Três Cachoeiras, 6 de maio de 2040
Deambulando por terras do sul, tentando afastar destas cartinhas o espectro da morte, recebi notícias da minha amiga Adriane:
Bom dia, querido Zé! Tenho pensado imenso em ti, desde que o Covid-19 decidiu aparecer e modificar completamente as nossas rotinas diárias. Uma das consequências desta mudança, está a retratar-se no papel que a escola e nós professores devemos ter na Vida dos nossos alunos. Esta é uma excelente oportunidade para mostrarmos a nossa função de orientadores da aprendizagem e permitir ao aluno o estímulo da procura do saber por si próprio. Creio que esta seja uma oportunidade de mudança na percepção das pessoas em relação ao local da aprendizagem. Finalmente, os “muros da escola” vão cair e a aprendizagem estará em todo o lado…
Bom seria que acontecesse aquilo que a Adriane vaticinava. Ainda passariam muitos outonos de tormentas e muitas primaveras de promessas de regeneração, até caírem os “muros das escolas”. Voltemos à leitura de e-mails, que guardei na “nuvem”:
Já identificamos educadores conscientes e que desejam transformar a escola. Estamos organizando e implantando um sistema de avaliação, através dos portfólios. Estamos às voltas da ressignificação na nossa escola. Temos trabalhado duro, com empenho e buscando construir um projeto que esteja conectado com os novos tempos e com uma sociedade mais humanizada. Queremos que seja de qualidade social, e que, de fato, contribua muito com a construção de vidas mais dignas e felizes. Há alguma orientação que nos possa ser remetida com relação a isso? Se puderes estar conosco, em dois ou três dias, poderemos reunir nossa rede aqui do sul. Abraços fraternos da Escola Baréa.
Em 2020, não pude ir a Três Cachoeiras. No “grupo de risco”, a pandemia mostrou-me que deveria “sair de cena”, deixar de ir para o chão da escola, como fiz, durante cinquenta anos. Reuni uma equipe de formadores, que fizeram o Projeto Independência, a Escola da Ponte, o Projeto Âncora e outras escolas consideradas inovadoras. Esses professores manifestaram-se disponíveis para partilhar aquilo que sabiam. Mas, sobretudo, para partilhar aquilo que sabiam FAZER. No mês de maio de 2020, professores, gestores, pais, comunidades, se envolveram num projeto de formação, a que deram o nome de “Aprender em Comunidade”. O processo de transfomação durou cerca de dez anos e foi como o início de um “suliar” da educação.
Permiti que introduza um parêntesis… Optei por “suliar”, porque tudo nasceu no sul. O termo “orientar” seria apropriado para inspirações provindas do oriente. E “nortear” poderia ser aplicado a algo com origem no norte. Aliás o Mestre Freire escreveu na “Pedagogia da Esperança” que os educadores brasileiros deveriam suliar (e não nortear) as suas reflexões e práticas.
Com o recurso a esse neologismo, Freire mostrou estar consciente de que a linguagem produz e reproduz cultura. Recordo-vos que, nos idos da década de vinte, o Brasil estava exposto a uma “norteadora” neo-colonização da educação. A língua portuguesa era substituída por um léxico anglo-saxônico típico da cultura digital: link, cool, print, startup, live, hi-tech, approach, trash, player, card, team, views, home office etc. Em português, “Remote Work” poderia ser chamado Trabalho em Casa, mas o e-book já não estava “on the table”, estava dentro de nós.
É isso, queridos netos: estou tentando afastar destas cartinhas o espectro da morte, que rondava a sociedade brasileira, há cerca de vinte anos.
Por: José Pacheco
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