Januária, 9 de agosto de 2040
Era uma vez… Esta cartinha começa assim.
Era uma vez, um professor. Ensinava aritmética, português, geografia, francês, latim, mas que não conseguiu suportar a vida de mestre-escola, nas escolas das fazenda, ao serviço de barões. E escassos foram os anos dedicados a uma docência precária e mal remunerada. Buscou sustento em profissões de mais generosos proventos. Foi escrivão, solicitador e advogado sem diploma. Até se decidir pela errância no interior do Ceará, restaurando igrejas, construindo capelas, peregrinando pelo sertão, expondo-se a conspirações e calúnias. Atento às pregações do padre Ibiapina, estudava os textos sagrados e divulgava o Evangelho entre o povo humilde, de quem escutava preces e a quem dava consolação. Daí o cognome que lhe conferiram: Conselheiro.
Não sei se teria consciência da ira que o seu agir despertava em eclesiásticos e latifundiários. Os poderosos não perdoavam a fuga de súbditos, que o seguiram e ajudaram a fundar o arraial do Bom Jesus. Acusaram-no de assassino. Mas, provada a sua inocência, o seu prestígio cresceu entre os deserdados. A castigada gente projetava na sua pessoa a esperança de libertação de um cativeiro de séculos.
Deu o nome de Belo Monte ao povoado, que viria a ser conhecido por Canudos. António era como o santo de Assis, pedreiro construtor e reconstrutor de templos, congregando almas dispersas, banindo o uso do vil metal, instituindo a propriedade comum. Aquela fazenda abandonada às margens do rio Vaza-Barris foi anunciada como a terra prometida aos miseráveis, às prostitutas e aos jagunços. E era tal a sua fé, que as prostitutas viraram mulheres de virtude e os jagunços se transformaram em paladinos da justiça.
Não lhe perdoaram a utopia de um Brasil sem violência. O genocídio perpetrado por um exército manipulado por políticos e barões mataram o seu sonho de uma sociedade justa. Os poderosos do século XIX negaram a quinze mil seres humanos o direito a uma vida digna.
No final do século XIX, António acolheu a heterogeneidade social e cultural, assegurou inclusão, criou condições de satisfação de necessidades básicas, no respeito pela cultura local. Os poderosos do século XXI mantinham o mesmo iníquo sistema, que negava ao povo brasileiro direito fundamentais. No século da suposta valorização de minorias, num lugar remoto do nosso Brasil, eu escutava narrativas de culturas destruídas. Como aquela que nos falava de um astrônomo de visita a uma aldeia. Instalou a luneta e convidou um jovem da comunidade indígena para espreitar o céu.
Consegues ver a constelação de escorpião? – perguntou o astrônomo.
Não. Eu vejo a da onça! – respondeu o jovem.
Nada disso! Eu sou astrônomo, eu é que sei! É a constelação de escorpião.
Decorridos dois anos, o cientista reencontrou o jovem e renovou a pergunta:
Então, meu jovem, já consegues ver o escorpião?
O jovem indígena respondeu:
Consigo ver o escorpião, sim! Mas, deixei de ver a onça. Nos dias em que você esteve na minha comunidade, o escorpião matou a onça.
Decorrido quase um século após a tua morte, Agostinho nos falaria do respeito pela diversidade cultural e evocaria a memória de Antônio Conselheiro:
“Temos de reorganizar todo o sistema educacional com o espírito de descobrimento, que foi criativo em Canudos”.
Em 9 de agosto de 2020, o vírus já matara mais de 100 mil brasileiros. A incúria da desgovernação transformara uma pandemia numa tragédia de imprevisíveis proporções. Urgia recuperar o “espírito de descobrimento de Canudos”.
Por: José Pacheco
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