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Estórias da Velha Escola (XLIV)

Piodão, janeiro de 2040

Há exatamente vinte anos, quando visitava a bela aldeia, recebi a notícia de que o MEC havia erradonas notas do Enem e garantia que iria corrigir problemaCiosa da sua carioca ascendência, Cláudia logo me disse que o “jeitinho brasileiro”permitiria enjeitar responsabilidades em mais uma ministerial besteira. E assim foi…

O presidente do Inep tentava minimizar o prejuízo, afirmando que a falha poderia, quanto muito, prejudicar apenas cerca de 39 mil pessoas. Coisa pouca, como se vê... E o ministro atirava a culpa para a gráfica, que imprimira a prova.

O sistema havia corrigido provas como se fossem de outra cor.

Naquele tempo, se desperdiçava milhões de reais em policiamento, vigilantes e sofisticadas estratégias e proteção do gabarito, na ilusão de que se poderia obstar ao brasileiro jeitinho de colarO ministro havia comemorado em diversas ocasiões que a última edição do exame havia sido a melhor de todos os tempos por falhas não terem sido registradasEngano de alma ledo e cego, que a fortuna não deixa durar muito, como se viu: uma imagem da prova havia vazado, enquanto os candidatos ainda a faziamMas, já em 2009, quando o Enem fora transformado em vestibular nacionala prova vazou e o exame teve que ser adiado. No ano seguinte, mais uma falha relacionada ao gabarito. Em 2011, novo vazamento de questões. Naquele tempo, ainda subsistia a crença – melhor dizendo, ingenuidade – nas virtudes de um teste.

O MEC ignorava que o problema não era o ter errado nas notas do Enem. ENEM era elaborado com base na Teoria da Resposta ao Itemà semelhança do que era uso em exames de outras áreas, nomeadamente, na Publicidade, ou no Ranking Esportivoera uma espécie de travesti do vestibulartermo ENEM não passava de um eufemismo. Era uma prova “melhorada”, mas era uma prova, o mais falível dos instrumentos de avaliação.

Para além de não ser rigoroso e de ser, na sua essência, excludente, esse exame não era uma oportunidade de sair do “ensino inferior” para o “superior”, não era um vestíbuloera a própria câmara de tortura.  E nem seria necessário ter feito doutoramento em docimologia, para saber que uma prova quase nada avalia, ou talvez apenas me disse a capacidade de retenção de informação (não de conhecimento!) na memória de curto prazo. Mas, no FaceBook, o professor Edson questionava: Por que o ENEM não avalia? E a Paula afirmava que o ENEM selecionava os melhores e impedia a entrada de semianalfabetos nas faculdades.

Com todo o respeito pelas suas interrogações e convicções, lhes disse que, quando trabalhei na universidade, encontrei muitos alunos semianalfabetos, que tinham sido aprovados no ENEME me apercebi de que o ENEM não passava de um sutil processo de darwinismo social. Pois que, salvo melhor entendimento, a legislação brasileira, com referência à Declaração Universal dos Direitos do Homem, estabelecia que a educação era um direito de todos. Uma educação, que ia do jardim infantil até à universidade, embora só fosse obrigatória até ao final do ensino médio.

Se a escola obrigatória fizesse avaliação e não fizesse classificação, se a avaliação fosse formativa, contínua e sistemática (como estabelece a LDBEN), no final do ensino médio os alunos apresentariam no seu portfólio evidências de aprendizagem, que lhes dariam o direito a continuar estudos no… ensino superior. As aberrações chamadas vestibular e ENEM desapareceriam. E, com elas desapareceria, também, a muito lucrativa indústria do cursinho.

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (XLIII)

Gondomar, janeiro de 2040

Num “saltinho” a Portugal, aproveito para rever velhos amigos. Mesmo velhos, que essa amizade nasceu em meados do século passado. Cruzando o oceano, reli mensagens de um janeiro também de muitos anos atrás. Foram centenas aquelas que recebi, ao longo de meio século, notícias de desistências, de projetos destruídos:

Caro professor, neste momento estou num buraco negro. Entrei em atestado médico, tentando perceber o ânimo que poderia ter num regresso. Desde do dia em que voltei, tem sido sofrimento por uma causa, pois foi e é um sofrimento entrar naquela escola. Não tive nenhum apoio consolidadoguerreei só. Ninguém quer ver uma educação diferente. Além do processo disciplinar, existe uma junta médica, e sei lá que mais (…). Terminando, desejava contar com a sua ajuda, para poder estar mais em paz. Por lealdade e respeito que tenho pelo seu trabalho, me retiro de um sonho incompleto, de uma batalha. Amanhã, estarei em consulta de psicologia. Já não tenho condições para isto, nem para defender o que quer que seja. Fica aqui o meu repto de pedido de ajuda sériapois,repito, não consigo voltar àquela escola.

