Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (LXIV)

Gama, 04 de abril de 2040

Naquele dia de abril, de há vinte anos, acordei com todas as dores do mundo em mim. Era (ainda sou) mais um daqueles educadores, que carregavam o insustentável peso de conscientização. Isso mesmo: eu era (e continuo a ser) freiriano, graças a Deus! Apercebia-me de que a administração educacional usava artifícios virtuais, para prolongar a agonia e os trágicos efeitos de um sistema de ensinagem. E os professores talvez não tivessem entendido uma subliminar mensagem e perdessem a oportunidade de fazer o que, já há mais de cem anos, precisaria ser feito.

Para recuperar a serenidade, precisei de recorrer a um dos meus lenitivos. Ignoro se ainda está disponível, numa das antigas empresas de serviços online e software, um vídeo, que reproduz o final de um filme sobre a vida de Beethoven. No velho Google, estava disponível neste endereço: https://youtu.be/qXDSW83Sc2I. Era uma versão romanceada da primeira audição da nona sinfonia.

No filme, o maestro Beethoven entrava em palco no início do quarto e último andamento, levando consigo uma jovem, que, discretamente, lia a pauta e lhe dava indicações de regência, o que, na realidade, não aconteceu. E o quarto andamento estava encurtado. O realizador e a produção tinham suprimido muitos compassos… mas vamos ao essencial.

No “hino da alegria” – a Ode An Die Freude de Schiller, magistralmente musicada por um surdo – o coro canta: Alegria, formosa centelha divina! Tua magia volta a unir o que o costume rigorosamente dividiu. Todos os homens se irmanam onde teu doce voo se detém. O filme mostra que, no final da sinfonia, o público se levantou, num longo e caloroso aplauso. Na verdade, não houve salva de palmas, mas apupos, ainda que com algumas palmas à mistura.

O poema “An die Freude” foi escrito por Schiller, em 1785. O poeta apelava à prática de ideais como a liberdade, a paz e a solidariedade. Ideais partilhados com um Beethoven, que viu censurada a sua obra. Na primeira apresentação da Nona Sinfonia, os “tradicionalistas” chamaram “aberração” ao último dos seus andamentos. Nesses tempos sombrios, os detratores do génio opunham-se a que se cantasse que “o Homem é para todo o Homem um irmão” e que “a alegria é a filha querida dos deuses”.

Quando me batia, o meu pai gritava: Não chora!”. E eu engolia o choro. Mas, os homens também choram. Nos derradeiros compassos dessa sinfonia, suave, serena, alegremente, as lágrimas rolavam pelo meu rosto. Nos dias em que a indignação se soerguia e se tornava mais difícil suportar os ecos da barbárie, a audição da “Nona de Beethoven” era um bálsamo retemperador.

Nos tempos sombrios que atravessávamos, era arriscado defrontar o fundamentalismo pedagógico. Inconformistas, dotados de poder criador ajudavam a quebrar algemas sociais. Mas, eram raríssimos os que ousavam operar mudança no submundo da escola da sala de aula. A mediocridade e a maledicência espreitavam em cada recanto físico, ou virtual. E os obreiros da mudança davam-se conta de que, se o maior aliado de um professor era o outro professor, o maior inimigo do professor era… o outro professor.

Por: José Pacheco

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