Bragança Paulista, 5 de maio de 2040
O desaparecimento da companheira Sônia atraiu a memória de outros ausentes. De um Freire, que nos deixou órfãos de sabedoria, no segundo dia de um mês de maio. E de um dos meus maiores amigos: Rubem Alves. A sua visita à Ponte marcou uma viragem no meu projeto de vida, possibilitou o encarar de novos desafios. Com ele fui até a lugares por onde Freire passou. Na UNICAMP, li o “não-parecer”, que o Rubem redigiu, quando lhe pediram, na qualidade de reitor, um “parecer” sobre a reintegração de Freire na universidade.
De tragédia em tragédia, esse mês de maio de 2020, nos roubava o compositor e escritor Aldir Blanc. O trovador carioca morreu de Covid-19, na madrugada do dia 4. Num poema póstumo – “Palácio de lágrimas”, dizia-se ser um peregrino, nessa estrada sem fim, caminho sem nada. João Bosco, seu amigo e parceiro de canções como “O Bêbado e o Equilibrista” não fez um epitáfio, ofereceu-nos uma mensagem de esperança: Fomos amigos novos e antigos. Mas sobretudo eternos. Felizmente nossas canções estão aí para nos sobreviver. E como sempre ele falará em mim, estará vivo em mim, a cada vez que eu as cantar. Perco o maior amigo, mas ganho, nesse mar de tristeza, uma razão para viver: Quero cantar nossas canções, até onde eu tiver forças. Uma pessoa só morre quando morre a testemunha. E eu estou aqui para fazer o espírito do Aldir viver. Eu e todos os brasileiros e brasileiras tocados por seu gênio.
Foi na sensação de habitar um mundano “nada”, que, nessa mesma triste madrugada, levou o ator Flávio Migliaccio a cometer suicídio. Na carta, que deixou à família, Flávio escreveu: Me desculpem, mas não deu mais. A humanidade não deu certo. Tive a impressão de que foram 85 anos jogados fora num país como este e com esse tipo de gente. E finalizava a missiva com um apelo: Cuidem das crianças de hoje.
Por que “não deu certo”? E quem engendrou “esse tipo de gente”? Talvez uma enorme quota parte de responsabilidade nos caiba. Talvez as causas do bullying, do fenômeno da auto mutilação, da elevação dos índices de suicídio juvenil, ou dos massacres em Colombine e no Realengo, residam num modelo educacional escolar, familiar e social, que se pereniza. Talvez…
Vivíamos num Brasil doente, num vazio deixado pelo apodrecimento de um velho paradigma educacional, que negava a vida humana e o parto de um novo paradigma, que nos permitiria vencer o medo e reaprender a amar. Vivíamos tempos de desesperança e medo. Tínhamos chegado a um nível tal de adoecimento individual e coletivo e de imperativo da cultura do medo, que o nosso maior desafio no século XXI passou a ser reaprender a amar.
Meditando sobre as visões do meu amigo Joelmir, eu repetia, a pergunta: Qual será a nossa quota parte de responsabilidade? De que modo contribuímos para esses tempos de desesperança e medo? Quanto tempo, quantas desistências da vida, ainda teríamos de consentir, até ao momento em que os educadores deste país assumissem uma decisão ética de respeito por si e pela Vida?
No derradeiro momento da sua existência terrena, Flávio Migliaccio lançou um lancinante apelo: Cuidem das crianças de hoje. Esse apelo ressoava, pelo menos desde os primórdios do século XX. Mas, em pleno século XXI, a desumana surdez do poder público asfixiava iniciativas de resposta ao velho apelo, contribuía para perpetuar um modelo educacional neurótico e necrófilo. E a cultural “surdez” dos profissionais da ensinagem era a maior responsável pelo genocídio educacional em curso nos lares, na sociedade, nas escolas.
Por: José Pacheco
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