Camaquã, no primeiro dia de dezembro de 2040

Visitei a Ponte, observando como a escola evoluíra na minha ausência. Conversei com alunos que interiorizaram o projeto e eram a garantia maior de que os novos professores conseguiriam dar-lhe continuidade. Mas, também vi professores reproduzindo práticas erradicadas, há muitos anos.

Uma criança acercou-se de mim e perguntou:

“O senhor quer que eu mostre a nossa escola? Quer?”

Uma funcionária, que estava por perto, interpelou a criança:

“Tu sabes quem é este senhor? É o Professor Zé.”

Ah! – exclamou o pequenito – Já sei! Foi o professor do meu avô!”

Tinham passado mais de quarenta anos. Estava ali a terceira geração.

Os alunos mais crescidos abriram-se comigo, manifestando senso crítico:

“Parece-nos que os professores novos andam muito desorientados. Precisam de alguém que os ajude a perceber como se trabalha na nossa escola.”

“Porque dizeis isso?” – quis eu saber.

“Por exemplo, ainda ontem houve problemas com uma professora. No debate da tarde, o Rui deu a sua opinião sobre um assunto, mas uma professora nova disse-lhe para estar calado”

“E então?” – insisti.

“E então, professor Zé? O Rui respondeu: Eu fico calado, minha senhora. Mas o que eu disse tem de ficar na pauta do debate. Nesta escola, nós sempre fomos ensinados a dizer o que pensamos.”

A recente entrada de muitos professores dera origem a novas “crises”. E um personagem sinistro referiu-se a colegas, num tom que refletia um ridículo complexo de superioridade:

“Com professores como os que temos, não é possível fazer um projeto.”

Eu respondi:

“Foram professores como os que desprezas que fizeram da Ponte o que ela é, muito antes de teres chegado com as tuas brilhantes teorias e contraditórias práticas.

Nós não temos os professores que idealizamos. Temos professores concretos, tão limitados e capazes como tu, como eu. Aceitemo-los como são. Dêmos-lhes meios e o tempo de que precisam para mudar”.

A Ponte estava a passar por tempos difíceis, mas a inexperiência dos novos professores não era o principal fator de “desvios”. As situações de retrocesso, que presenciei durante a visita, resultavam de um desvio de rota sofrido pelo projeto.

Em 2010, a Ponte sofreu mais um ministerial ataque. O ministério impôs a saída do projeto da vila onde ele nascera. Obrigava à migração da escola para um megalómano prédio (anexei a foto a esta cartinha), indevidamente construído na outra margem do rio, colado ao prédio de uma escola “normal”. Os pais dos alunos rejeitaram a ministerial imposição. Mas, como todos os seres humanos, os professores são uma mistura de belo e de horrível. Contrariando a soberana decisão dos pais, os professores da Ponte acataram a ordem do ministério.

“Cuida-se do que se trabalha e trabalha-se o que se cuida”, como diria o Erich Fromm. Esse “cuidar” dos outros, ajudando-os a refazerem-se, pressupõe uma responsabilidade voluntária na defesa do respeito por princípios. Mas, compreendo bem a atitude dos professores. Cansados de resistir a tentativas de destruição do projeto, optaram por armar barricadas de sobrevivência. A Escola da Ponte virou uma ilha, objeto de turismo educacional. O projeto cristalizou, burocratizou-se. A Ponte continuava a ser uma escola de excelência acadêmica e de inclusão social, mas cessara a inovação.

Eu respeitava as opções dos novos obreiros da Ponte, mas nada poderia impedir-me de voltar às origens, de ajudar a refazer um projeto, a partir da sua matriz axiológica e no respeito por princípios.

Em 2020, iria voltar à Ponte, no lugar onde o projeto nascera. Vos contarei o sucedido.

 

Por: José Pacheco