Olhos d’Água, 7 de outubro de 2040
Recém chegado ao Brasil, encontrei, no extremo norte do país, uma Cláudia, que buscava a forma ideal de escola, uma escola que desse a todos garantias do exercício da cidadania e da realização pessoal. Num hospital do Sul, uma equipe de professores, técnicos de serviço social, animadores e voluntários suavizavam os dias de crianças doentes. Num lugarejo perdido no Nordeste, a fé pedagógica fazia milagres e produzia aprendizagens que fariam inveja a muito colégio (dito) de elite. Junto ao mar de Santa Catarina, cresciam as paredes de uma escola sem paredes, que concretizaria o sonho de um pequeno grupo de educadores. Em São Paulo, o jardim-de-infância da Terezita, feito à medida da criança, comovia o visitante mais insensível. Na periferia da metrópole, a Ana juntava professores, pais, amigos e pesquisadores, para dar forma a um projeto que transformou “sala de aula” em “espaço de estudo”. No Rio de Janeiro, os sonhos de uma escola ganhavam forma, fazendo das crianças pessoas mais sábias, mais felizes. Sob o “mar de Minas”, uma mulher extraordinária de nome Patrícia empenhava-se na humanização de uma academia de polícia. E muito mais…
Deixei-me ficar por cá. Havia descoberto uma nova educação no hemisfério sul. Por aqui fiquei aprendendo, ajudando, me emocionando, divulgando “escolas invisíveis”. Assim como certas teorias permanecem invisíveis, também são invisíveis certas escolas. O Brasil desconhecia aquilo que tinha de melhor. Mas, uma reforma silenciosa estava para acontecer.
Os professores que habitavam as escolas invisíveis não recebiam reconhecimento público. Recebiam injustiça e davam lições de resiliência. Eram mal remunerados, mas não usavam o baixo salário como álibi de nada mudar. Não auferiam benefícios, nem aspiravam à celebridade. Faziam milagres com os recursos de que dispunham. Os educadores anónimos que habitavam as escolas invisíveis teciam redes de fraternidade.
Quando decidi afastar-me da Ponte, para permitir que outros a refizessem, não imaginaria ver-me envolvido em novos projetos. Afastei-me, geograficamente, do lugar onde ajudei a concretizar utopias, para não comprometer que outros continuassem a viagem iniciada há mais de seis décadas. Porém, neste lado do mar, esperavam-me novas viagens. Estas cartinhas são registros de situações com que deparei no meu contínuo deambular pelas escolas. Expressam a denúncia do fatalismo da reprodução escolar e social, desocultam práticas sociais obsoletas, mas o foco é a afirmação da concretização de utopias.
A concretização da utopia resulta da consciência da insatisfação e de uma decisão ética. Assim como o romântico que ousa reinventar práticas sociais é um conspirador nato, o idealista que logra concretizar utopias nunca perde o sentido do real. As utopias são pontes lançadas e percorridas sobre o abismo da impossibilidade. Poderemos, a meio do trajeto, regressar à margem de onde partimos, mas teremos sempre de chegar a outra margem, a caminho de outras pontes e de outras margens. Não esqueçamos o que nos diz Hermann Hess:
“Somente as ideias que vivemos têm valor. O proibido não é eterno, e sim sujeito a mudanças”.
Diante de desafios, haverá sempre quem nunca arrisque um passo. E há quem, arriscando, não consiga passar da idealização da realidade à realização de um ideal. A vida é bem curta para se realizar o ideal possível, só o consegue quem se transcende. Porém, se o sentimento de ficar a meio da viagem se apossar de nós, acreditemos que outros irão cuidar do inacabado.
Por: José Pacheco
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