Alto Paraíso de Goiás 29 de maio de 2040
Nunca escrevi, nem escreverei um livro de memórias. Para nada serviria. Preciso é que fique registro de tempos sombrios e de tempos luminosos. que se sucederam, ou contemporaneamente se confrontaram. Nesta cartinha, vos falarei de um estranho fenômeno ocorrido nos tempos sombrios das primeiras décadas deste século.
No tempo em que a Alice estava em Coimbra, se formando em Psicologia e se transformando nos acasos que a vida tece, este vosso avô despendia tempo significativo comentando desmandos educacionais, pacificamente fustigando a devassidão da administração escolar. Eu era adepto e praticante da “comunicação não violenta” – a “cnv” – e usava a escrita para desocultar encobertas violências. Diziam amigos meus que, por vezes, eu sustinha a “cnv” e recorria à “pnv” – a “porrada não-viiolenta”. Ainda hoje, não sei se esses amigos teriam razão, mas era fato que eu não me retraía face a manifestações de autoritarismo ou corrupção, de que resultasse prejuízo para as crianças e para a escola – denunciava.
Nesta cartinha, darei início a uma delas denúncias: a da indevida utilização de uma iniciativa de um jovem chamado Salman Khan. Esse analista financeiro recebera um pedido dos seus jovens primos, que nada entendiam da Matemática “dada nas aulas” das suas escolas. Os primos de Khan moravam longe e não restava outra solução senão a de recorrer à Internet. As “aulas” do Khan foram um sucesso. Em escassos minutos, os primos aprendiam a Matemática, que, em muitas aulas de cinquenta minutos, os professores não conseguiam ensinar.
A fama das “aulas” do Khan correu mundo e o site por ele criado foi sendo utilizado por milhares de estudantes. E, com um milhão e meio de dólares, que Bill Gates lhe ofereceu, Khan fundou uma academia digital. Eu fui a São Francisco e estive nessa academia: a Khan Academy. Na conversa com os seus técnicos, apercebi-me de que a iniciativa do Salman Khan havia sido assimilada pelos mercadores da educação, deturpada e convertida em mais um paliativo do modelo de ensinagem.
Corolário desse desvirtuamento e falsificação: chegado o tempo da pandemia, empresas do ramo educacional vendiam cursos e assessorias; fundações financiavam fornecedores de videoaulas; skinerianamente alunos as consumiam, dependentes de vínculos afetivos precários estabelecidos com identidades virtuais.
Porquê esta arenga? – perguntareis.
Porque os vídeos de Salman Khan eram potencialmente inovadores. Era algo inédito, útil, sustentável, mas não eram “videoaulas”. Salman Khan detestava aulas. Quando alguém replicou os seus vídeos, fê-lo condicionado pela cultura inculcada pela velha escola: replicou-os, sem manter a iniciativa em permanente fase instituinte e mercantilizou a inovação.
Na próxima carta, vos contarei pormenores desse processo. Naquele tempo, eu explicava e provava que numa aula – presencial ou online – não se aprendia. A maioria dos ouvintes não entendia, ou não queria entender. Ainda hoje, á distância de 30 ou 40 anos, ainda há quem acredite nas virtudes das vídeoaulas, quando, já há muito tempo, elas estão expostas no museu digital das besteiras pedagógicas. Em 2040, ainda restam resquícios de mumificação pedagógica.
Por: José Pacheco
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