nós já estávamos na “Web 4.0”, em vias de transitar para a “5.0”. 

Retomava a pergunta, porque, como dissera o saudoso mestre João dos Santos, “se não sabe por que é que pergunta?” Eu sustentava uma hipótese, a “minha resposta”, não “a resposta”. Melhor dizendo, talvez dispusesse de parte da resposta. Explicarei, invocando palavras do amigo Carlos: 

“Numa manhã ensolarada de janeiro, uma professora, que, casualmente, entrou na sala, enquanto as crianças escreviam poemas ao som de sonatas para violino, disse que aquela sala parecia um jardim. Fiquei feliz pelas crianças.” Professores como o Carlos iam gravitando em torno do desastre, educando na Paz e para a Paz. As suas palavras contrastavam com as de outros professores, que falavam de autoritárias “ordens de superiores hierárquicos”, em desabafos eivados de revolta, desânimo, frustração. 

Não era fácil a vida nas escolas que, desgraçadamente, ainda tínhamos, nos idos de vinte. O professor estava sozinho, na sua sala de aula, num dos naturalizados absurdos, que sustentavam a tradicional e hegemónica organização das escolas, reforçando um mortal sentimento de autossuficiência, que expunha professores e alunos a situações de constrangimento e, por vezes, de violência expressa. 

A violência andava à solta. Sei de professores humilhados, em risco de serem agredidos dentro das suas salas, que se salvaram in extremis. Que foram ameaçados, insultados, sovados. Se isso se devia a uma organização das escolas pautada no isolamento e pouco propícia ao exercício da solidariedade, não era menos certo que não cabia às escolas toda a responsabilidade. 

Sem pretender afagar o ego dos professores – nunca foi intenção minha convencer, ou agradar a quem quer que fosse! – afirmava que as escolas povoadas de solidão eram objetos frágeis, que não digeriam a massificação e se degradavam, por efeito da crise que afetava outras “desorganizadas” instituições. 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (DCCCXXV)

Figueira de Castelo Rodrigo, 21 de março de 2042

No Brasil, chegara o Outono. Em Portugal, a Primavera. O Inverno de 2022 fora atípico e se sabia que “fevereiro quente trazia o diabo no ventre”. Temia-se que a geada pudesse gelar flores promissoras de bons frutos. 

Celebrei o equinócio primaveril em Figueira de Castelo Rodrigo e em boa companhia. A Maria, o Daniel, a Rita, a Célia, a Inês e a Inês me receberam como os beirões sabiam receber. Anfitriões afáveis, um vinho de excelente qualidade, gente envolvida em projetos sociais… que mais poderia eu querer? 

Queridos netos, já sei o que estareis a pensar que irei falar-vos de gula e bem-estar. Talvez volte a fazê-lo, quando convosco voltar a conversar sobre Castelo Rodrigo e as minhas anfitriãs. Falar-vos-ei da generosidade beirã e do inestimável labor do amigo José, que resistia ao desgaste do despovoamento e da progressiva desertificação do interior português.

Por essa altura, chegou-me às mãos – melhor dizendo, à tela do computador – o repensar do “sistema”. Não tinha indicação de autor. Suspeitava que fosse da autoria do Meirieu. O textinho não aportava novidade e já se passaram vinte anos sobre a sua publicação. Se já nem o WhatsApp existe, ouso transcrever excertos “adaptados”. 

“Com o termo do ano escolar chega a época de exames. Os jornalistas e os intelectuais não deixam de dar os seus famosos conselhos quanto à forma de se preparar para o grande dia. De passagem, ter-se-á afastado os quarenta por cento de alunos dos liceus profissionais que, infelizmente, parecem negados na sua própria existência”

Diga-se, em abono da verdade, que os liceus tinham sido extintos, há décadas. Mas, em 2022, ainda havia professores que colocavam no Facebook, como local de trabalho o… “Liceu Nacional”. Continuemos…

“Quem dirá o mal que engendra ignorância? Quem gritará suficientemente alto, para denunciar a impostura de uma sociedade que não cessa de pregar a revalorização dos percursos profissionalizantes e, ao mesmo tempo, os instala em bairros mais problemáticos e envia para lá os alunos com mais dificuldades, os priva das disciplinas artísticas, deixa que alguns acedam ao ensino superior sabendo perfeitamente que essa impostura se desembaraçará desses alunos em poucos meses?” 

Alguém das ciências da educação e por isso, autorizado comentava a realização de exames, que mais não eram do que instrumentos de darwinismo social. Nos idos de vinte, ainda havia testes, provas, exames, apesar de a Finlândia já os ter banido, quase por completo, na década anterior. 

Ignora-se o custo social, a médio e a longo prazo, de um sistema que erige desta forma o desprezo em regra de funcionamento. Mas, para lá destes fenómenos tristes, temos também de nos interrogar quanto à concepção do exame que progressivamente se foi impondo.

O que ocupa e monopoliza a energia da maioria dos nossos estudantes do ensino secundário é uma coisa completamente diferente. O exame é reduzido a uma operação comercial, a um empinanço de alguns meses ou de algumas semanas onde, com a ajuda de uma literatura para-escolar, que invade as prateleiras das nossas livrarias,, se organiza um simples “reenvio ao remetente” de conhecimentos rapidamente memorizados e rapidamente esquecidos.

Esta “pedagogia bancária”, como dizia o pedagogo brasileiro Paulo Freire, é a própria negação da inteligência. Reduz o sistema escolar a uma máquina.

 

Por: José Pacheco

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