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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLXIII)

Betim, 29 de outubro de 2040

Nos idos de vinte, uma amiga, convidada para integrar o júri de uma banca de doutorado, comentava a leitura de uma tese:

“O objeto de estudo é “engajamento docente nas metodologias ativas”.Agora, que passei a ver tudo com um olhaer crítico, até sinto vergonha. Sou professora universitária e vejo que os meus colegas da universidade superficializam o conceito e a prática das “metodologias ativas”.

Pensam que chegar com um plano pronto, com atividades em que o aluno só vai repetir orientações e instruções, é fazer o aluno ser ativo. E dizem que adotaram o ensino híbrido”.

Uma notícia de jornal desse tempo tinha por título: A cilada do ensino híbrido foi montada no meio da crise sanitária da Covid-19”. Tratava-se, efetivamente, de mais uma cilada, de uma fuga para a frente de professaurios e mercadores, uma armadilha em que caíram educadores ingênuos e que uma administração escolar conservadora usou para manter o status quo. Para vos “explicar” o processo, ouso fazer um breve bosquejo histórico, esperando não abusar da vossa paciência.

A perplexidade da minha amiga universitária se justificava. Ao longo de um século, três rupturas paradigmáticas se sucederam, em vertiginoso ritmo, sem que a universidade disso se desse conta. Em meados do século XX, após décadas de adaptação de teorias existentes a realidades que se transformaram, Thomas Kuhn, falava-nos de um paradigma emergente. No início do século XXI, aceleradas mudanças sociais, a pesquisa no campo das neurociências, a reificação da inteligência artificial, a sutil convergência entre a teoria da complexidade e a produção científica radicada no paradigma da comunicação, exigiam o reconhecimento da necessidade de operar profundas e urgentes rupturas paradigmáticas, no campo da educação.

Perdendo o monopólio do saber, apenas mantendo o da creditação, a universidade desenvolvia práticas de natureza meritocrática, burocrática, excludente. Com referência ao paradigma da comunicação, a produção científica dizia-nos que se anunciava a aprendizagem centrada na relação. Mas, alheadas da dimensão científica, as faculdades de pedagogia estiolavam na arte da aula, recriavam rituais de difícil erradicação, abriam caminho para a adoção de paliativos do modelo instrucionista. Um desses paliativos dava pelo nome de “ensino híbrido”, ou “educação híbrida”.

O sistema de ensino era pródigo em fraudes. O “híbrido” chegava para conservar o instrucionismo disfarçado de “inovação”, para que empresas “híbridas” lucrassem e os áulicos enriquecessem. Se os “híbridos” atingissem os seus intentos, mais uma vez, a escola da aula se enfeitaria de paliativos. E o genocídio educacional se prolongaria, sem fim à vista.

A minha amiga se dava conta de que a universidade já havia importado a famigerada “aula invertida” e vivia na ilusão da ensinagem. Sucediam-se as teses sobre o paradigma da comunicação. Paradoxalmente, os seus autores continuavam reproduzindo práticas fósseis, incompatíveis com o paradigma que, teoricamente, tinham adotado. Recomendavam a leitura das suas teses, incitavam os futuros professores a desenvolver a “autonomia do aluno”, o “protagonismo juvenil”, a fazer “ensino híbrido”, que diziam ser uma “inovação”. Mas, não passavam de inovadores não-praticantes

A universidade era a matriz e o exemplo. Não se surpreendesse, pois, a minha amiga com o fato de a quase totalidade das escolas radicar as suas práticas no paradigma da instrução, no que poderíamos, então, designar por proto-história da educação.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLXII)

Palmeira das Missões, 28 de outubro de 2040

No final de outubro do fatídico ano de 2020, assistíamos aos apelos da chanceler alemã. Ela pedia aos alemães que ficassem em casa, perante aumento dos casos de covid-19. O governo italiano encerrava teatros e cinemas e obrigava bares e restaurantes a fechar às seis da tarde. Um novo surto colocava a Bélgica no limite de capacidade dos cuidados intensivos. A Espanha preparava-se para declarar estado de emergência. Em Portugal, dezenas de escolas voltavam a fechar. Mas, o seu ministro da educação insistia num perigoso disparate:

“Tudo faremos para manter ensino nas escolas”.

Insistia em manter os jovens dentro dos prédios a que, nesse tempo, chamavam “escolas”. Relançava a ensinagem presencial até ao fim do ano letivo e a continuidade do inútil “EstudoEmCasa” televisionado. Justificando o injustificável, acrescentava que “as escolas preparavam formas de funcionamento, encarando a necessidade de encerramento parcial ou total”.