Na obra O Brasil como problema, Darcy questionava: Quem implantou esse sistema perverso e pervertido? E propunha um diagnóstico dos obstáculos cruciais, que a nação brasileira precisaria ultrapassar, para se desenvolver. Nesse livro, o maior dos obstáculos seria a nefasta ação de um certo tipo de intelectual: o áulico. Em duas cartas, vos falei de energúmenos. Energúmeno era, também, sinônimo de indivíduo alienado, exatamente o perfil de um áulico: um alienado, colaboracionista num genocídio educacional caucionado por uma opinião pública acrítica e patrocinado por energúmenos da política, e até mesmo por… “professores”.

Naquele tempo, poderíamos identificar dois tipos de áulicos: os ingênuos (ou ignorantes) e os esquizofrênicos. Os primeiros controlavam estruturas do poder público. Os outros infestavam universidades, comissões de especialistas e se exibiam em gongóricas e anestesiantes palestras, nos palcos de inúteis congressos.

Ambos prosperavam, vivendo à sombra do poder, produzindo ideias irrelevantes, planos inconsequentes, contribuindo para destruir qualquer esboço de inovação. Manifestavam peculiares sintomas de esquizofrenia, pois diziam que o aluno deveria estar no centro do processo de aprendizagem, mas praticavam ensinagem, em aulas centradas no professor.

Talvez nem fosse esquizofrenia, mas comportamento antiético de quem, sendo especialistas em ciências da educação, conhecedores dos maléficos efeitos de práticas fundadas no paradigma da instrução, contribuíam para as manter. Em assessorias e coordenações de projetos da iniciativa do sistemaos áulicos legitimavam paliativos do esclerosado modelo educacional, optavam por se venderem, pecando por omissão, cumprindo o vil papel de evitar que mudanças acontecessem.

No reino dos áulicos, reinava o servilismo, a mentira, a ostentação, o brincar de comediante diante dos outros e de si mesmo, para “ganhar prestígio” e engordar contas bancárias. Mas a crise ética instalada também era tempo de oportunidades. E quase nada era mais inconcebível do que o aparecimento de um instinto de verdade honesto e puro. Foi por essa altura que aconteceu o que vos irei contar…

Por agora, aproveitemos a minha breve presença neste frio solo lusitano, para mitigar saudades deste vosso (voluntariamente) exilado avô. Não demorarei a voltar, porque janeiro é um mês quentinho… no Brasil.

 

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (XLII)

Tondela, janeiro de 2040

Num facebook de janeiro de 2020, li a notícia da realização de um seminário: Desafios para uma educação de futuro. Um dos painéis tinha por designação: “Estratégias para salas de aula menos chatas”. Queridos netos, juro que era essa a designação do painel! Isto vos garanto por saberdes que, no tempo em que ainda se “dava aula”, elas não só eram chatas como inúteis e até mesmo prejudiciais.

Uma geração de auleiros (talvez um neologismo criado pelo meu amigo Pedro Demo), ignorantes das ciências da educação, produzia e reproduzia males irreparáveis. As escolas enfeitavam a falência do modelo instrucionista com frivolidades einfantilizações metodológicas. Mas, por que disto vos falo, à distância de 20 anos? Porque, nesse janeiro de 2020, me preparava para uma breve viagem a Portugal e visitar a Associação Agostinhoda Silva. O Mestre dizia que as instituições sempre se corrompem e acabam por ser inúteis. A instituição Escola arrastava a sua degradação pelos caminhos do ridículo e da desumanização. Para manter os alunos atentos, professores de cursinhos cantavame tocavaem sala de aulaEsses bardos da pedagogia eram disputados e ganhavam comissão pelas vendas das aulas.

Uma estudante que pretendia cursar Medicina exclamavaFicamos curiosos para saber que música o professor escolheu e que ponte vai fazer com a matéria! A estudante estava curiosa e eu estavapreocupado com os médicos que iria encontrar pelo caminho, na vida que me restava. Mas é verdade que, escutando Bach e Mozart, as vacas produzem mais leite. E não nos esqueçamos de que, no conto “O Flautista de Hamelin”, é pela música que o flautista seduz os ratos e os arrasta para o abismo…

Se o sábio Salomão disse que respondêssemos aos loucos conforme sua loucura, talvez possamos aplicar às vedetas do show escolar e aos deschateadores de aula aquilo que Nietzsche, sarcasticamente escreveu: O professor constitui um mal necessário. Afinal, é inevitável que os intermediários desvirtuem, quase sem querer, o alimento que transmitem.  

