Vicente Pires, 22 de maio de 2040
“Avô, quase com noventa, ainda te preocupas com as coisas do mundo?”
Querido Marcos, já que perguntas, te direi que me preocupo menos. Apenas avivo a memória dos homens e comento as “coisas do mundo” de um tempo sombrio. À distância de vinte anos, vemos com mais clareza e desprendimento as “coisas do mundo”. E, quando a eternidade se aproxima, é maior o desprendimento.
Mais adiante, na tua cartinha, dizes que, nesse tempo sombrio, eras um jovem e não entendias a minha “irritação”. Compreendo. Como a maioria das pessoas desse tempo, não tinhas consciência da tragédia, nem das suas causas. Confesso que me irritava, me indignava. Hoje, apenas sinto compaixão.
Como eu não era pessoa de “ficar de braços cruzados, à espera da morte chegar”, fazia a minha parte, para evitar danos maiores. Certamente, estarás recordado das cartas, que escrevi para a tua irmã, no tempo em que ela nasceu. Numa delas, eu dava notícia de “muitas gaivotas, conscientes de que o tempo foge enquanto a eternidade avança, ousavam reinventar a Escola. Reivindicavam a felicidade do aqui e agora”. Tudo isto se passou no tempo em que tu nasceste, para que tivesses direito a ser feliz. Para que tu e a Alice viessem a ser pessoas felizes, centenas de educadores ousaram desobedecer às imposições da administração educacional.
O “Plano de Retorno às Aulas” da secretaria da educação apontava o “Ensino Híbrido” como “saída possível para os sistemas de educação, em todo o mundo” (sic), no contexto do isolamento social. A secretaria tivera mais uma visão salvífica: o “Ensino Híbrido” – considerado “atividade complementar” pela secretaria – iria “diminuir o impacto pedagógico causado pelo distanciamento social”. Iria remir os pecados do sistema de ensinagem. E… em todo o mundo!
A secretaria aderira a mais uma mezinha pedagógica, para disfarçar uma enfermidade crônica e manter o status quo.
Eu lera os livrinhos publicados no Brasil sobre o “ensino híbrido”. Era mais uma “redescoberta da roda” educacional, importada dos Estados Unidos. Dois anos antes, eu conversara com os promotores de cursos, que divulgavam essa “novidade”. Eram professores universitários, pessoas de boa-vontade, mas viciados na escola da aula. Com eles colaborei, apesar de serem “casos perdidos”.
Essa “organização do ensino”, como lhe chamaram os funcionários da secretaria, tinha por designação original anglo-saxônica a expressão “Blended Learning”. Em bom português, deveria ser designada por ”Aprendizagem Misturada”, mas era indevidamente designada por “ensino híbrido”, uma mistura de práticas do paradigma da aprendizagem com práticas do paradigma da instrução (ensinagem). Nada de novo. Cem anos antes, o Freinet tinha feito exatamente o mesmo, mas sem computadores… nem aula.
A substituição da palavra “aprendizagem” pela palavra “ensino” não acontecia por acaso. Era reflexo do condicionamento operado no seio de práticas sociais, que a escola convencional produzia e que uma racionalidade burocrática reproduzia “misturado” com mais um modismo pedagógico.
À patetice da administração, os núcleos de projeto responderam com uma responsável desobediência. Realizaram encontros virtuais com famílias e comunidades, antecipando os encontros presencias e virtuais, pós-pandemia. Verdadeiras aprendizagens seriam asseguradas e o direito à educação a todos seria garantido, sem aulas online ou “híbridas”: Sem “retorno às aulas”.
Por: José Pacheco
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