Paulo Afonso, 8 de setembro de 2040
Quando a quarentena chegou, “caiu a ficha”, e a Milene deixou de dar aula. Nem presencial, nem online. Nesse setembro de há vinte anos, essa professora optou por construir projetos, a partir de curiosidades e necessidades manifestadas pelas crianças e pelas suas famílias. Se, antes, nunca conseguira ensinar tudo a todos, a Milene apercebia-se de que, no “novo modo”, todos os seus alunos aprendiam tudo aquilo que uma BNCC determinava que elas aprendessem.
Co-elaborava roteiros de estudo e acompanhava pesquisas, ajudando os alunos a selecionar informação, a analisá-la e a criticá-la. Neles desenvolvia processos complexos de pensamento: a capacidade de análise, a comparação entre diferentes informações, a elaboração de sínteses – as crianças aprendiam a pensar sobre o pensar. E, a par do desenvolvimento da metacognição, uma nova avaliação: escutando as comunicações dos seus alunos, reunia “evidências de aprendizagem”, que remetiam a prova para o baú das velharias. Até ao dia em que um pai se manifestou, dizendo que a sua filha queria que a Milene voltasse a dar aula. A menina “estava cansada de pensar e preferia ouvir aula” (sic).
O Piaget dizia que a única área em que todo mundo se considera especialista é a… educação. Nenhum pai ousaria discordar do tratamento dado à sua filha por um pediatra. Ninguém poria em causa o diagnostico de um psicólogo. Mas, pensando bem… se um pai engenheiro se atrevia a ordenar a uma professora que desse aula, por que razão a professora não poderia fazer o projeto de uma casa? Se um qualquer cirurgião se sentia no direito de dizer como um professor deveria trabalhar, eu me sentia no direito de fazer operações cirúrgicas. Por que não?
Certo dia, assim me dirigi à minha diretora:
“Por que será que os pais se comportam desse modo? Por que não conversamos com eles?”
Obtive como resposta alguns sorrisos condescendentes e um conselho:
“Os pais, quanto mais longe, melhor! Não queira arranjar problemas e vá por mim, que já cá ando há mais tempo. Deixe os pais em paz! Quando vêm à escola é só para bater nos professores. Fique sabendo que a professora que você veio substituir teve um braço partido, por via de uma porrada que um pai lhe arreou”.
Não me dei por convencido. Insisti:
“Por que será que os pais não vêm à escola? Se vão à igreja, ao estádio, ao boteco, por que não vêm à escola?”
“Se quer saber… vá ao boteco!” – ripostou a diretora.
Eu fui. Findo o curso duplo da manhã de segunda-feira, me instalei na tasca da Maria Morcega. Enquanto almoçava na mesa do canto, ia deitando um rabinho de olho à freguesia. Decerto que algum dos inacessíveis pais andaria algures por ali.
O Quico entrou na tasca abraçado a uma garrafa e pôs-se em bicos de pés, rente ao balcão:
“Miquinhas, meio quartilho do tinto, faz favor. É para assentar”.
Só à saída se apercebeu da presença do seu novo professor. Corou, sorriu, abalou a dar a notícia ao pai. Coisa nunca vista por ali! Enquanto engolia a água de unto e o feijão com linguiça, o pai insistia com ele:
“Tu tens mesmo a certeza de que era o teu professor? E ele está na tasca da Maria Morcega?”
Concluído o breve repasto, movido pela curiosidade, o pai do Quico dirigiu-se à tasca. Mandou vir um “negus traçado”, para cortar a gordura da linguiça e se quedou a fitar-me. O meu estrábico olhar observa-o sem que ele suspeitasse de que o estava a observar. A certa altura, o Quico colou-se às pernas do pai e, discretamente, apontou o dedo na minha direção.
Como esta cartinha já vai longa, na cartinha de amanhã, vos direi o que aconteceu.
Por: José Pacheco
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