Há vinte anos, a escola das aulas já tinha ultrapassado, há muito, o nível do absurdo. Mas poucos disso se apercebiamTínhamos chegado ao tempo do show business pedagógico. uma geração de hedonismo exacerbado se oferecia cursos-espetáculos, para tornar as aulas… menos chatas.

A imbecilidade estava travestida de pedagogia enada mais poderia ser inventado, para disfarçar o drama. Embalados por canoros mestres, ou por deschateadores de aula, os jovens sobreviviam mais facilmente no “salve-se quem puder” egoísta, que lhes rendia o acesso à universidade, enquanto iamcantarolando, ou se deschateando.

Os homens inteligentes querem aprender; os outros querem ensinar, disse-nos Anton Tchekhov. E os auleiros – chateadores, ou deschateadores – insistiam na peregrina convicção de que é possível dar de beber a um cavalo, quando ele não tem sede… A ética da alteridade estava ausente nos lugares onde, pavlovianamente, os “melhores professores” deschateavam os alunos.

Referindo-se às escolas do século XIX – que, mais data show menos pau de giz, em nada diferiam das escolas deschateadores do século XXI – Stefan Zweig definiu a escola da aula do seguinte modoé um exército formidável de guardiães disfarçados de professores, que, com meios artificiais e antinaturais se organiza para roubar à juventude a possibilidade de ser.

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (XLI)

Joanópolis, janeiro de 2040,

Ainda em viagem pelo interior, de passagem pelos domínios do “lobisomem”, não sei por que razão, me veio à mente um episódio de meados do século passado. Falar-vos-ei de dois professores que “davam a quarta classe”. Um era moço e inexperiente. A outra era mulher na casa dos sessenta de idade e levava de vantagem quarenta anos de brilhantes avaliações de desempenho, que lhe conferiam fama de boa professora. Fazia alarde da auréola e gabava-se de que qualquer aluno que levasse a exame só poderia de lá sair aprovado ecom distinção.

De tão rigorosa e cumpridora, também cumpria a percentagem estabelecida de reprovações. Em consonância com os ideólogos do regime, postulava que “nem todos podiam dar doutores”. E, do alto da experiência, dava como exemplo o caso do Toino Bica que, já entrado nos doze, passava as aulas a dormitar na “fila dos burros”.  

A afetividade também era conhecimento construído através da vivência. Aceitar o ser humano como um ser afetivo, que pensava e sentia simultaneamente, implicaria um outro olhar sobre as práticas, que não poderiam ser restringidas à dimensão cognitiva. As escolas deveriam entender mais de seres humanos e de amor, do que de conteúdos e técnicas, mas contribuíam em demasia para a construção de neuróticos, por não entenderem de amor, de sonhos. E o meu amigo Rubem assim resumia o seu saber e sentir: As rotinas e repetições têm um curioso efeito sobre o pensamento: o paralisam. A nossa estupidez e a nossa preguiça nos levam a acreditar que aquilo que sempre foi feito de um jeito deve ser o jeito certo a fazer.

Evoco o amigo Rubem porque, em meados da década de 1970, embora fosse de confecção em cada escola, ainda era tempo de “exame de quarta classe”. Pelo final de junho, a professora antiga já tinha o exame preparado, mas teve para com o jovem colega uma gentileza inédita: O colega não quer acrescentar qualquer coisa à prova?

O colega quis. O poema do Torga, que encimava o teste, estava semeado de fabulosas imagens e falava de amor. E a meia dúzia de perguntas escolhidas pela velha e experiente professora somente visavam respostas diretas, do tipo: Onde estava o x? O que tinha feito o y? Quem tinha visto o z? Para não tornar o interrogatório demasiado longo, o jovem professor apenas acrescentou uma questão.  

Como todas as provas que se prezam, esta começou pela leitura e interpretação do texto. E a prova começou…

Volvidos alguns minutos, um após outro, todos os alunos da velha e experiente professora suspenderam a escrita. Ora coçavam a cabeça, ora manifestavam outros sinais de impaciência e até deangústia.

O professor novo e inexperiente apercebeu-se de que haviam esbarrado na pergunta número sete. E não ousavam passar-lhe à frente, porque a senhora professora era exigente e tinha avisado que não poderiam deixar qualquer das perguntas para trás, sem resposta.

