Estórias da Velha Escola (XXXII)

Campos de Goytacazes, novembro de 2039

No tempo em que o vosso avô tinha a idade que, agora, tendes, um pássaro livre chamado Camus disse que as grandes ideias vêm ao mundo mansamente, como pombas. Para que nos apercebamos da sua presença, basta sermos capazes de ouvir, no meio ao estrépito de impérios e nações, um discreto bater de asas, o suave acordar da vida e da esperança. E um senhor chamado Brecht afirmava: Há homens [e mulheres, claro!] que lutam toda a vida e são imprescindíveis.

A Hilda era um desses seres humanos, um ser iluminado imprescindível. Lutou, toda uma vida, uma luta pacífica, suave, determinada. Estava já perto das suas noventa primaveras e não desistia de porfiar por uma escola de crianças felizes. Fui ajudá-la. E disso vos falarei. Poderá parecer estranho que eu recorra a uma metáfora futebolística, para vos falar desse maravilhoso ser humano. Mas ela se ajusta perfeitamente ao que vos quero contar.

Talvez vos recordeis desse desporto de multidões muito em voga nessa época, quando um português que usava o nome do filho de Deus aportou ao Brasil, para ser treinador do Flamengo. Digo “aportou” com referência à cidade em que o vosso avô nasceu: o Porto. E, também, em memória do mesmo Jesus (era esse o nome do treinador), que se ajoelhou, resignado, após um brasileiro cometer a façanha de nos últimos minutos da derradeira partida do campeonato ter feito um golo, que deu a vitória e o campeonato ao glorioso Futebol Clube do Porto.

Há uns exatos vinte anos, eu ia descendo a Serra das Araras, viajando para Campos, passando pelo Rio. O rádio do carro transmitia a final da Libertadores. O Flamengo perdia por um a zero e o jogo aproximava-se do fim, quando, em duas rápidas incursões, Gabriel (conhecido por Gabigol) apontou dois golos, que deram a vitória ao Mengão.

A loucura invadiu as ruas do Rio, no exato momento em que o vosso avô por lá passava: foguetório, gargalhadas, choro feliz, o povo na rua, apesar da intensa chuva. Aproveitei para olhar a televisão e vos digo o que vi. Nesses primitivos tempos, o futebol era um fenômeno de massas, o panis et circencis usado pelos políticos, para se tornarem populares, serem adulados, ganhar eleições. Porém, nesse dia de novembro, até os poderosos se ajoelharam (literalmente!) na grama e beijaram a mão de Gabigol.

Para as crianças, esse jogador era um Ídolo. Mas, seria necessário mostrar-lhes que os golos do Gabigol eram trabalho de equipe… Isso sabia a Hilda: que um projeto humano é um ato coletivo. E, num saudável e fraterno companheirismo, protegia o seu colégio da sanha das secretarias, que impunham aula, e de coordenadorias, que impunham muros. Se um político se ajoelhou e beijou a mão de um jogador de futebol, as gentes de Campos deveriam beijar as mãos da minha amiga Hilda, como preito de gratidão.

Quando éreis crianças, contei-vos histórias de pássaros. Creio que, já adultos, acolhereis as mesmas histórias sob a forma de gente. Se alguma ave-do-paraíso existisse, na sua humildade e amorosidade, a Hilda seria a sua tradução entre mortais. Se um paraíso houvesse, o colégio da Hilda o seria, revelando a imortalidade dos gestos de ternura.

O seu sonho se consumou, quando já nada se esperaria. E tudo ainda seria possível, desde então, porque o mestre Lauro escreveu que tudo está fluindo, que estamos em permanente reconstrução. Liberdade é o direito de transformar-se.

Com Amor, o vosso avô José.

 

Por: José Pacheco

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