Já me habituara aos costumeiros disparates ministeriais. Aquilo que me surpreendia e desgostava era ver envolvido nessa farsa um secretário de estado, que se formara em ciências da educação. Num artigo de jornal, ele legitimava o ministerial procedimento:

“Há máscaras acessíveis. Dominamos melhor plataformas e técnicas de ensino. A cibersegurança é maior. E já sabemos que pode ser necessário fechar, como sabemos que, para muitos, a distância não funciona.”

Este secretário estudara sociologia, psicologia e história da educação,  epistemologia e currículo… sabia que a ensinagem “não funcionava”, nem presencialmente, nem à distância. Sabia que a crise não era, essencialmente, sanitária – era uma crise de natureza intelectual e moral.

Se me compreendiam atitudes ignorantes de políticos, eu não conseguia compreender o obsceno silêncio dos cientistas da educação. Esse insuportável silêncio contribuía para adiar urgentes mudanças. Tardava o dia em que o maléfico sistema de ensinagem viria a ser substituído por outro, de aprendizagem.

O sociólogo Giddens havia dito que, lamentavelmente, eram muitas as tensões que justificavam os “fundamentalistas que afirmavam: só há um modo de vida válido, e os demais têm de sair da frente”. Por essa altura, recebia mensagens, que, aqui, reproduzo. A Adriana, educadora de infância, perguntava:

“Pelo que o senhor falou nas lives, vi que estou dando aulas e poucos alunos estão aprendendo. O que realmente gostaria é que todos aprendessem. O que devo fazer para que meus alunos aprendam?

Assim respondi:

“Foi essa a pergunta que três professores fizeram, há 44 anos, numa escolinha portuguesa, a primeira a concretizar a proposta escolanovista… em equipe. Também poderás encontrar as tuas respostas… em equipe”.

O que eu pretendia dizer à Adriana era que a profissão de professor não deveria um ato solitário, mas um agir solidário.

Em outro e-mail, a Raquel, professora da rede pública, assim dizia:

“Sofro de sérias inquietações acerca de como a escola é tão opressora para as crianças, sendo que deveria ser um espaço de libertação. Me formei em pedagogia e não sinto que tive em minha formação a preparação necessária para a escola atual. A minha ideia é realizar a quebra de paradigmas, afirmar que, na nova escola, não é preciso dar aula. Humildemente, peço um pouquinho da vossa sabedoria, para dar luz nas minhas ideias, tão confusas. Afinal, eu também ainda sou uma professora que dá aulas. Eu poderia ser a sua aprendiz?”

Respondi com uma pergunta:

“Raquel, poderás ajudar-me a aprender? Poderei ser teu aprendiz?”

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLXI)

Nova Trento, 27 de outubro de 2040

No distante 2020, um amigo gaúcho assim se manifestava, num evento realizado em sua homenagem:

“Educação é uma coisa complexa. Não é o que o povo pensa, que basta pôr toda a gente numa sala de aula…”.

Logo na primeira vez que participamos de uma mesa de debates, expressamos a nossa mútua estima. Eu amava todos os educadores que diziam e faziam o que era preciso que se dissesse e se fizesse. Danilo Gandin era um desses educadores.

Esse Mestre era contrário ao uso de livro didático, porque a didática infantilizava os professores. Defendia uma mudança radical na forma como as escolas tratavam os seus alunos, a partir de um projeto político-pedagógico onde o autoritarismo e o conteúdo voltado para o vestibular não tivessem lugar. Era contrário à imposição do vestibular. Mas, no formato de 2020, o ENEM continuava sendo mero um instrumento de darwinismo social.

Há vinte anos, Danilo Gandin era uma das vozes mais autorizadas e esclarecidas no campo da educação. Talvez por essa razão, era quase ignorado. No Brasil desse tempo, a educação transformara-se num refúgio de canalhas e mercadores, que manipulavam a opinião pública, travestidos de inovadores.

A Hannah aprofundara o conceito de  “banalidade do mal”. E, em 2020, a teoria da Hannah era comprovada, sendo posta em prática. Os seus efeitos no campo da educação foram catastróficos. Não fora esforço de educadores conscientes e éticos, teríamos perdido uma década de transformações. Na Internet, recorrendo ao discurso das ciências da educação e deturpando esse discurso, marqueteiros da educação semeavam novas colonizações mentais. Negociavam “ensinos híbridos” com escolas particulares e com o poder público. Sutilmente planejavam a privatização da escola pública.

O planejamento do Mestre Gandin era de outra natureza. Escutemo-lo, à distância de muitas décadas:

“Existe um relacionamento quase cômico entre a atividade de planejar e a de arquivar: as pessoas que se envolvem em planejamento ortodoxo no Brasil necessitam, rapidamente, de algumas lições de arquivística. A maioria dos planos alcança, numa boa hipótese, um lugar respeitável no arquivo da instituição a que se ligam ou no de outras, cujos membros se interessam pelo estudo desses pretensiosos filhos da burocracia.

