Corumbataí, 24 de outubro de 2040
Nas minhas brasileiras deambulações pelo chão das escolas, presenciei situações típicas da crise educacional, que se vivia nos primeiros anos deste século. Deixo-vos com dois exemplos.
Portas fechadas, a tripulação do avião avisava ser proibido o uso de celulares. Os celulares tocavam e muitos passageiros faziam ouvidos de mercador, ligando para familiares e amigos.
Quando o avião chegou ao fim da pista, nos preparativos para decolar, a aeromoça insistia:
“Minha senhora, faça o favor de apertar o cinto da sua filha”.
“Ela não deixa colocar o cinto. Não consigo convencê-la!” – e a mamã insistiu:
“Vá lá, meu anjinho, deixa mamãe pôr o cinto!”
A resposta foi uma sonora bofetada dada pelo seu anjinho.
A mamã encolheu-se. Sorriu para a aeromoça:
“Não vê que é uma criança…”
E, durante toda a viagem, sapatos sujos em cima do assento, a criança premiu o botão de chamada, arrancou e destruiu tudo a que pode deitar a mão. Impunemente.
O avião aproximava-se da manga de desembarque. Três vezes a aeromoça apelou: “Por favor, permaneçam sentados até à paragem completa da aeronave”. Repetiu o apelo em língua inglesa. Os passageiros, já levantados dos assentos, não voltaram a sentar-se.
Presumi que fossem surdos, ou que não fossem… ingleses.
O segundo episódio ocorreu numa viagem por estrada. Um jovenzinho boçal descalçou-se, inundando o ônibus de um cheiro nauseabundo. Pousou um pé no espaldar do assento à sua frente. A passageira sentiu o contacto do pé (e do odor), encolheu-se e voltou o rosto para a janela.
Tal como outros energúmenos, esse jovenzinho deveria ter andado na escola da aula. Certamente, tiveram pais, parentes e amigos. Educação não tiveram. Quem os ajudou a crescer?
Naquele tempo, não havia um projeto político-pedagógico sequer que não estivesse inscrito. “O aluno será autônomo, responsável, protagonista da sua aprendizagem, preparado para a cidadania”. Mas, as práticas de ensinagem contradiziam as nobres intenções.
A introdução de uma Base Nacional Curricular Comum espúria apropriara-se do discurso contemporâneo das ciências da educação: “competências, educação integral, habilidades”… blá, blá, blá. E um “Parecer” sobre essa lei ilegal a legitimava, replicando o teor de leis nunca cumpridas: “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania” etc. etc. etc.
Bonito discurso: “difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum”. Sublinhando-se que “na implementação do projeto político-pedagógico, o cuidar e o educar [eram] indissociáveis funções da escola (…) para o desenvolvimento do aluno em todas as suas dimensões”.
A introdução da BNCC era um verdadeiro “poema”, mas a introdução não era a base. A maioria dos professores jamais a leram. Continuariam a “dar aula” pelo manual didático, porque a BNCC era uma proposta fundada no paradigma instrucionista. E de intenções estava o inferno cheio, como diria a sabedoria popular. Existia, há mais de um século, um fosso entre a intenção e gesto. E as leis eram nados-mortos.
Metaforizemos! Os ratos se reuniram na busca de solução para as perseguições que um gato lhes movia. No plenário, alguém teve uma ideia genial:
“Ata-se um sino ao pescoço do gato e quando ele se aproximar, nós ouvimo-lo”.
A proposta mereceu o aplauso e a aprovação por unanimidade. Contudo, lá da última fila, um ratinho ousou perturbar o consenso e a satisfação geral:
“Pois é. Eu também concordo com a proposta. Só gostaria de saber quem vai pôr o sino no pescoço do gato”.
Por: José Pacheco
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