Quase todos os alunos do professor moço e inexperiente já estavam a acabar a redacção de vinte linhas e tópicos obrigatórios, quando algumas lágrimas já assomavam nos olhos suplicantes de alguns dos óptimos alunos da velha e experiente professora. O professor não se conteve. Foi junto de cada um e sussurrou-lhes uma qualquer mensagem ao ouvido, que os deixou aliviados e lhes permitiu desencalhar o raciocínio... e a sensibilidade.  

Acrescente-se que a sétima das questões era imperativa e rezava assim: “Depois de leres este bonito poema, diz o que é, para ti, o amor.”

Com Amor, o vosso avô José.

 

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (XL)

Atibaia, janeiro de 2040

Há uns vinte anos, a humanidade começou a entender a dimensão de um ecocídio. Nevava no deserto, fazia calor na Sibéria. O fogo dizimava a floresta amazônica e a australiana. O velho modelo educacional seria causa primordial da previsível extinção da espécie?

As tecnologias digitais de informação e comunicação constituíam-se em novas panaceias, que prolongavam a agonia de sucedâneos do modelo educacional lancasteriano, que Bolívar e Santander tinham introduzido na América Latina, há duzentos anos. Aulas híbridas ou invertidas, lousas digitais e power point disfarçavam o drama educacional. Foi por essa altura, que um estudo realizado numa universidade australiana concluiu que utilizar um auxílio visual igual ao que estava sendo falado, ao contrário do que se imaginava, não facilitava a compreensão.

Outro estudo, feito por pesquisadores da Universidade de Harvard, afirmava que não havia um propósito de existência do power point. Isso, porque eles descobriram que o grau de satisfação de uma audiência para com uma apresentação era o mesmo, independentemente da presença, ou não, de auxílio visual. Os autores desse estudo também observaram que o editor de apresentações poderia estar contribuindo para tornar as pessoas mais burras. A facilidade do auxílio visual de gráficos, listas e slides tinha ajudado a promover um novo tipo de gramática corporativa, onde o importante não era passar uma informação correta, mas passar uma informação com estilo.

Propostas com lógica sofista, informações sem contexto e que se apegavam na causalidade de fatores eram cada vez mais comuns. Essa argumentação, onde o modo como se falava era mais importante do que o conteúdo da fala, estava a deixar as pessoas cada vez menos inteligentes. E a humanidade perto da catástrofe…

Nas escolas particulares, onde o direito à educação se convertia em mercadoria, as novas tecnologias assumiam-se como diferencial de mercado. Na ânsia de deter a queda da taxa de evasão e para melhorar a captação de alunos, gestores recorriam a consultorias especializadas no uso das ditas novas tecnologias, não para melhorar as suas práticas, mas para atrair pais e captar alunos.

O drama se repetia nas escolas ditas públicas. Uma secretaria de educação decidiu abrir concurso e acolher propostas de empresas especializadas em “mecanismos para motivar o aluno e em ferramentas para melhorar a gestão escolar, com o objetivo de aumentar a aprovação”. O secretário da educação assim justificava a medida: A educação está anacrônica. O jovem pressente isso e foge. Mas, o zeloso secretário insistia em anacrônicas medidas de política educacional, no desperdício de recursos e de gente, um genocídio educacional anunciador de um genocídio mais vasto.

Com novas tecnologias, ou sem elas, num tempo em que tais equívocos e disparates ocorriam, a minha amiga Janaína operava milagres. Aproveitei a passagem por São Paulo e fui a Bom Jesus dos Perdões, visitar o projeto que ela ajudou a criar: o Projeto Rosende.

Num vídeo de 2016, a Eulália assim se se manifestava: Eu já não concordava com o modelo tradicional, há muito tempo. E chegou uma hora em que eu já não estava aguentando mais. Eu estava me sentindo mal, eu via os professores se sentindo mal, eu estava, realmente, ficando doente. E eu disse: ou eu me aposento, ou eu mudo o que está aí. Se não, vou ficar louca.

E tudo mudou. Para melhor! Vinte anos atrás, este e outros projetos eram prova de que nem tudo estava perdido no reino da educação. Deste e de outros prodígios vos falarei, em breve.

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (XXXIX)

Heliópolis, janeiro de 2040

O Amor sacraliza o ato de educar… Ainda de passagem por Sampa e pelo lugar onde o meu amigo Braz Nogueira operou milagres, vos falarei do Bino. A sua estória assemelha-se às de muitos sacrificados moradores da comunidade de Heliópolis. E, porque sabia a origem do drama – é de pequenino que se torce o destino! – o Braz ajudou a  transformar vidas em Heliópolis, na transformação da escola, nas  caminhadas pela paz, pelo seu afã de educador ético.

