Ourique, 4 de julho de 2040
Dissestes que, na última cartinha, o vosso avô parecia pessimista. Então, retomo o assunto num tom, talvez, otimista.
Quando eu era jovem, os velhos professores avisavam:
Você é um lírico, um romântico, um utópico. Quando for mais velho, você mudará de ideias…
Saibam (dizia-se “saibai”, no modo imperativo de outros tempos…) que, ao longo de uma vida de quase noventa anos, sempre me consideraram como uma espécie de aprendiz de utopias. O certo é que partirei deste mundo tão utópico quanto pude ser. E tão ou mais utópico do que quando tinha vinte anos.
No período renascentista, utopia era quase sinónimo de protesto. Múltiplas utopias habitavam o reino da fantasia e da ficção científica. Shakespeare glosou-as na peça “The Tempest”. E no século XIX, as percursoras tentativas de Fourier e Owen visaram passar ao real o ideal de Morus ou de Campanela.
Importará reconhecer que, se Tomás Morus escreveu a sua “Utopia” baseado num opúsculo de Américo Vespuci, talvez seja necessário suliar a busca de novas utopias. Foi no sul que Vespuci encontrou um mundo onde “todas as coisas eram comuns”, onde “cada pessoa era dona de si própria”. Foi no sul que o navegador deparou com a concretização da utopia de não haver ricos nem pobres, uma sociedade mais humanizada do que a europeia.
A América viu concretizar-se a primeira experiência utópica renascentista. Em 1530, Vasco de Quiroga, juiz e bispo de Nova Espanha, fundou um colégio conservando as línguas autóctones e proibiu a escravidão dos índios. Depois, no hiato de cinco séculos, houve um desvio de rota…
Quando quis celebrar os feitos do Gama, Camões partiu dos relatos de Caminha e achou no sul a sua “Ilha dos Amores” – suliou o canto IX, ainda que o norteasse no estilo. O épico antecipou em quatro séculos a utopia de Agostinho da Silva, também ele navegante do sul. “Utopia” deixou de ser somente um vocábulo criado a partir do grego “lugar inexistente”. O mestre Agostinho, cultor de Vieira, demonstrou ser viável no Brasil a profecia de Tomás Morus. Aliás, tratar-se-ia apenas de recuperar o viver fraterno, igualitário, que caracterizava este território, antes da chegada dos europeus.
Embora, no século XXI, fosse discutível o modelo jesuítico de educação e questionáveis as observações do Padre Vieira sobre a escravatura, será preciso não esquecer que foram os jesuítas os fundadores da comunidade dos Sete Povos das Missões. Com heróis, como Sepé Tiaraju, organizaram as comunidades indígenas, protegendo-as da escravatura e da extinção.
A sanha assassina que se abateu sobre as Missões repetir-se-ia na destruição de Canudos. Estes exemplos, tão maltratados pelos historiadores que fizeram a história dos vencedores, constituíram dramáticos prenúncios do retorno da utopia às terras do sul, cujos povos inspiraram os falanstérios, os albigenses e cátaros, a Icária e a Nova Harmonia.
Na segunda metade do século XX, bem acompanhado por Anísio, Cecília, Eurípedes, Nilde, Darcy e outros educadores do sul, o português imigrado Agostinho da Silva traduziu obras de “utópicos”, para lançar sementes de renovação na educação. E eis a talvez otimista conclusão desta cartinha…
Nos anos vinte, havia escolas “utópicas” nos brasis da educação, lugares de ousadas transformações. No canto das almas sensíveis, que as habitavam, não cabiam trinados de medo, mas havia prudência. Porque, a par do canto das almas sensíveis e do seu amoroso fazer, o borogóvio – pássaro lastimável, por ser aparência de pássaro sério – insistia na imposição da regra do “sempre foi assim”.
Por: José Pacheco
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