Num ano qualquer da década de 60, participando da elaboração de um audacioso plano, coube-nos, a mim e a um colega de trabalho, rever tipograficamente o texto definitivo. A penosa tarefa (eram mais de 200 páginas) interrompia-se por seguidas pausas, necessárias à nossa sanidade mental. Numa delas, durante um cafezinho, disse-me o amigo: “Vamos trabalhar com muito cuidado, pois nós seremos os últimos a ler este plano”. Nossa risada foi uma participação festiva na crença geral de que fazer planos é urna tarefa com valor em si mesma, da qual nada se espera realmente.

Não podemos esquecer o formalismo e a burocracia, que matam tudo aquilo em que tocam. Os experts fazem-nos preencher quadrinhos e formulários e nos dizem que estamos planejando. Evidentemente, nem eles mesmos levam a sério aqueles papéis e não julgam que vamos fazer algo daquilo. Mas a inconsciência e a falta de soluções os obrigam a render culto ao formalismo e à burocracia.

O planejamento trará a transparência de nossa ação, ou será burrice, safadeza e opressão. Há ainda a falta de capacitação técnica das pessoas que “planejam” ou mesmo coordenam a feitura de planos.”

Reparo, agora, que este saboroso naco de prosa ocupou quase toda a cartinha. Ainda bem, porque nada mais precisarei acrescentar.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLX)

Complexo do Alemão, 26 de outubro de 2040

Mais uma boca no mundo, mais um trafica chorando, lá vem mais um quase nada, mais um para chorar de fome, mais um para levar tiro, mais um bandido no morro, mais um perdido na vida… – Escutava a canção do Kleber e veio à memória alguém que conheci como a mim mesmo.

Nasceu num “cortiço”, onde havia quatro banheiros sujos e quebrados para partilhar com mais uma centena de pobres como ele. Passou a infância numa oficina de fazer vassouras, num bairro onde não entrava ambulância, nem polícia.

A família reinventava com dignidade a parca existência. O pai, que acumulava três empregos mal pagos, foi preso, injustamente acusado de roubar. A família empenhou o que restava dos poucos haveres, para provar a sua inocência. A mãe morreu jovem exausta de trabalho insano. Os avós paternos cedo sucumbiram à fome e a um surto de tuberculose. Os maternos tinham migrado da aldeia rural para a cidade grande, na ilusão de uma vida melhor. Partiram cedo desta vida, minados pelo álcool e por maus-tratos.

Estava destinado a ser líder de uma gangue do bairro. Era um dos raros que sabia ler, era hábil a resolver encrencas e a escrever cartas de amor encomendadas. Tão sagaz quanto franzino, ganhara o respeito de ciganos e marginais, que nele não usavam as facas e o defendiam de outras sortes. Com eles aprendeu a gramática da sobrevivência: agredir os gringos que na rua aparecessem e, só depois de eles sangrarem, perguntar-lhes ao que vinham.

Conviveu com todo o tipo de violência. Cedo entendeu que fora roubado todos os dias, desde o dia em que nascera. Que, enquanto os seus dormiam no chão da rua, outros dormiam sonos tranquilos.

Foi perdendo amigas para a prostituição e amigos para o cárcere. A sífilis, a fome e a bala foram ceifando vidas ao seu redor. O seu melhor amigo conheceu uma moça abastada e lá se foi, casamento de rico, sonho americano de ascensão social, que pouco durou. Sem amigos e sem futuro, pela mão de dois providenciais vizinhos, trocou a solidão pela evasão. Deles ficou devedor daquilo que nunca lhes pode pagar: o resgate de uma vida. Trabalhou para poder estudar e fez um curso – fez-se professor.

Ele sabia, melhor do que ninguém, que os criminosos não nasciam criminosos. Conhecia os mecanismos sociais que os produziam. Por experiência pessoal, também sabia que, quando a sociedade e a escola produziam exclusão, os jovens buscavam inclusão em grupos marginais.

Sensível aos dramas vividos pelos seus alunos, entristeciam-no as atitudes de professores coniventes com a má qualidade de uma escola vocacionada para manter um sistema iníquo.

Talvez porque não conhecessem a sua história de vida, os colegas de profissão se tivessem surpreendido com a sua colérica reação, quando escutou este diálogo, na sala dos professores:

“Quem pensa que é, aquele merdinhas, aquele marginal? Saio de casa para aturar esta bosta! Eu não ganho para isso!”