O Bino era um jovem relutante às “aprendizagens escolares”. Especializara-se em assaltos a hortas e pomares. Não conheceu pai nem mãe. Consumada a parição, a progenitora abalou para França, no rasto do presumível pai. Cresceu entre maus-tratos e fomes. Ao fim da tarde, engolia sopas de cavalo cansado, enquanto aguardava a chegada da avó. Ela chegava embriagada e de terço na mão. Avistando-a, o Bino descalçava as botas herdadas do falecido avô e atirava-se para debaixo das mantas.

A infância acaba quando alguém reconhece que a sua vida deixou de ser um jogo maravilhoso, ou quando alguém proíbe outro alguém de brincar. O Bino soube-o quando a avó Zefa o fez levantar da cama, numa frígida madrugada, aos quatro anos mal feitos: Hoje, és tu quem leva o rebanho ao monte, que eu não me tenho de pé.

Pelo meio da tarde, o cão guiou o pequeno rebanho no regresso a casa, com o Bino a reboque, esfomeado e com os pés descalços, fustigados pelos cardos. Nunca mais ficaria no aconchego do leito para além do nascer do sol. E o Malhado viria a ser seu mestre e única companhia, até aos sete anos de idade.

Um dia, “uma senhora bem vestida, bem cheirosa e aprumada” (palavras que o Bino me ditou) espreitou para dentro daquele tugúrio partilhado por animais e gente, e perguntou se a avó se chamava Josefa da Conceição. Disse vir da parte das autoridades e que tinha mandado uma carta à avó. A avó retorquiu que não senhor, que não tinha recebido carta coisa nenhuma e que, ainda que tal cousa lhe chegasse, nenhuma serventia teria por das letras nada saber.

De nada valeu a ladainha à avó que das letras nada sabia. O único proveito que a avó Zefa obteve da “senhora bem vestida, bem cheirosa e aprumada” foi uma magra pensão de sobrevivência, tão magra que mal dava para encomendar meia dúzia de garrafões de vinho. Sem pastor, o que restava do rebanho foi arrematado pelo Luís Vendeiro. O Malhado foi servir outros senhores e o Bino transformou-se num degredado de fundo de sala. No dizer da mestra, o moço era coisa ruim e insubmissa e nem com porrada obedecia.

Com dez anos feitos, foi transferido para uma escola de “última oportunidade”. À semelhança de muitos outros casos de “insucesso” que a essa escola aportaram, o Bino ia recomendado por psicólogos. Apesar dos dez anos feitos, aparentava não ter mais de seis, ou sete. O seu reportório de insultos era vasto. O impropério era uma das suas competências mais notadas, ainda que não constasse do currículo formal. Mas essa competência foi abalada numa assembleia em que se provou que os “palavrões” usados pelo Bino não constavam do dicionário. E, se não constavam, não existiam, pelo que a Assembleia deliberou que o Bino teria de refazer o seu repertório. O Bino esmerou-se. Passou por um processo de profunda reelaboração cultural, para gáudio dos companheiros e satisfação dos professores.

Para que se perceba o trajecto de reparação dos danos, por que o Bino passou naquela escola, transcrevo, a título de exemplo, um depoimento deixado pelo Bino no mural do “Acho Ruim”: “Eu acho mal que os meninos vão ao banheiro, defequem e, depois, deixem o vaso todo cagado”.

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Estórias da Velha Escola (XXXVIII)

Butantã, janeiro de 2040

Na São Paulo de há exatos vinte anos, o projeto da Escola Aberta marcava o fim de uma época de esboços de mudança e o início de uma década de efetiva inovação. Nesta carta, recorro ao conteúdo de um e-mail, religiosamente guardado num velho pen drive – recordais-vos desse utensílio? – e apenas acrescentarei algumas palavras-alinhavos estruturantes das falas da minha amiga Edilene. Ei-las:

Coloquei uma faixa na porta: “Matrículas Abertas – Escola Gratuita”, para que as pessoas entrassem sem medo de essa escola vir a ser mais uma escola particular, competindo com outras da região. As pessoas entravam e eu pedia-lhes que voltassem para os seus lares e assistissem a uns vídeos, na Internet, para decidirem se aquela escola era a que mais convinha aos seus filhos. Faziam a inscrição e só voltavam para fazer a matrícula, se considerassem que aquela escola cuidaria bem dos seus filhos e a todos garantiria uma boa educação.

Um dos pais, de entre os que voltaram para fazer a matrícula, quis falar comigo. Entrei na sala. A menina estava em pé, ao lado da mesa, de braços cruzados, cabeça baixa, fechada… O pai olhou para mim e disse: “Convença a minha filha!”

