Fazenda Nova, 11 de setembro de 2040
Queridos netos, neste mesmo dia de setembro, mas há trinta e nove anos, pássaros metálicos derrubaram torres altaneiras e semearam a morte nas terras do norte. Nas terras do Tio Sam, de onde, num outro onze de setembro, partiram mensageiros da morte, para semear sofrimento no sopé dos Andes.
Disso vos volto a falar porque, nos dias que sucederam ao vosso nascimento, o reino dos pássaros vivia ensombrado pela compreensão de uma evidência: as sociedades que dispunham das melhores escolas eram as mesmas sociedades que produziam exércitos ocupantes e seres egoístas que, em nome do seu conforto, envenenavam os céus de outros pássaros com gases letais. Nesse tempo, também através da escola se perpetuavam insanos ciclos de violência e morte.
Nas cartinhas, que vos enviei no início deste século, vos contei a estória de uma escola, onde a solidariedade não era palavra vã:
No primeiro ano do vigésimo século da era dos homens (no tempo de um discreto anunciar da era dos pássaros), uma andorinha acreditava que o vigésimo século do tempo dos homens seria chamado “o século da criança”. Que a escola faria dos pássaros e dos homens seres mais sábios e mais felizes. Porém, durante todo esse século, a Escola apenas reproduziria velhos rituais sem sentido. A escola dos homens não produzia humanidade, produzia muitos bonsais humanos. E, no princípio do século em que nascestes, a escola já nem sequer conseguia ensinar.
As gaivotas protagonistas dessa estória, por serem pássaros “aprendizes até ao último bater do coração” acharam um modo de não perecer. Imitaram os gansos, nas suas viagens para o sul:
“Quando a proximidade do Verão impelia as andorinhas a partir, elas voavam sempre em bando, desenhando no céu a forma de um vê. Quando uma andorinha batia asas, produzia uma corrente de ar ascendente que ajudava a progressão das companheiras que voavam atrás de si. Se, por efeito de um golpe de vento ou tentação de lonjura, alguma andorinha se afastava do bando, logo regressava ao seu amplexo protetor. E, quando a fadiga assaltava a andorinha que ocupava o vértice da cunha voadora, logo outra andorinha corria a ocupar o seu lugar. Poder-se-ia pensar que a andorinha que voava à frente de todas as outras cortava o vento sem ajuda de ninguém… puro engano: se perante os seus olhos se estendia o sem fim do espaço, atrás de si, todo um bando a impelia para a frente e lhe conferia a escolha do rumo. A ciência dos homens apurou que as andorinhas que voavam no aconchego do bando emitiam sons que animavam as que, por contingência, ocupassem os lugares da frente.
A andorinha é criatura de hábitos gregários, que não sobrevive à solidão e que, quando aprisionada, resiste secretamente em silêncios que falam de voos por dentro. Mas a desta estória manifestava uma alegria de existir maior que a saudade que sentia de África. Não estava sozinha, mas amparada. No decurso das viagens, sempre que adoecia ou ficava ferida, logo as duas mais próximas abandonavam o bando, para a acompanhar e proteger, somente regressando ao aconchego de um outro bando em migração, quando a andorinha que protegiam recuperasse a capacidade de voar, ou viesse a morrer.
Nesse distante mês de setembro dos primeiros anos deste século, em terras do norte europeu, os primeiros frios foram temperados com a chegada de pássaros de todas as cores e origens, que, seguindo o exemplo das andorinhas solidárias, acorriam em auxílio da escola das aves. Já não era apenas uma escola que urgia perseverar, mas todas as escolas onde, sob múltiplas formas esboçado, o futuro despontava.
Por: José Pacheco
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