Vila Céu de Mapiá, outubro de 2039
Há, mais ou menos, uns trinta anos, duas mães me perguntaram se poderíamos acolher os seus filhos na Ponte. Compreendemos a preocupação daquelas mães. Uma delas, professora universitária, tomara consciência dos malefícios da velha escola. E assim nasceu a primeira experiência de “homeschooling”, como lhe chamaram na década de 1980.
Na década anterior, havíamos passado do ensino centrado no professor para a aprendizagem centrada no aluno, com ganhos de excelência acadêmica e inclusão social dos alunos. Muitas matrículas nos eram solicitadas. Porém, o domicílio dos novos alunos distava dezenas de quilômetros da “domus” Escola da Ponte. E, conforme rezavam os normativos, as matrículas deveriam ser feitas na escola da área de residência.
Naquele tempo, a Internet ainda era miragem. Para evitar que as crianças fossem forçadas a longas viagens e para estabelecer contato, tínhamos o telefone fixo. Não havia regulamentação de homeschooling, restava-nos a transgressão fundamentada no direito humano a uma boa educação. Até que uma lei foi publicada. E os dois jovens passaram a desenvolver os seus estudos, em casa… ouvindo aula.
O que aprendemos com a experiência? Que o homeschooling não é solução para os males que afetam o sistema educativo. Entre ouvir aula em casa, ou ter aula na escola, preferíamos a aula na escola, dada por professores qualificados e competentes. Aprendemos que o “ensino domiciliar” era um “salve-se quem puder”, estratégia de quem podia “salvar-se”, porque tinha recursos para tal.
Trinta anos decorridos, a situação se repetiu… no Brasil. Em 2018, participei na mesa de abertura de um seminário sobre homeschoolig, realizado em Brasília. Fui receptivo ao convite, porque, em 2016, havia acompanhado a “Global Home Education Conference”, tendo ficado deveras preocupado com o conteúdo de algumas as intervenções, sobretudo de ditos “especialistas”, para os quais as ciências da educação eram ciências ocultas e que acreditavam – era de crença que se tratava – que se poderia aprender sozinho, com o auxílio de um dador de aula caseiro, ou da Internet.
No Brasil, acompanhei o processo de descolarização dos filhos de um amigo. Ele sabia que aprendemos uns com os outros, na atribuição de sentido, na produção de conhecimento, criando vínculos. Para garantir uma boa educação para os seus filhos, não os matriculou numa escola, fê-los sujeitos de aprendizagem, no lar e em contextos comunitários. O elevado nível de proficiência alcançado pelos filhos do meu amigo permitiram-lhes ganhar bolsas de estudo no MIT. Mas, por ter optado por uma educação integral, integrando escola, família e comunidade, o meu amigo foi condenado por… “abandono intelectual dos filhos”.
Naquele tempo, compreendemos que o “ensino domiciliar” era mero paliativo de um modelo educacional obsoleto e pretexto para prática de trabalho infantil, ou instrumento de catequese fundamentalista. E agimos, porque o prefixo “multi” tem origem no latim multu. Juntamo-lo ao vocábulo “domiciliar”, para que se entendesse que a educação acontecia em múltiplos espaços. Raramente acontecia num prédio a que era costume dar o nome de “escola”. Mas acontecia nos lares, nas bibliotecas públicas, nas igrejas, nas empresas, na Internet, nos campos e florestas, nas ruas e praças… E, para que acontecesse, não carecia de decreto. Não fazia sentido legalizar o “ensino domiciliar”. Fazia sentido falar aprendizagem… multidomiciliar.
Acolhei o amoroso abraço do vosso avô José
(continua)
Por: José Pacheco
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