Ílhavo, 15 de maio de 2040
Vim passar uns dias com a equipe de projeto da Isabel e da Bianca. Elas não são tão idosas quanto eu e ainda vão ao chão das escolas, ajudar professores. Faziam parte de uma plêiade de educadores que, há cerca de vinte anos, deram início a um projeto, que viria a mudar o rumo da educação. Eram tempos de mudança aqueles, mas também tempos de contradições.
No início deste século, o amigo Nóvoa assegurava que no futuro, não haveria salas de aula. Mas “especialistas” falavam de míticas “salas de aula do futuro”.
O sistema assimilava técnicas e materiais escolanovistas, deturpando a sua finalidade. Digeria os “materiais” Montessori, a “euritmia” de Steiner, a “imprensa e a classe cooperativa” do Freinet, o “global grupal” do Decroly, a “individualização” do Dottrens, a “pedagogia por objetivos” do Tyler e as “taxonomias” do Bloom, o “personalismo” do Mounier, o “método de projeto” do Kilpatrick, tudo isso e muito mais, para manter tudo como dantes.
Renitentes auleiros adotavam modismos, para disfarçar as mazelas da prática e as escolas enfeitavam-se de “construtivismos” e “socio construtivismos”, de bibliotecas tutoradas e tertúlias literárias, de “aulas híbridas e invertidas”, de “games” e videoaulas, de lousas digitais, “trilhas” e “cultura maker”, mantendo o aluno no estatuto de objeto de ensinagem e impedindo que ele fosse considerado sujeito de aprendizagem. Porque os pais “achavam” que assim deveria ser. Porque as escolas particulares tinham medo de perder alunos. Porque a direção “achava” que deveria haver aula. Porque a secretaria impunha que assim fosse… enfim!
Outro argumento era o de que os professores “não tinham formação adequada aos novos tempos”. Pois não! Porque a universidade percorria um caminho paralelo, produzindo teoria com caraterísticas de ficção científica, porque a prática dos palestrantes, pesquisadores e outros produtores das teorias era avessa… às teorias.
Mesmo entre aqueles que pugnavam pela mudança, havia quem insistisse em disfarçar os malefícios do sistema de ensinagem. E uma fraterna “polêmica” ocorreu, durante a pandemia. Pessoas, que eu muito ajudei e que admirava pelo seu cuidar das crianças, recorriam a práticas “híbridas” misturadas com resquícios de aprendizagem.
Fui sempre professor de chão de escola, compreendia as atitudes de sutil conservadorismo pedagógico e qual a sua origem – as escolas particulares não queriam perder “pais-clientes”, os “servidores” (sinistra expressão!) não queriam perder o emprego, os gestores não se atreviam a desobedecer às imposições e proibições das secretarias.
Em mais de cinquenta anos de vida profissional, repetidamente escutei o discurso do “coitadismo”, o recurso à chantagem emocional, à condescendência, que justificavam ficar no “nem uma coisa nem noutra”, ou voltar para a zona de conforto: “Muitos professores têm relatado encontros com os estudantes com momentos significativos. Mas há um desânimo, quando todo aquele esforço é julgado e apontado como farsa”.
Queridos netos, eu tinha (e tenho) muitos defeitos, mas nunca fui hipócrita. Nem com a maior dose de compaixão, poderia deixar sem resposta a minha amiga e autora desse inoportuno comentário. No mesmo dia, fraternalmente, respondi:
O esforço dos professores não é uma farsa. A aula é que é uma farsa.
A prática da aula, fóssil ou disfarçada com projetinhos, contribuía para a manutenção de um absurdo, comprometia a mudança, inviabilizava a inovação.
Por: José Pacheco
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