Porto Velho, 3 de outubro de 2040
Nos idos de setenta, coordenei um programa de formação continuada de professores, programa ministerial com vista à introdução dos novos programas para o ensino primário (assim se chamava o fundamental). Mais por intuição do que por referência a um quadro teórico, fizemos do primeiro momento um encontro de escuta. Entre dramas e lamentos, os professores se queixaram do preço dos livros, que gostariam de ler: da Montessori, do Piaget…
Passei a trabalhar, fora de tempo letivo com mais cinco professores. Nos fins-de-tarde de um mês de outubro, procedemos a um levantamento de recursos, tendo encontrado uma “Biblioteca Pedagógica” escondida num anexo da secretaria de educação. Jamais havia sido utilizada pelos professores.
Retirado o pó, inventariados os livros, estes passaram a circular pelas escolas. O ritmo de requisições era intenso. E, em novembro, era publicado o primeiro número do “Projeto”, boletim do recém criado “Centro de Documentação Pedagógica”. O texto de abertura tinha um título sugestivo: “O que foi e será a formação continuada dos professores”.
Os boletins seguintes davam notícias de inúmeros projetos, encontros, exposições, estudos… Inusitadamente, a Biblioteca Pedagógica já não conseguia satisfazer todos os pedidos de livros que nos chegavam. Entretanto, sem um enquadramento jurídico que salvaguardasse as estruturas criadas, sem um estatuto definido, a administração educacional tudo fez para destruir algo que pressentiam fugir ao seu controlo. A equipe em que me integrava resistiu até onde pôde. Depois, pediu demissão. A Biblioteca foi conferida, fechada, e voltou para a arrecadação de onde viera.
Volvida uma década, era criado o “Programa Interministerial de Promoção do Sucesso Educativo”. A equipa eleita pelos professores da região voltava a integrar alguns dos que, no hiato entre as duas iniciativas do ministério, haviam resistido à degradação pedagógica das escolas.
Coube-me, de novo, o papel de coordenar o programa. Fui encontrar a Biblioteca Pedagógica tal qual a havia deixado. Retirado o pó, verificámos que apenas faltavam os dicionários. E não havia qualquer registo de requisição no decurso de uma década.
Precisamos de algum tempo para recuperar dessa ingrata surpresa e voltar a acreditar. Concluído mais um programa de formação, voltei a ser apenas o professor de chão de escola, que sempre fui. Mas, dessa feita, a Biblioteca Pedagógica não voltou para os cafundós dos anexos da secretaria. Ao cabo de muitos meses de conflito com a burocracia, a recém criada Associação PROF, constituída por professores que haviam sobrevivido aos maus-tratos de quase duas décadas, tomava a seu cargo a gestão da Biblioteca.
A Literatura preserva a nossa humanidade. Mas, em tempos sombrios – que, felizmente, já lá vão! – clássicos como ”Macunaíma” eram considerados subversivos. Um governo de estado colocou essa obra-prima da literatura num inquisitorial Index Librorum Prohibitorum. E Rubem Alves, Machado de Assis, Franz Kafka, ou Euclides da Cunha eram autores de livros considerados “inadequados às crianças e adolescentes”.
Talvez os funcionários não tenham lido os livros. Ou, talvez, apenas tivessem lido resumos, na escola da sala de aula. Ou, quiçá, apenas tivessem lido as orelhas dos livros e os títulos.
Tamanha barbárie talvez tivesse ocorrido porque, na maioria das escolas brasileiras, os professores não dispusessem de tempo para ler os excelentes livros de uma Biblioteca Pedagógica, que o MEC lá pusera, no início deste século. Talvez…
Por: José Pacheco
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