Lisboa, outubro de 2039
No tempo em que o vosso avô andava de escola em escola, tentando descolonizar mentes jovens, cansava-se de ler textos encimados pela palavra “redação”, formatados em vinte linhas de lugares-comuns. Textos que diziam que a Primavera era uma estação do ano, que os passarinhos faziam ninhos, as flores nasciam nos campos e a temperatura subia nos termómetros.
Naquele tempo, o dia começava, invariavelmente, com a aula de educação físico-motora. Sob a orientação do professor, os alunos cumpriam o ritual diário de voltar a pôr em grupos as carteiras, que a colega do turno da tarde voltaria a colocar todas alinhadas, em filas, voltadas para o quadro negro e para a mesa da professora. Concluído o exercício de musculação, era o tempo de leitura:
Eu gosto muito da Primavera. A Primavera é uma estação do ano, que começa no dia… E daí por diante, até ao inevitável: Depois da Primavera, vem o Verão, que é outra estação do ano muito bonita.
Lido o textinho, perguntei:
Quem escreveu este texto?
De imediato, se ergueram todos os braços e se baixaram, no meio de grande embaraço. Não satisfeito com a reação e sem delongas, passei à leitura do segundo texto, que era clone do anterior, e repeti a pergunta:
Quem escreveu este texto?
Alguns alunos ainda esboçaram um levantar de braço, mas suspenderam o gesto. Ao cabo de uma dezena de leituras, a perturbação inicial deu lugar ao riso. Os alunos tinham percebido a mensagem. E eu propus um novo jogo de escrita, a que todos aderiram sem reservas. Dessa vez, ditei as regras, de acordo com o Freinet do “texto livre” me havia ensinado. Já que todos gostavam de escrever sobre a Primavera, assim se faria, mas não poderiam recorrer a qualquer das frases colocadas no quadro negro:
Eu gosto muito da Primavera; A Primavera é uma estação do ano; As andorinhas, as flores… etc.
O silêncio tomou conta da sala, um silêncio estranho. Mas, jogo era jogo e teria de ir até ao fim.
Durante alguns longos minutos, os alunos entreolhavam-se, cotovelos assentes nas carteiras, cabeças entre as mãos, gestos de impaciência… até que um deles, após um trejeito no rosto, decidiu escrever algo. O colega do lado espreitou, encolheu os ombros como se dissesse “olha a grande novidade!” e fez par com o primeiro. Pouco a pouco, juntaram-se os restantes, cada qual na sua vez, que o “ritmo individual”, apesar de não se constituir em conceito cientificamente assumido, era de uma cruel evidência para aqueles que ainda creem que a pedagogia é a arte de ensinar tudo a todos como se fossem um só.
Findo o inesperado jogo, os textos foram recolhidos. Seguindo os mesmos cuidados da primeira sessão de leitura, li o primeiro dos textos e perguntei:
Quem escreveu este texto?
Apenas um braço se ergueu, decidido. Um só braço, uma só mão autora.
Disfarcei como pude a emoção e li o segundo dos textos.
Novamente, um só erguer de braço, sem hesitações, um gesto único, convicto. E assim foi acontecendo até à derradeira leitura daqueles textos… livres.
Por: José Pacheco
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