“Fez muito bem, colega! Eles vêm de casa desse jeito. Já nasceram assim. Esse pestinha vai ser líder de gangue. Eles não nasceram, eles foram cagados!”

Em 2020, um cúmplice silêncio ensurdecedor ocultava a “banalidade do mal”. Seria verdade que “quem nascia torto tarde ou nunca se endireitaria”? Aquilo que a psicologia chamava de “profecia autorrealizada” agiria na psique mais profunda dos professores? Sabíamos que a escola não mudava a sociedade, mas que mudava com a sociedade. Por isso, ousava perguntar: A reprodução escolar e social seria um inevitável fatalismo? A escola nada poderia fazer para a contrariar? Ou poderia fazer a sua parte?

A minha amiga Cleo fazia “a sua parte”.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLIX)

Cruz Alta, 25 de outubro de 2040

Numa cidade brasileira, agentes da autoridade deram caça a alunos que “matavam aula”. Capturaram-nos nos parques e nas ruas, ao estilo do bedel de velhos tempos. De um lado, professores esforçados e sofridos, dando aula numa escola sem sentido; de outro, matadores de aula, que não as queriam receber. Pelo meio, a caça aos matadores e a instalação de catracas.

Que feliz neologismo era o “descatracalizar”! Escutei-o na boca de um grupo de jovens conscientes do absurdo de muralhar as escolas. Escutei-o no mesmo dia em que outro jovem exclamava, durante a visita a uma escola sem catraca:

O portão fica aberto? E não tem grade? Assim, todo o mundo pode fugir!”

Como diria John Kennedy, o conformismo é o carcereiro da liberdade e o inimigo do crescimento. Libélulas morrem sob o efeito do stress do medo do peixe. Só de sentir a sua presença, elas morrem.

As escolas não são edifícios, muros, regulamentos. Escolas são as pessoas, que alimentam unidades sociais vivas, e estruturas organizacionais, que refletem um determinado regime de vida em comum, uma cultura. E como se caracterizava a cultura das escolas de há vinte anos?

Visitei muitas escolas. Iniciava a visita, quando a confusão do recreio cessava por obra de um toque de sineta e quando outros gritos se faziam ouvir, vindos das salas de aula.

Entrava no banheiro dos alunos. Por vezes, o vaso estava quebrado e não tinha descarga. Frequentemente, não havia papel higiénico, ou estava nas mãos de uma faxineira, que o distribuía em conformidade com a estimativa da necessidade do aluno que quisesse evacuar. Sabão para lavar as mãos era um bem escasso. E raramente encontrava um espelho.

Passava à visita seguinte: a biblioteca. Em tempo de aula, três hipóteses eram viáveis. Ou estava fechada, protegida por grades, com cadeado. Ou estava vazia, com uma bibliotecária, sentada num canto, a dormitar, ou a fazer malha. Se havia alunos na biblioteca, eles estavam “de castigo”, à espera de “audiência” com o diretor. Em suma: uma biblioteca era um depósito de livros, que nunca seriam lidos, ou uma antecâmara de tortura.

A terceira estação da minha via sacra era a sala dos professores. Aguardava que regressem de dar aula. Escutava as reclamações, as queixas, as explosões de cólera:

Essa merdinha nunca mais entra numa aula minha! Vai ser um lixo da sociedade!”

Concluía a visita convicto de que a escola se mantinha cativa de múltiplas violências. Confirmei essa realidade, quando descobri a existência de catracas mentais. Quando, no decurso de uma reunião, eu desocultava sutis formas de violência, o inusitado aconteceu: irritado e sem argumentos para contrapor à denúncia, o diretor da escola interceptava e fazia desaparecer papéis com perguntas, que os professores me dirigiam.

Para evitar fugas, ou impedir intrusões, muitas escolas completavam a catracalização com a instalação de detector de metais, câmeras de vigilância e sofisticados aparelhos de leitura das impressões digitais.

Ainda havia quem acreditasse que a conversão dos matadores de aula poderia ser alcançada vigiando, punindo, tentando transmitir informação moral. Que se desenganassem: os valores eram construídos em práticas efetivas. Se o “matador” se sentisse respeitado, se o vivido entre muros fizesse sentido, veria significado em permanecer na escola. Se o não fosse, que motivos teria para não “matar aula”?

Restava uma dúvida: a catraca prendia o matador de aula dentro, ou fora da escola? A catraca servia para evitar entradas, ou para proibir saídas? Em suma: para que servia uma catraca?

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLVIII)

Corumbataí, 24 de outubro de 2040

Nas minhas brasileiras deambulações pelo chão das escolas, presenciei situações típicas da crise educacional, que se vivia nos primeiros anos deste século. Deixo-vos com dois exemplos.