Eu achei estranha aquela situação: “Convencer de quê?”

“Convence! Convence ela a ficar nesta escola!”

“A escola não é só para ela. É para vocês, para a família, também…”

“Eu já sei, eu já sei como é esta escola. E eu já resolvi.”

“Não vou convencer a sua filha. É você que tem de conversar com ela.”

“Eu já falei, mas ela não quer sair da outra escola.”

“Não vamos fazer a matrícula da tua filha.”

“Como não?!”

“Não! Porque, se você não está convencido, como vai convencer a tua filha? A forma que você está agindo, mostra que você não entendeu esta escola.”

Recolhi os papéis, qe ele já tinha preenchido. Devolvi-os e disse:

“Você não vai fazer a matrícula agora. Vai assistir a este documentário.”

Passei uma lista de tarefas para ele. Ele olhou para mim e disse:

“Está me dando lição de casa?”

“Estou. E você só vai voltar aqui, quando eu vir um brilho nos seus olhos.”

Passados alguns dias, eu estava com um grupo de crianças, na frente da escola, planejando a nossa festa cultural, e eu senti alguém batendo no meu ombro. Olhei para trás e o mesmo pai me disse: “Está vendo o brilho nos meus olhos?”

“Sim. Agora, estou vendo.”

Ele me deu um abraço e disse: “Muito obrigado! Por você ter insistido. Por você me fazer voltar para casa, refletir com a minha família. Eu fiquei muito bravo. Mas, assistindo a tudo aquilo, o vídeo, o documentário, eu pude enxergar qual era esta escola. E por que você não estava aceitando a matrícula.”

Hoje, ele é um pai ativo, participante, sempre com aquele brilho os olhos… O que ficou para mim marcante foi que a filha dele, no primeiro dia, chegou com um lindo sorriso de braços abertos, para me abraçar.

Quando a família e a escola estão em harmonia, com o mesmo propósito, a criança vem com um olhar amigo, vem para aprender. Estas famílias estão nesta escola, porque acreditam nesta educação. Sabem que a escola não é para elas, mas que é feita com elas.

A Escola Aberta confirmou a freiriana sentença, que nos dizia que a educação não mudaria o mundo, mas que mudaria as pessoas… que mudariam o mundo. Hoje, eu posso concluir que não estava errado, quando, há cerca de quarenta anos, escrevi um livrinho com o título: para os filhos dos filhos dos nossos filhos.

Quando a eternidade se aproxima, sei que dareis novo significado às histórias, que eu vos deixar.

Com amor, o vosso avô José.

Por: José Pacheco

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Estórias da Velha Escola (XXXVII)

Serra Talhada, janeiro de 2040.

Queridos netos, sede bem-vindos a 2040! Que seja para vós um ano benfazejo, como benfazejos eram os gestos da minha amiga Angélica. Acolhia numa espécie de tálamo de bondade jovens rejeitados pela velha escola. Até ao fim dos seus dias, nos contagiou com o seu solidário saber, apaziguando angústias, conferindo-nos alento para defrontar os perigos.

Abri o armário das velharias. Nele havia guardado um velho computador, de onde recuperei a primeira mensagem recebida no distante janeiro de 2020: Sou o Francisco. Desde a última vez que falamos, as coisas não melhoraram. Como na escola das minhas filhas não encontro um professor que não morreu, não está fácil. A diretora, com quem falaste, também não me parece muito motivada. Não está fácil. Não sei o que fazer – era mais um pai, que havia tomado consciência da obsolescência da velha escola e dos seus nefastos efeitos.

O Francisco, como o André e como muitos outros pais e mães, procuravam professores, que ainda não tivessem morrido. Talvez por isso me tenha lembrado da Angélica, cujo exemplo não morreu. No chão das escolas, convivi com angélicos seres, educadores amorosos e éticos, coautores de novas escolas, à medida dos sonhos de muitos pais, professores de que a história da educação não fala e cujas identidades importa divulgar. Divulgarei…

Continuo em viagem pelo Nordeste, mas irei falar-vos do Sudeste do Brasil. Mais propriamente do Butantã de São Paulo. Com a minha amiga Rosely e a maravilhosa equipe da Ana, em meados da primeira década, ajudei a mudar as práticas da Escola Amorim Lima. No final da segunda década (ou início da terceira…), surgia no mesmo bairro um dos projetos mais inovadores, que o século XXI conheceu (pelo menos, até agora…). Refiro-me ao projeto, que dava pelo nome de Escola Aberta, obra de um coletivo, que, abnegadamente, havia dado forma ao Projeto Âncora. Educadores que dele se afastaram, ou foram injustamente afastados, como o João, a Patrícia, o Andersen, a Edilene.

