Três Marias, 8 de agosto de 2040
Decorria o mês de julho do confinamento. Numa reunião, via zoom com representantes do concelho geral de duas escolas, foi discutido com o senhor diretor do agrupamento e o seu assistente – “agrupamento” era um ajuntamento de escolasimposto pelo ministério – os horários do início do ano letivo e os procedimentos a ter, “em conformidade com normativas emanadas do ministério”, entre as quais:
As turmas iriam ser divididas em dois horários: o da manhã e o da tarde. O quinto, o sétimo e metade das turmas do nono ano funcionariam durante a manhã; o sexto, o oitavo e a outra metade das turmas do nono, no período da tarde. Nunca foi dada explicação cabal para esta divisão, mas “o ministério mandou, está mandado”, como disse um senhor diretor. Apenas se acrescentava a recomendação da direção geral de saúde, de dois metros de distância entre alunos e destes com os professores e funcionários.
O diretor achou por bem cumprir as regras impostas pelo ministério: colocar vinte e cinco alunos dentro de uma sala de aula apenas com trinta metros quadrados de área. A distância de segurança seria de cerca de um metro, porque a regra imposta pelo ministério poderia ser alterada, se não fosse possível cumpri-la…
As crianças e os jovens deveriam passar cinco horas seguidas, fechados dentro de uma sala de aula,armados de máscara e de costas voltadas para os colegas. Não teriam direito a intervalo. Haveria trêspausas de cinco a dez minutos, no período de cincohoras seguidas.
A lista de regras omitia a necessidade de fazer xixi. Quanto à alimentação, para que não houvesse aglomerações, os alunos que saíssem às treze horas pegariam um almoço “take away” e o levariam para casa. Aqueles que entrassem à treze comeriam o “take away” fora da escola. Se chovesse seriam autorizados a almoçar dentro da sala de aula, apesar de, entretanto e supostamente, a sala devesse estar a ser desinfetada.
Para os alunos do período da tarde, havia trêsplanos: o A, presencial; o B, misto (metade presencial, metade on-line) e o plano C, totalmente on-line. De nada valeram os protestos de professores, que ainda não tinham tido tempo de aprender a dar aulas on-line – “coitados, só sabem dar aulas presenciais, a preocupação é normal”, como alguém comentou.
A Paula, mãe amorosa e responsável, ironicamente comentava as “normativas”: “Havia o pressuposto de que o prédio da escola seria o mais seguro lugar do mundo. Que o vírus nela não conseguiria entrar. Não passaria do portão da escola. O vírus não gostava das grades e de muros e sabia que não seria bem-vindo, teria de ficar de fora”.
Outras mães contestaram as ridículas “medidas de proteção”. Mas, foram “aconselhadas” pelo arrogante senhor diretor a ler um documento sobre o assunto, para que pudessem fundamentar a crítica. Uma das mães, que me facultou a descrição da reunião disse-me:
“Aquilo que consegui concluir da reunião é que eu sou inculta, a pessoa mais burra do mundo, pois não percebo como a possibilidade de um crime possa não ser considerada. O ministério e o diretor não estão a defender os interesses das crianças. Talvez o vírus tenha feito um protocolo com o ministério…”
A saudável ironia desta mãe contrastava com a estupidez, a incompetência e a irresponsabilidade de políticos e gestores, que encenavam a farsa do “regresso às aulas”. Por vezes, fico a pensar que vos seja difícil acreditar naquilo de que vos venho dando notícia. O sem sentido dessas ocorrências transforma-se em absurdo para quem vive em 2040. Mas, podereis crer que tudo isso aconteceu e do modo como vos conto.
Por: José Pacheco
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