Portas fechadas, a tripulação do avião avisava ser proibido o uso de celulares. Os celulares tocavam e muitos passageiros faziam ouvidos de mercador, ligando para familiares e amigos.

Quando o avião chegou ao fim da pista, nos preparativos para decolar, a aeromoça insistia:

“Minha senhora, faça o favor de apertar o cinto da sua filha”.

“Ela não deixa colocar o cinto. Não consigo convencê-la!” – e a mamã insistiu:

“Vá lá, meu anjinho, deixa mamãe pôr o cinto!”

A resposta foi uma sonora bofetada dada pelo seu anjinho.

A mamã encolheu-se. Sorriu para a aeromoça:

“Não vê que é uma criança…”

E, durante toda a viagem, sapatos sujos em cima do assento, a criança premiu o botão de chamada, arrancou e destruiu tudo a que pode deitar a mão. Impunemente.

O avião aproximava-se da manga de desembarque. Três vezes a aeromoça apelou: “Por favor, permaneçam sentados até à paragem completa da aeronave”. Repetiu o apelo em língua inglesa. Os passageiros, já levantados dos assentos, não voltaram a sentar-se.

Presumi que fossem surdos, ou que não fossem… ingleses.

O segundo episódio ocorreu numa viagem por estrada. Um jovenzinho boçal descalçou-se, inundando o ônibus de um cheiro nauseabundo. Pousou um pé no espaldar do assento à sua frente. A passageira sentiu o contacto do pé (e do odor), encolheu-se e voltou o rosto para a janela.

Tal como outros energúmenos, esse jovenzinho deveria ter andado na escola da aula. Certamente, tiveram pais, parentes e amigos. Educação não tiveram. Quem os ajudou a crescer?

Naquele tempo, não havia um projeto político-pedagógico sequer que não estivesse inscrito. “O aluno será autônomo, responsável, protagonista da sua aprendizagem, preparado para a cidadania”. Mas, as práticas de ensinagem contradiziam as nobres intenções.

A introdução de uma Base Nacional Curricular Comum espúria apropriara-se do discurso contemporâneo das ciências da educação: “competências, educação integral, habilidades”… blá, blá, blá. E um “Parecer” sobre essa lei ilegal a legitimava, replicando o teor de leis nunca cumpridas: pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania” etc. etc. etc.

Bonito discurso: “difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum”. Sublinhando-se que “na implementação do projeto político-pedagógico, o cuidar e o educar [eram] indissociáveis funções da escola (…) para o desenvolvimento do aluno em todas as suas dimensões”.

A introdução da BNCC era um verdadeiro “poema”, mas a introdução não era a base. A maioria dos professores jamais a leram. Continuariam a “dar aula” pelo manual didático, porque a BNCC era uma proposta fundada no paradigma instrucionista. E de intenções estava o inferno cheio, como diria a sabedoria popular. Existia, há mais de um século, um fosso entre a intenção e gesto. E as leis eram nados-mortos.

Metaforizemos! Os ratos se reuniram na busca de solução para as perseguições que um gato lhes movia. No plenário, alguém teve uma ideia genial:

“Ata-se um sino ao pescoço do gato e quando ele se aproximar, nós ouvimo-lo”.

A proposta mereceu o aplauso e a aprovação por unanimidade. Contudo, lá da última fila, um ratinho ousou perturbar o consenso e a satisfação geral:

“Pois é. Eu também concordo com a proposta. Só gostaria de saber quem vai pôr o sino no pescoço do gato”.

 

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLVII)

Limeira, 23 de outubro de 2040

A Escola teria ensinado aquilo que o Dellors recomendara? – dirigi esta pergunta a um auditório majoritariamente constituído por professores. A resposta foi um silêncio ensurdecedor, quebrado por nova pergunta:

“Colegas, cadê os quatro pilares do relatório da UNESCO?”

O “aprender a conhecer” andava arredio do universo escolar. Quanto muito, os jovens eram depositários de informação jamais transformada em conhecimento, quase-inutilidades, que apenas serviam para debitar em provas e alcançar um diploma.

Estávamos conversados quanto ao aprender a fazer, a ser e a conviver. Um ensino livresco desprezava o desenvolvimento pessoal e social. Mas, eu acreditava ser possível que os educadores assumissem um compromisso ético com a educação, se emancipassem de lideranças tóxicas e de práticas instrucionistas.

Assim rezava uma notícia, no tempo da pandemia:

“Quatro alunos foram suspensos por terem partilhado comida no intervalo das aulas. Um dos alunos dizia que partilhara comida com um amigo, que nada tinha para comer. A diretora da escola afirmava que o aluno foi “repetidamente” avisado de que não podia partilhar nem comida, nem material.”