O amigo Lazarte patrocinava esse projeto de escola particular gratuita, num exercício filantrópico, que colmatava os nefastos efeitos da velha escola. Outro amigo – o André – financiava um projeto idêntico, em Portugal. Nesse já distante 2020, a Patrícia atravessaria o Atlântico e, com maravilhosos professores da escola pública do Casal do Sapo, ajudaria a concretizar o projeto de uma escola, que o André sonhou para os seus filhos e para os filhos de outros extremosos e diligentes pais.

A Edilene desenvolvia práticas anunciadoras de novos tempos, de uma nova escola. E foi uma nova escola aquilo que, em 2011, Walter Steurer me pediu que concebesse, para salvar vidas de jovens. Porque – como dizia – fazer contraturno de escola era como enxugar gelo. E, de Belo Horizonte fui para Vargem Grande, perto de Cotia, para ali viver e ajudar a cumprir o sonho desse bom homem. O Walter faleceu no primeiro dia de março desse ano. Mas, a sua memória perdurou e o seu sonho se materializou. Um punhado de educadores, sob a coordenação da Cláudia e da Edilene, deu forma à Escola do Projeto Âncora.

Decorridos alguns anos, inquietantes notícias recebi, fortes indícios de que o Projeto Âncora se degradava. Preocupado e face aos silêncios, que “respondiam” às minhas mensagens, decidi voltar a Cotia. Daquilo que por lá presenciei vos falarei em próxima carta. E vos contarei uma conversa entre a Edilene e o pai de uma aluna da Escola Aberta.

Encero esta cartinha com votos de um benfazejo 2040!

 

Por: José Pacheco

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A Mulher de Ló

Como qualquer pessoa que nasceu no Séc XX, vou aprendendo a me relacionar com as “maravilhas das novas tecnologias”. Fui habilitar um App (tipo inteligência artificial) no meu celular e acabei esbarrando em um vídeo apresentando os novos produtos da Apple (não quero fazer propaganda, apenas estou narrando um fato). Entrei em crise, não sabia se achava fantástico ao ver o quanto a capacidade criativa do ser humano é capaz, ou se ficava com medo do presente-futuro.

Fiquei seduzida pelo design do celular (sou arquiteta, tudo que diz respeito a estética me chama muita atenção) e bestificada com a tecnologia. Percebi, apesar do meu simplório conhecimento na área, que a IA (inteligência artificial) e a RV (realidade virtual) entrarão nas nossas vidas de forma irreversível. Ao mesmo tempo, percebi o quanto mais controlados ficaremos.  A “Matrix” já existe e está se aprimorando (a ficção está virando realidade).

Como militante de uma Nova Educação, me pergunto: O que mais precisa acontecer para se enterrar de vez educação do século XIX e darmos uma verdadeira virada na Educação?

Ouvindo um evento de transmissão ao vivo pelo Facebook, onde o INEP e o MEC apresentavam o cenário da educação do Brasil, com gráficos e discursos que evidenciavam a total falência do sistema, e lendo, ao mesmo tempo, as mensagens que pipocavam daqueles que acompanhavam o evento, fiquei perplexa com o discurso dos educadores. Até ao momento em que fiquei lendo, ninguém disse que a questão central do cenário apresentado está diretamente relacionada com o modelo educacional que não se compatibiliza em nada com o mundo de hoje, muito menos com as transformações “supersônicas” que estão chegando.

Isso me fez lembrar uma passagem bíblica (Gênesis 19:23-26): Saiu o sol sobre a terra, quando Ló entrou em Zoar. Então o Senhor fez chover enxofre e fogo, do Senhor desde os céus, sobre Sodoma e Gomorra; e destruiu aquelas cidades e toda aquela campina, e todos os moradores daquelas cidades, e o que nascia da terra. E a mulher de Ló olhou para trás e ficou convertida numa estátua de sal”. Parece que os educadores vivem o dilema da Mulher de Ló: manter os vícios do velho modelo, ou enfrentar o novo sem olhar para trás?

Porque estou compartilhando isto com você? Minha certeza é a de que uma transformação radical do modelo e do sistema educacional são inevitáveis. Sair do torpor da ignorância projetada pelos “donos do mundo” é vital para nossa sobrevivência.  As novas tecnologias, as mudanças climáticas, a crise política (totalmente amarrada à econômica), ou as disfunções socias, não são conjeturas, são realidade nua e crua.

