Queluz, 21 de julho de 2040
Prestes a partir para terras brasileiras, participei num encontro de académicos interessados em conhecer a nova educação, nascida no sul de há vinte anos. Aproveitei o ensejo para lhes falar de Florestan Fernandes e da sua obra.
Amanhã, completar-se-ão cento e vinte anos sobre a data do seu nascimento. O insigne educador brasileiro nasceu em São Paulo, em 22 de julho de 1920 e na sua cidade-berço faleceria em 1995. A morte o levou, pouco antes da aprovação de uma Lei de Bases, que ajudou a construir.
Não sei se no lugar etéreo onde se encontra “memória desta vida se consente”, mas sei que o eminente sociólogo se surpreenderia, se soubesse que, um quarto de século depois, essa lei continuava por cumprir. De absurdo em absurdo, os desgovernantes da educação tudo faziam para impedir o seu cumprimento. Narrarei um caso exemplar.
Um governador inaugurou uma escola construída no “Padrão Século XXI”. Pouco tempo após a inauguração, um jovem aluno foi morto a tiro dentro dessa (dita) escola modelo. Outro rapaz foi atingido por uma bala perdida.
A diretora disse que o rapaz tinha comportamento normal e boas notas. O porteiro do colégio prestou depoimento: a Polícia Militar vem, ajuda, mas quando eles saem os marginais voltam. Acrescentou que o colégio tinha encomendado câmeras de segurança e uma barreira de proteção em volta do prédio onde os alunos estudavam. Que um serralheiro colocaria placas em volta da escola, mas, antes de ficar pronto, infelizmente aconteceu essa tragédia”, disse. Um superintendente da secretaria de Educação averiguou as condições da infraestrutura de segurança e, peremptoriamente, afirmou: um circuito de câmeras de monitoramento será instalado ao redor de toda a escola. E a Polícia Militar, por sua vez, informou que fazia rondas intermediárias.
Porém, apesar de todas as garantias dadas por quem podia dá-las, poucos alunos apareceram na instituição na manhã seguinte. E uma mãe decidiu mesmo tirar o filho daquela escola, porque se cansou de ouvir os relatos do menino, que afirmou ter testemunhado o uso de drogas no local. Culminando esta insana sequência de fatos, a escola, que era pública, se tornou uma instituição militar.
Disse a minha amiga Ely que pais e governo comemoraram o plano de recuperação da qualidade da escola, através da colocação de policiais militares, uma solução retrógrada, talvez inconstitucional e desnecessária. Quanta ignorância a de pensar que se poderia acabar com a violência explícita com recurso à violência simbólica, numa escola-caserna! Ou que um ambiente castrense poderia gerar autonomia e disciplina.
Na minha provecta idade, eu estava crente de que já tinha visto tudo, mas estava imbuído daquele engano de alma ledo e cego, que a fortuna não deixa durar muito… Perplexo com tantas besteiras, iria juntá-las ao balde do lixo do computador. Eis senão quando, este português cioso da sua herança cultural, encontrou uma razão para reagir – a ocupação das escolas pela PM começaria no “Colégio Fernando Pessoa”.
Diria o Fernando poeta que tudo vale a pena, quando a alma não é pequena. E o que não vale a pena é perder o dom da indignação. Por que não deixavavam o poeta em sossego, no seu repouso eterno? Por que se permitia que a poesia e a pedagogia fossem vilipendiadas? Por que se calavam os educadores perante tantas aberrações? Por que razão, os educadores brasileiros não seguiam o exemplo do Florestan sociólogo, que dizia ser o professor “um cidadão e um ser humano rebelde”?
Na cartinha de amanhã, vos darei um princípio de resposta.
Por: José Pacheco
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