A diretora descrevia a situação a seu modo. O aluno descrevia-a de modo diferente. A palavra da senhora diretora parecia valer mais do que a do jovem. Um “plano de contingência” estabelecia regras, no “regresso às aulas” e um “Estatuto do Aluno e Ética Escolar” prussiano dava à diretora o direito de punir.

Ética? Qual? As práticas daquela escola não incluíam a ética do cuidar, que garantia o direito à educação. Quem puniria diretores que impunham a prática do instrucionismo, causa direta de abandono intelectual?

Nos idos de noventa do século passado, fui ajudar professores a contas com manifestações de extrema violência. No último intervalo da tarde, estudantes envolveram-se numa briga de torcidas. Roubaram a pistola a um polícia, partiram vidros. O posto médico cuidava dos feridos, quando eu cheguei à escola. Esperei que os professores se acalmassem. E perguntei:

“Existe um regulamento disciplinar nesta escola?”

Responderam afirmativamente. Pedi para o ler. Trouxeram-no e eu li-o, em voz alta. Todas as alíneas começavam pela expressão “É proibido”. Quando acabei a leitura, perguntei:

“Quem elaborou este regulamento?”

O documento fora elaborado pelo diretor e aprovado pelos professores.

“Os alunos participaram da elaboração do regulamento? Apresentaram propostas? – questionei. E li um dos itens: “É proibido fumar no banheiro”.

“Como reagiríeis a esta proibição, se tivésseis 17 ou 18 anos de idade?”

Os professores entreolharam-se. Alguns sorriram. Eles fumavam, na sala dos professores e no banheiro. Se tivessem 17, ou 18 anos, contestariam a proibição, desobedeceriam. Se os jovens não participavam na definição de regras de convivência, por que razão as deveriam cumprir?

Na década de vinte, era introduzida mais uma moda paliativa do instrucionismo: o “projeto de vida”. A secretaria de educação assim a apresentava aos alunos:

É verdade que é mais uma das disciplinas novas que você tem”.

Essa “reinvenção da roda pedagógica”, era uma caricatural reprodução de uma prática introduzida na Escola da Ponte, nos idos de setenta: o currículo subjetivo.

O “projeto de vida” seria lecionado numa determinada “carga horária” No restante tempo de cada semana letiva, ao que parece, não haveria… “projeto de vida”.

Falava-se de “educação para a cidadania”. Não se sabia que nos educávamos na cidadania, no exercício de uma liberdade responsável.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLVI)

Holambra 22 de outubro de 2040

O moço havia chegado à Ponte, expulso de outra escola e bem recomendado:

“É uma criança mimada e desobediente”.

Pendurou o seu paletó num cabide, derrubou dois e não fez menção de os apanhar. Fui ao seu encontro. Olhei para os objetos caídos, enquanto o meu braço pousou nos seus ombros, num amistoso abraço. O moço tentou soltar-se, mas o amplexo era firme. Gritou:

Não fui eu!

Fitei-o, calma e insistentemente. O moço voltou à fala, mas mais mansinho:

Os paletós não são meus!

Continuei olhando os paletós. O moço voltou atrás, apanhou-os e pendurou-os nos cabides de onde os tinha arrancado. Pelo fim da tarde, uma senhora entrou na escola, dirigiu-se ao vestiário, retirou do cabide o paletó do moço, atirando outro ao chão. Não se baixou para o apanhar… era a mãe do moço.

Nesse mesmo dia, acerquei-me do grupo, que o tinha acolhido. Já passava das dez horas e ele nada havia feito, se excetuarmos alguns pontapés por debaixo da mesa e o atirar de bolinhas de papel para as mesas de outros grupos. Sentei-me junto dele e perguntei o seu nome.

“Sou o Nuninho”.

“O teu nome é Nuno?” – quis confirmar

“Não! É Nuninho!”

“Então, passas a ser o meu amigo Nuno, está bem?”

Olhou-me de soslaio, mas não contestou.

“Por que não estás a estudar como os teus colegas?”

“Você não sabe? Na outra escola, eu não fazia nada!”

“Por quê?” – perguntei.

“Você não sabe? Eu sou disléxico!”

“Muito prazer em te conhecer! Eu sou o Professor Zé!” – me apresentei. O moço olhou-me com cara de quem pensava que eu não sabia o que era um disléxico. Continuei:

“Amigo Nuno, vais fazer o teu planejamento. Os teus companheiros vão ajudar-te. Eu voltarei, daqui a pouco, e quero ver o que já aprendeste”.