A Educação é o locus onde poderemos co-criar um futuro para a humanidade. Para tal, será necessário deixar de “empurrar com a barriga” (isto é para professores e Secretarias de Educação que acham que o futuro não chegará): “Vou me aposentar logo, não quero me envolver com mudanças”; “Eu aprendi tudo o que sei na escola do jeito que é, porquê mudar?”; “Temos que preparar os alunos para o ENEM”; “Os processos burocráticos precisam ser cumpridos”; “Não vamos apoiar projetos de mudança que se iniciaram na gestão de outro partido” …

Para todos aqueles que resistem ao obvio, existe uma boa possibilidade de se transformarem em estátua de sal. Porque o futuro já chegou. Duvida? Abra os olhos!

Por: Cláudia Passos

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Estórias da Velha Escola (XXXVI)

Toritama, dezembro de 2039

Envio-vos esta carta de Toritama, cidade que conheci, há uns trinta anos, quando fui encontrar-me (e aprender) com educadores dos cafundós de Pernambuco. Surpreendi-me com a extrema pobreza daquele povo. Toritama padecia de um dos índices pluviométricos mais baixos Agreste. Com um clima semiárido, com um solo pouco propício à agricultura e um rio apenas temporário, o povo buscou sobrevivência na fabricação de jeans. Sendo um produto de qualidade e preço baixo, o jeans de Toritama atraía intermediários, que os adquiriam por quase nada e os revendiam por bom preço.

Mais tarde, pude compreender as raízes da desigualdade social, a razão do sofrimento daquele povo. Num jornal da região, uma foto ilustrava a notícia de uma visita ilustre. Através de uma cerca de arame farpado, com olhos visivelmente marejados de lágrimas, um presidente nascido no Agreste fitava crianças pobres do Agreste.

Jamais esqueci a impressão que a foto me causou. Um sensível Cristovam (*) assim a comentou:

Taciana, então com 6 anos e que na foto está bem em frente ao presidente, deixou a escola aos 14, engravidou aos 15 e, aos 16, tinha um filho. Um colega dela, antes dos 15 anos, já estava fora da escola, tornou-se vigilante informal nas pobres ruas de Canaã, bairro de Toritama, até ser assassinado aos 19 anos de idade. Sua morte foi comentada como um mistério: alguns disseram que foi herói, resistindo a bandidos, outros que havia sido ajuste de contas do tráfico. Seu irmão, Diego, que não aparece na foto por ser muito pequeno na época, abandonou a escola cedo e já havia sido preso. Na cadeia, foi jurado de morte por outros presos; esfaqueado, fugiu do hospital e desapareceu. O que ri para o presidente deixou a escola antes de terminar a quarta série. O menino conhecido como Nego, então com 8 anos, não estudou e tinha dois filhos, apenas dez anos depois. Rubinho, com 7 anos à época, para quem o presidente Lula parecia olhar, deixou a escola antes da quinta série e aos 17 teve um filho. Da escola, só se lembrava da merenda, que lhe permitia superar a falta de comida em casa. Mal aprendeu a ler, nunca havia lido um livro. Entre períodos de desemprego, Rubinho teve ocupações temporárias em algumas das muitas “fábricas” de montagem de calças jeans, onde homens e mulheres passam o dia unindo peças que lhes chegam cortadas, em um trabalho manual, mecânico, maçante, que os condena a serem parte das máquinas em troca de salários irrelevantes. Cristovam acrescentava: Toritama é um Mediterrâneo onde aquelas crianças naufragaram na viagem para o futuro, diante dos olhos dos nossos governos e de todos nós.

Na “Pedagogia da Esperança” e nas “Cartas a Cristina” encontrei um princípio de explicação do “naufrágio”. Nessas obras, o Mestre desocultava os contrastes político-sociais do Brasil e nelas pude desvendar a extraordinária dimensão da fraterna sabedoria freiriana. Muitos energúmenos o detestavam, porque Freire denunciou a opressão, a exclusão, a reprodução de uma educação “bancária”. Não lhe perdoavam ter evidenciado a natureza política (e amorosa) do ato de educar. E abusavam da liberdade de expressão para enlamear a sua memória. Energúmeno era e é, também, sinônimo de possesso, e de fanático. E foi em Pernambuco, terra natal do Mestre, que o fanatismo de alguns energúmenos se manifestou, quando ousaram retirar o seu nome, que havia sido dado a uma escola.

Hei de retomar o assunto. Por agora, acolhei o freiriano abraço do vosso avô José.

…………………….

(*) “Por que falhamos”, de Cristovam B. de Holanda.

 

Por: José Pacheco

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