Guará, 7 de maio de 2040

No dia 6 de maio, mais de 600 brasileiros morriam de covid-19. Nesse mesmo dia, os jornais davam notícia de que o ministro da educação afirmara não ver motivo para adiamento do enem.

Eu apresentei vários motivos. Mas, certamente, o ministro tinha mais que fazer do que ler os meus insignificantes escritos. Disse que o enem não seria adiado e que esse exame não tinha sido feito para corrigir injustiças. Nisto estou de acordo com o ministro. Esse exame fora feito para gerar injustiça e se constituía em mero instrumento de darwinismo social.

Os senadores eram de opinião de que se deveria adiar essa e outras provas, alegando que a falta de acesso à internet prejudicaria mais os alunos da rede pública. O ministro não se mostrou sensível à argumentação. E um senador até comentou: O ministro não entendeu a gravidade da situação.

Para ministros e senadores, as ciências da educação eram como ciências ocultas. Não se poderia exigir de um ministro ou senador que entendesse alguma coisa do assunto. Mas, pelo menos, os senadores usaram de bom senso. E de bom senso usarei para convosco nesta carta, queridos netos. Bem como para com aqueles que clamam por mais exames e confundem mais exames com maior rigor na avaliação.

O meu amigo Rubem dizia que, se a universidade quisesse insistir na seleção de alunos, deveria substituir os “vestibulares” por algo mais rigoroso e justo: um sorteio. Com o sorteio, os inúteis e caros cursinhos desapareceriam. E o sorteio libertaria as escolas da escravidão aos padrões de conhecimento impostos pelos vestibulares, ficando livres para verdadeiramente educar.

Para que saibais, o enem era um exame nacional do ensino médio, um instrumento de avaliação falível, que, para além de não ser rigoroso, era, na sua essência, excludente. Para ilustrar o que afirmo, respigo um naco de texto do meu “Dicionário dos Absurdos da Educação”:

A Adélia sabia a matéria na ponta da língua. Fizera a mnemónica das fórmulas e repetira ladainhas em voz rezada, na crença de que a memória a não traísse. Saiu vitoriosa da contenda travada com uma pilha de livros: fez a decoreba de todos, um por um. Mas acabou derrotada por uma… ampulheta. Abdicou da novela das sete e – supremo sacrifício! – o namorado foi-se, ao cabo da segunda semana de clausura. Quem diria que se deixaria intimidar por um diabólico aparelho de medir o tempo? Ingloriamente, a presença de uma ampulheta na sala de exame deitou por terra todo o investimento. Iniciada a prova e anunciado o tempo limite para a sua realização, a Adélia fixou um olhar de hipnotizada na areia que caía, caía, caía…. Bloqueou-se a mente, tolheram-se os movimentos. As folhas da prova ficaram em branco e humedecidas por lágrimas. Decorridos alguns dias sobre o drama, sobreveio uma desmesurada sudação, crises de choro, incontinência urinária. Nada que a competência dos médicos e alguns sedativos não conseguisse dissipar.

Nesse tempo, já não era possível disfarçar a inutilidade dos exames, nem ocultar nefastos efeitos colaterais e perversões. Enquanto a Adélia me descrevia o seu drama, eu escutava-a atentamente, mas evocava outras situações absurdas em que as escolas de antigamente eram pródigas. O enem não colocava apenas jovens psicologicamente mais frágeis à beira de um ataque de nervos. Conforme estava concebido, não era apenas responsável por crises de sudação, choro e incontinência urinária. Mais do que um potencial descontrolador de esfíncteres, um exame é, em si mesmo, uma porcaria (eu ia escrever “merda”, mas optei pelo eufemismo, para não ferir sensibilidades).

Por: José Pacheco