O grupo entendeu a mensagem. A pressão social operou milagres. O que eu disse não soou como ameaça, mas como persuasão firme e amorosa. O Nuninho, já promovido a Nuno, compreendeu que, perante um dito do professor, teria de optar entre fazer o que o professor dizia e fazer o que o professor dizia que fizesse. Optou por estudar. É evidente que cuidei de agir como se age com um disléxico. Mas, a dislexia não o impediu de aprender.

A Hanna Arendt dizia que as pessoas que não quisessem ter responsabilidade pelo mundo não deveriam ter filhos. E que os pais que não exerciam a sua autoridade, deixavam os seus filhos nas mãos de chefetes, que os lançavam no conformismo e na delinquência. A educação deveria começar na “domus” e continuar no seio da escola e da cidade, porque os filhos não nasciam com manual para uso dos pais e urgia assegurar o preceito de Napoleão: “a educação de uma criança começa vinte anos antes dela nascer”.

Naquele tempo, os infantes eram guetizados em instituições de rituais sem sentido, cativos de TV e computador. Seria preciso protegê-los da terceirização educacional. A escola poderia ser um lugar de reparação da deseducação, quando instituísse dispositivos de convivencialidade, num permanente e equilibrado diálogo com as famílias. A lei estabelecia que a educação era dever da família, da sociedade e do estado. O “e” era coordenativo, mas a prática educacional desse tempo era disjuntiva.

Entretanto, uma rede de comunidades de aprendizagem se formava, círculos de vizinhança surgiam. Neles, a família e a escola partilhavam a responsabilidade de educar. Em projetos de vida, nos quais a autoestima andava a par com a hetero-estima, onde cada ser humano era individualmente responsável pelos atos de todos os outros, onde a autoridade rimava com a liberdade e a firmeza rimava com a delicadeza.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLV)

Americana, 21 de outubro de 2040

Há cem anos, Fernando de Azevedo avisava: “O que é bom para os Estados Unidos pode não ser bom para nós”, mas o Brasil nunca o escutou. Vindas do hemifério norte, modas pedagógicas eram injetadas nas escolas. Se o nortear (aquilo que vinha do “norte”) sempre tinha sido regra nas iniciativas de política educacional, em 2020, acontecia o desnorte total. Predominavam orientações (de “oriente”) de natureza neocolonial.

Seria necessário desnortear, desorientar, talvez mesmo… suliar. As palavras produzem e reproduzem cultura, mas ouso discordar parcialmente da crítica feita pelo Fernando, na grata surpresa de uma exceção. Nos Estados Unidos, eu havia encontrado uma empresa onde a criatividade e até mesmo a inovação acontecia: a Khan Academy. E, no Brasil, fui assisir ao lançamento de um livro da autoria do seu criador: Salman Khan. Nesse livro, Khan falava de uma educação reinventada e fazia as mesmas denúncias do Azevedo, do Lauro e de outros ilustres educadores brasileiros.

Nesse tempo, quando alguém me dizia que não havia “feito pedagogia”, eu respondia: “Graças a Deus!”. Quem passasse pelos bancos das faculdades de pedagogia teria muito mais dificuldades de reelaborar a sua cultura profissional do que o Khan. Por não ter “feito pedagogia”, esse analista financeiro dizia-nos que o velho sistema estava fracassando e precisava ser repensado, que a educação teria de mudar. Dou-vos a ler palavras de Salman Khan, inscritas na sua obra “Um mundo, uma escola”:

“A lição tradicional age contra os objetivos da educação pública (…) A aula acaba por se revelar um meio ineficiente de ensinar e aprender (…) A minha ideia de educação nunca foi a de que ela estaria completa com uma criança assistindo a vídeos no computador e resolvendo exercícios. Muito pelo contrário. Sempre sonhei em ser mais do que um recurso online. Sentíamos que estávamos em um ponto da história em que a educação podia ser repensada”.

Talvez afetados pelos vícios de que padeciam os seus “superiores”, ou por medo de perder o emprego, a maioria dos professores adotava “vídeo-aulas do Khan”, para exportar inúteis “atividades”, em aulas síncronas e assíncronas, perenizando as práticas que Salman Khan criticava. Aqueles que afirmavam tê-lo como referência apenas faziam cosmética pedagógica. “otimizando” o modelo prussiano de escola. Se alguns professores usavam vídeo para mehorar a sua prática, outros usavam os vídeos do Khan em inúteis aulas presenciais e online.

Secretarias de educação brasileiras injetaram doses maciças de tablets no quotidiano da escola, reforçando a prática da mesmice em versão digital. Há cerca de uns vinte anos, encontrei nos armários de uma escola centenas de tablets, que nunca tinham sido usados. Também encontrei os chamados “laboratórios de informática” convertidos em lixo digital.

Por que se insistiria no uso de plataformas digitais de ensinagem e em dotar cada aluno com um laptop? Para gerar monstrinhos adoradores de tela, na mera substituição do livro didático pelo computador?

Voltemos à leitura do livro do Khan. Ele nos convidava a acabar com a escola de sala de aula, da turma, da série, da prova… do instrucionismo. Porém, um sistema educacional nas mãos de uma administração burocratizada exercia seus podres poderes, impondo às escolas a utilização acrítica das tecnologias digitais de informação e comunicação. Na contramão do desperdício, havia quem preferisse ver o “copo meio cheio”. À margem do desperdício, se abria caminhos de utilização humanizadora das novas tecnologias.

 

Por: José Pacheco

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Novas Histórias do Tempo da Velha Escola (CCLIV)

Mogi-Guaçu, 20 de outubro de 2040

Por duas vezes e em situações atípicas, os nossos alunos recorreram ao estilingue, para… finalizar projetos.

No final dos anos setenta, o centenário e decrépito edifício da Escola da Ponte ameaçava ruir. Tinha sido reinaugurado em 1918, conforme atestava a lápide afixada na parede de estuque esburacado.  No tempo da ditadura, havia sofrido melhoramentos, mas o cupim apostava em acabar com o que restava das madeiras. O soalho, também de madeira, era como um campo de golfe, mas com mais buracos. Sentindo a necessidade de instalações adequadas ao projeto, os pais dos nossos alunos reivindicaram a construção de uma escola de “área aberta”. E o velho edifício foi demolido. Entretanto…

O ano letivo começara, há mais de um mês e nós começávamos a perder a paciência. A obra estava concluída e nós permanecíamos reclusos num precário barracão, que fora erigido pelos pais e que funcionou como escola, durante dois anos. Obra acabada e sua excelência, o presidente da edilidade, não se dignava “agendar” a solene inauguração.

Para grandes males, grandes remédios. O Neca Serralheiro trocou a fechadura e nos instalamos no novo edifício. Por volta das dez horas, uma campainha se fez ouvir. Fomos procurá-la. Fora instalada junto ao telhado, inacessível. O Zé Gaio sugeriru que se fizesse um “concurso de estilingue”. Assim se fez. E, à décima tentativa, o Tónio Morcego acertou no aparelho. A pedrada definitiva fez calar a sineta elétrica. Se não fazíamos “intervalo”, para que serviria o incômodo barulho?

Encerremos este nada edificante relato e passemos ao segundo episódio.

Ao chegar à escola, após a interrupção de atividades letivas, deparei com duas velhinhas. Pensei que pretenderiam matricular alguma criança. Mas, ao reparar que uma delas estava de braço ao peito e a outra com um olho inchado, indiquei-lhes o caminho para o posto médico. Retorquiram:

“Nós não queremos ir ao médico. Já lá fomos. O que queremos é falar com os professores”.

Apresentei-me como professor da escola e logo fui invetivado:

“Foram os vossos alunos que nos puseram neste estado!”

Acalmei as velhinhas e escutei as suas queixas.

Junto à escola, uma lixeira a céu aberto levava mau cheiro e pernilongos para dentro da sala de aula, que ainda as havia, naquele tempo. E as crianças conceberam um projeto, para se livrarem do incômodo. Afixaram cartazes de sensibilização:

“Por favor, não jogue o seu lixo neste local”.

Perante a insensibilidade dos utentes da lixeira, cartazes de denúncia foram afixados:

“O Manel da Passarada é porco”. “A dona da farmácia joga restos de medicamentos na lixeira”.   

Nada adiantou. E fomos celebrar o Natal. Esquecemo-nos de um pormenor: as crianças levavam muito a sério os seus projetos. E levavam-nos até ao fim, até alcançar o objetivo. No primeiro dia de “férias”, dado que a sensibilização e a denúncia não resultaram, montaram um piquete e se emboscaram, atrás do muro da ecola, armados de estilingue. Quando as duas velhinhas se preparavam para ali deixar o seu lixo. duas pedradas certeiras as mandaram para o posto médico.

Na reunião da assembleia, as crianças conversaram com as velhinhas, abraçaram-nas, beijaram-nas e pediram desculpa. Explicaram-lhes o que era um projeto e por que cometeram o radical ato. Feitas as pazes, as crianças escreveram uma carta, que as velhinhas levaram à prefeitura. Na missiva, se exigia a erradicação da lixeira.

Na semana seguinte, dois funcionários limparam o local. E mais ninguém se atreveu a deixar lixo junto da escola. Porque, naquela escola, havia mestres… em estilingue.

 

 

Por: José Pacheco

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